Medidas contra o povo e a favor do capital

A tempestade perfeita

Anselmo Dias

Como é do co­nhe­ci­mento geral o Go­verno au­mentou, em média, o custo dos trans­portes pú­blicos em cerca de 15% a que se se­guiu a al­te­ração do IVA apli­cado à elec­tri­ci­dade e ao gás, pas­sando-o da taxa de 6% para a de 23%.

A pre­texto de au­mentar a com­pe­ti­ti­vi­dade da nossa eco­nomia o mesmo Go­verno pre­tende di­mi­nuir o valor pago pelo pa­tro­nato à Se­gu­rança So­cial, o que sig­ni­fica uma coisa e o seu con­trário, ou seja:

- di­minui o poder de compra da ge­ne­ra­li­dade da po­pu­lação.

- au­menta o lucro do factor ca­pital, de­sig­na­da­mente dos grandes grupos li­gados às grandes su­per­fí­cies, às co­mu­ni­ca­ções, à energia e a sec­tores onde pon­ti­ficam a Mota Engil, a Au­to­eu­ropa, bem como ou­tras im­por­tantes e in­flu­entes em­presas es­tran­geiras, sem es­quecer aquelas que, no sector em­pre­sa­rial do Es­tado, estão em vias de pri­va­ti­zação como sejam os casos da TAP, CTT, etc.

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É certo que todas as em­presas be­ne­fi­ciam com a re­dução dos res­pec­tivos des­contos para a Se­gu­rança So­cial, em­bora os mai­ores be­ne­fí­cios in­cidam sobre as uni­dades com muitos tra­ba­lha­dores. É um fartar vi­la­nagem, quan­ti­fi­cado em cerca de três mil e qua­tro­centos mi­lhões de euros, tendo como re­fe­rência a exi­gência da troika numa re­dução de cerca de oito pontos per­cen­tuais na con­tri­buição pa­tronal para a Se­gu­rança So­cial. Um ver­da­deiro ovo de Co­lombo ao ser­viço da acu­mu­lação ca­pi­ta­lista.

Como se tudo isto não bas­tasse o PSD e o CDS-PP pre­tendem au­mentar os custos no acesso à Saúde, por via do au­mento quer das taxas mo­de­ra­doras, quer dos me­di­ca­mentos, quer, ainda, dos meios au­xi­li­ares de di­ag­nós­tico.

En­tre­tanto, a in­flação cresce a uma média de cerca de 3,2%, num con­texto de con­ge­la­mento sa­la­rial a par da re­dução e/​ou ex­tinção de vá­rias pres­ta­ções da Se­gu­rança So­cial.

Tudo isto vai di­mi­nuir o ren­di­mento dis­po­nível dos por­tu­gueses, o que terá con­sequên­cias gra­vís­simas no au­mento da po­breza. Aliás, a ope­ração que está em curso con­siste numa gi­gan­tesca dre­nagem de re­cursos da po­pu­lação para o factor ca­pital, ope­ração que irá de­ter­minar a acen­tu­ação das as­si­me­trias so­ciais em Por­tugal.

De­ter­mi­nadas pela po­breza irão surgir vá­rias pa­to­lo­gias, de­sig­na­da­mente na área da psi­qui­a­tria e da dieta ali­mentar, a que acresce a even­tu­a­li­dade, pre­vista por vá­rios es­pe­ci­a­listas, de uma re­gressão na lon­ge­vi­dade da po­pu­lação, pondo fim à evo­lução po­si­tiva ve­ri­fi­cada nas úl­timas dé­cadas.

Num con­texto de em­po­bre­ci­mento e de de­sem­prego não é de ex­cluir o avo­lumar dos pe­quenos de­litos cujas ví­timas são tão po­bres quanto os po­bres que os pra­ticam mas que ser­virão de pre­texto para a di­reita re­clamar adi­ci­o­nais me­didas de se­gu­rança. É a tem­pes­tade per­feita!

Mas não só.

Re­cen­te­mente, de acordo com o jornal Pú­blico de 10 de Se­tembro, o «pre­si­dente da So­ci­e­dade Por­tu­guesa de Sui­ci­do­logia con­si­dera que a si­tu­ação de crise eco­nó­mica que Por­tugal atra­vessa pode pro­vocar o au­mento do sui­cídio entre a po­pu­lação se fa­lharem os apoios so­ciais».

O es­pe­ci­a­lista atrás re­fe­rido con­si­dera que «O de­sem­prego, as di­fi­cul­dades eco­nó­micas e a crise so­cial pode levar ao au­mento dos com­por­ta­mentos su­ci­dá­rios».

Tal opi­nião coin­cide com a con­clusão de uma de­pu­tada do par­tido so­ci­a­lista grego (Pasok) que afirmou ter ha­vido, desde a im­ple­men­tação das me­didas exi­gidas pela troika à Grécia, um au­mento de sui­cí­dios, na­quele país, em cerca de 40%.

A gra­vo­si­dade do atrás re­fe­rido vai, em Por­tugal, pe­na­lizar todos da mesma forma, ou, ao invés, irá haver efeitos di­fe­ren­ci­ados?

A res­posta é: vai haver con­sequên­cias di­fe­rentes em função das exi­gên­cias das troikas – a ex­terna e a in­terna – no que diz res­peito ao nível de vida da po­pu­lação, sa­bendo-se, como se sabe que, a tí­tulo de exemplo, o au­mento do preço do pão e da renda da casa é mú­sica de ou­vido para o rico mas algo gra­voso para o pobre.

 

Des­pesas das fa­mí­lias por re­giões

 

Tendo por base os in­di­ca­dores dis­po­ní­veis é pos­sível con­cluir que cerca de 72% das des­pesas fa­mi­li­ares estão con­cen­tradas em, apenas, cinco grupos, a saber:

Ha­bi­tação: des­pesas com água, elec­tri­ci­dade e gás;

Pro­dutos ali­men­tares e be­bidas não al­coó­licas;

Trans­portes;

Ho­téis, res­tau­rantes, cafés e si­mi­lares;

Saúde.

As des­pesas fa­mi­li­ares nestes cinco grupos não são uni­formes. Va­riam de re­gião para re­gião, em função da con­fluência de vá­rios fac­tores, cuja ca­rac­te­ri­zação tor­naria este ar­tigo muito mais ex­tenso.

Com efeito, na base do con­junto total de des­pesas fa­mi­li­ares ve­ri­fica-se o se­guinte:

Na ha­bi­tação , o maior es­forço fa­mi­liar ve­ri­fica-se na Ma­deira;

Na ali­men­tação, o maior es­forço fa­mi­liar ve­ri­fica-se nos Açores;

Nos trans­portes , o maior es­forço fa­mi­liar ve­ri­fica-se na Re­gião Centro;

Nos ho­téis, res­tau­rantes, cafés e si­mi­lares , o maior es­forço fa­mi­liar ve­ri­fica-se no Al­garve;

Na saúde , o maior es­forço fa­mi­liar ve­ri­fica-se no Alen­tejo.

Como se vê não há uma pa­dro­ni­zação para as des­pesas fa­mi­li­ares, pelo que, caso a caso, de­vemos ter em con­si­de­ração não apenas o con­junto mas igual­mente todas as partes que in­te­gram esse con­junto ou, dito de outra forma, de­vemos, si­mul­ta­ne­a­mente, ver a flo­resta e as ár­vores que a com­põem.

Olhar para as ár­vores e não ver a flo­resta é com­pli­cado.

Mas ver apenas a flo­resta e não atender às ár­vores nela in­se­ridas também tem que se lhe diga.

De facto, nas des­pesas fa­mi­li­ares atrás re­fe­ridas há di­fe­renças a as­si­nalar.

Se ti­vermos em conta, sem ex­cepção, todas as des­pesas fa­mi­li­ares e as re­la­ci­o­narmos com os cinco grupos atrás re­fe­ridos cons­ta­ta­remos que estes têm a sua maior ex­pressão na Ma­deira de­vido às des­pesas com Ha­bi­tação e no Alen­tejo com as des­pesas li­gadas à Saúde, fac­tores que con­di­ci­onam as res­tantes des­pesas fa­mi­li­ares, ou, igual­mente, dito de outra forma, quando a fa­zenda é pouca, ou dá para o ca­saco, ou dá para as calças.

Estas es­pe­ci­fi­ci­dades não re­sultam de qual­quer fe­nó­meno na­tural, antes têm uma ex­pli­cação de­ri­vada, fun­da­men­tal­mente da na­tu­reza e di­mensão dos ren­di­mentos fa­mi­li­ares, mas também da com­po­sição do agre­gado fa­mi­liar e da es­tru­tura etária da po­pu­lação.

 

Des­pesas tendo em conta a prin­cipal fonte de ren­di­mento

 

Se fi­zermos a de­sa­gre­gação das des­pesas tendo por base o ren­di­mento do tra­balho por conta de ou­trem, o tra­balho por conta pró­pria, o ren­di­mento da pro­pri­e­dade e do ca­pital, as pen­sões, ou­tras trans­fe­rên­cias so­ciais e ou­tras fontes de ren­di­mento, se fi­zermos esta de­sa­gre­gação o re­sul­tado é o se­guinte: são os sec­tores mais po­bres, de­sig­na­da­mente os re­for­mados e as fa­mí­lias de­pen­dentes das pres­ta­ções so­ciais aquelas que mais es­forço fazem no con­junto das des­pesas com ha­bi­tação, ali­men­tação, trans­portes, res­tau­rantes e saúde.

No caso dos re­for­mados, cerca de 60% das des­pesas fa­mi­li­ares são feitas em apenas, três grupos: ha­bi­tação, ali­men­tação e saúde.

A saúde, no or­ça­mento dos re­for­mados, su­pera, em termos per­cen­tuais, 130% o es­forço dos tra­ba­lha­dores por conta pró­pria.

Um au­mento das taxas mo­de­ra­doras e dos me­di­ca­mentos irá ter con­sequên­cias dra­má­ticas no or­ça­mento dos re­for­mados.

Por outro lado, é de re­flectir no es­forço que os tra­ba­lha­dores por conta de ou­trem fazem com trans­portes.

Com efeito, cerca de 15% do total das des­pesas desses agre­gados fa­mi­li­ares diz res­peito a trans­portes, quase tanto como aquilo que des­pendem com pro­dutos ali­men­tares e be­bidas não al­coó­licas.

Um ab­surdo!

Um país onde uma parte sig­ni­fi­ca­tiva da po­pu­lação gasta tanto em trans­portes como em ali­men­tação é um país vi­rado ao avesso, não apenas pelo mo­delo de de­sen­vol­vi­mento eco­nó­mico im­posto, não apenas pelos erros crassos co­me­tidos pelo ur­ba­nismo tipo «J. Pi­menta» e «Xa­vier de Lima» que po­ten­ciou o clás­sico mo­vi­mento diário pen­dular em vi­a­tura pró­pria «casa-em­prego-em­prego-casa», mas também pelos va­lores im­postos por uma vi­o­lenta e agres­siva pu­bli­ci­dade.

Os dados dis­po­ní­veis não per­mitem ter uma ideia da­quilo que se re­fere a trans­portes pú­blicos e a trans­porte em vi­a­tura pró­pria.

A di­mensão desta verba per­mite con­cluir que, a acrescer ao dis­pêndio dos trans­portes pú­blicos, é de­vas­tador o efeito das cam­pa­nhas pu­bli­ci­tá­rias fo­men­tadas pela banca, ten­dentes à re­no­vação ace­le­rada do parque au­to­móvel, em be­ne­fício dos grandes pro­du­tores da Ale­manha, França e EUA, países que em­prestam di­nheiro aos nossos bancos para que estes, por sua vez, em­prestem aos por­tu­gueses e para que o País, num cír­culo si­milar ao da pes­ca­dinha com o rabo na boca, possa im­portar, da­queles mesmos países os popós, muitos dos quais têm mais im­por­tância pelo valor sim­bó­lico da os­ten­tação do que pela mo­bi­li­dade que os mesmos pro­por­ci­onam.

Vol­temos, outra vez, à di­mensão das des­pesas com trans­portes.

Se os en­cargos com os trans­portes pú­blicos, com o IVA a 6%, re­pre­sen­tavam uma parte sig­ni­fi­ca­tiva das des­pesas fa­mi­li­ares quanto, as mesmas, pas­sarão a re­pre­sentar caso o IVA passe para os es­ca­lões su­pe­ri­ores de 13% ou 23%?

 

Des­pesas con­si­de­rando a es­tru­tura etária

 

Se a aná­lise for feita na base da es­tru­tura etária, tendo em conta o in­di­víduo de re­fe­rência, cons­ta­tamos que nos cinco con­juntos das prin­ci­pais des­pesas estas au­mentam à me­dida que a idade au­menta.

Com efeito, as des­pesas com ha­bi­tação, ali­men­tação, trans­portes, res­tau­rantes e saúde pesam cerca de 70% nos agre­gados fa­mi­li­ares entre os 30 e os 44 anos e cerca de 78% nos agre­gados fa­mi­li­ares com 65 e mais anos.

Se con­fron­tarmos cada uma destas des­pesas por es­tru­tura etária ve­ri­fi­camos que o peso da ha­bi­tação, da ali­men­tação e da saúde é mais ele­vado nos agre­gados fa­mi­li­ares mais idosos do que nos agre­gados fa­mi­li­ares mais jo­vens.

Em sen­tido con­trário temos os trans­portes e os res­tau­rantes onde os mais jo­vens dis­pensem mais que os mais idosos.

Os casos mais gra­vosos nos agre­gados fa­mi­li­ares idosos ve­ri­ficam-se nos se­guintes casos:

as des­pesas com ha­bi­tação onde a mu­lher é o in­di­víduo de re­fe­rência re­pre­sentam cerca de 35% do total das des­pesas. Uma ver­da­deira vi­o­lência que se irá avo­lumar em função quer do au­mento da renda da casa quer dos au­mentos de­ri­vados do au­mento do IVA na elec­tri­ci­dade e gás;

as des­pesas com ali­men­tação onde o homem é o in­di­víduo de re­fe­rência re­pre­sentam 19,4% do total das des­pesas;

as des­pesas com saúde onde o homem é o in­di­víduo de re­fe­rência re­pre­sentam 11,4% do total das des­pesas.

Os casos mais gra­vosos nos agre­gados fa­mi­li­ares até 29 anos ve­ri­ficam-se nos se­guintes casos:

as des­pesas com trans­portes onde o homem é o in­di­víduo de re­fe­rência re­pre­sentam 19,3% do total das des­pesas. Um ab­surdo!

as des­pesas com ho­téis, res­tau­rantes, cafés e si­mi­lares onde o homem é o in­di­víduo de re­fe­rência re­pre­sentam 11,1% do total das des­pesas, ou seja, este valor acres­cido dos trans­portes re­pre­sentam quase 1/​3 do tal das des­pesas fa­mi­li­ares das fa­mí­lias mais jo­vens, Dá que pensar...

 

Co­nhecer para trans­formar

 

Os dados acima re­fe­ridos são va­lores per­cen­tuais e não va­lores ab­so­lutos.

Os úl­timos dados dis­po­ní­veis re­portam-se a 2005/​2006 e re­fe­riam que as des­pesas mé­dias por agre­gado fa­mi­liar cor­res­pon­diam, em termos ab­so­lutos, a 17 807 euros, ca­bendo a Lisboa o valor mais alto, 20 715 euros e ao Alen­tejo o valor mais baixo, 14 087 euros.

Es­tamos a falar de dados muito agre­gados que tanto con­tem­plam o re­for­mado a ga­nhar 200 euros por mês, como os 150 agre­gados que ofi­ci­al­mente de­cla­raram, em 2009, um ren­di­mento em sede de IRS su­pe­rior a um mi­lhão de euros, como o se­nhor Amé­rico Amorim com uma for­tuna es­ti­mada num nú­mero com dez dí­gitos.

Os dados do INE, cer­ta­mente ver­da­deiros, não per­mitem uma lei­tura muito ri­go­rosa.

É ne­ces­sário de­sa­gregar os dados por forma a dis­pormos de ele­mentos mais fiá­veis, não apenas do es­trato so­cial onde pon­ti­fica o «tra­ba­lhador» Amé­rico Amorim, mas de uma faixa de cerca de 23 000 agre­gados fa­mi­li­ares que de­cla­raram viver dos ren­di­mentos de pro­pri­e­dade e de ca­pital, e de uma outra faixa en­vol­vendo cerca de 306 000 agre­gados in­se­ridos numa ne­bu­losa de­fi­nição de «Ou­tras fontes de ren­di­mento». O que é isto?

Co­nhecer toda esta re­a­li­dade é im­por­tante, não com a in­tenção de termos acesso a cu­ri­o­si­dades me­ra­mente es­ta­tís­ticas mas, isso sim, de nos mu­nirmos de fer­ra­mentas que mu­ni­ciem a luta em ordem a exigir aos grandes ac­ci­o­nistas e aos mais ricos o pa­ga­mento da fac­tura pelos danos que os mesmos pro­vo­caram, e pro­vocam, à nossa vi­vência co­lec­tiva.

 

Fontes:

Inqué­rito às Des­pesas Fa­mi­li­ares, INE, 2008;

Jornal «Pú­blico» de 10 e 14 de Se­tembro de 2011.

 

 

 



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