Os raros e os outros

Correia da Fonseca

O tí­tulo de um novo pro­grama da RTP1 pro­metia falar-nos de «por­tu­gueses ex­tra­or­di­ná­rios» e eu, velho co­nhe­cedor dos apreços da Ra­di­o­te­le­visão Por­tu­guesa e con­fes­sa­da­mente pro­penso a sus­pei­ções por vezes ex­ces­sivas, logo me pre­parei para ouvir pros­ter­nados en­có­mios a fi­guras ver­da­dei­ra­mente em­ble­má­ticas como Bel­miro, Amorim e ou­tros ver­da­dei­ra­mente ex­tra­or­di­ná­rios em país onde o que é or­di­nário, isto é, normal, é tra­ba­lhar a baixo preço para que a in­vul­ga­ri­dade da­queles se­nhores e de ou­tros da mesma in­vulgar massa não cesse de se acrescer. Afinal, porém, es­tava eu muito en­ga­nado: des­cobri mais tarde que os por­tu­gueses ex­tra­or­di­ná­rios que davam tí­tulo ao pro­grama são ci­da­dãos e ci­dadãs que, sen­tindo-se to­cados por si­tu­a­ções de mi­séria, de do­ença ou sim­ples­mente de ex­trema de­si­gual­dade so­cial so­fridas por com­pa­tri­otas, se apli­caram a mi­norar so­fri­mentos e ca­rên­cias. É sem a menor dú­vida uma bo­nita ati­tude que leva a sério o que é agora de­sig­nado por so­li­da­ri­e­dade so­cial e dantes se cha­mava, talvez mais sim­ples­mente, ca­ri­dade cristã. Acon­tece também que não é pro­pri­a­mente no­vi­dade ne­nhuma: já na se­gunda me­tade do sé­culo XIX, o pre­ca­vido e muito cristão conde Adrien Al­bert de Mun dizia: «fa­çamos uma re­vo­lução antes que o povo a faça». A re­vo­lução pre­co­ni­zada por Adrien Al­bert e, é claro, nunca le­vada à prá­tica, con­sistia exac­ta­mente em que os que vi­viam em grande abun­dância ti­vessem a bon­dade de se des­fazer de al­guns di­nheiros e bens para que a po­pu­laça (como diria Vasco Pu­lido Va­lente) não ti­vesse tantas e tão graves ra­zões de queixa. In­de­pen­den­te­mente dos sen­ti­mentos ex­ce­lentes e das in­ten­ções nunca de­mais lou­vadas dos por­tu­gueses de que a RTP nos falou, a linha de ac­tu­ação so­cial por eles se­guida en­tronca per­fei­ta­mente no pen­sa­mento do conde de Mun, mesmo não tendo a menor in­tenção de aí se alojar. E teria de­certo re­sul­tados sig­ni­fi­ca­tivos à es­cala na­ci­onal se gente assim, de ge­ne­ro­si­dade ave­ri­guada e grande em­pe­nha­mento, não fosse rara. E se esse ca­rácter de ex­cep­ci­o­na­li­dade e ver­da­deira ir­re­le­vância à es­cala do País não per­ma­ne­cesse apesar do even­tual es­tí­mulo re­pre­sen­tado por um pro­grama como este «Por­tu­gueses Ex­tra­or­di­ná­rios» em trans­missão pela RTP com pro­vá­veis in­tuitos de exem­pla­ri­dade.

 

Sim­ples­mente

 

Gente di­fe­rente, o que não sig­ni­fica de modo ne­nhum gente pior, talvez antes pelo con­trário, mas que não é nada rara, são os mi­lhares de por­tu­gueses que se pre­param para de­sen­ca­dear pro­testos pú­blicos e ve­e­mentes contra as me­didas do Go­verno a que, numa re­cente en­tre­vista con­ce­dida a Ma­nuel Luís Goucha, a ex-mi­nistra Ga­briela Ca­na­vi­lhas, com sur­pre­en­dentes de­sas­sombro e co­ragem, chamou «vi­la­nias». Esses muitos mi­lhares são os ou­tros, os por­tu­gueses co­muns que já so­frem e pagam, que lu­ci­da­mente pre­vêem que estão mar­cados para so­frer e pagar ainda mais. Con­tudo, por muitos que eles sejam, e são-no sem dú­vida, não se jus­ti­fica que metam medo a nin­guém, ex­cepto pro­va­vel­mente aos que têm grande apego à ma­nu­tenção do pre­su­mido di­reito de ex­plo­rarem in­ten­sa­mente o tra­balho alheio. Sendo assim, en­tende-se mal o que a TV veio dizer aos te­les­pec­ta­dores por­tu­gueses, so­bre­tudo me­di­ante a re­pe­tida pas­sagem de uma in­for­mação no ro­dapé do ecrã: que o se­nhor co­man­dante da PSP «temia» as anun­ci­adas ma­ni­fes­ta­ções po­pu­lares. Antes do mais, convém su­bli­nhar a im­pro­ba­bi­li­dade de um se­nhor co­man­dante da PSP «temer» seja o que for, e so­bre­tudo ma­ni­fes­ta­ções que nada in­dicia serem di­fe­rentes do que sempre foram as ma­ni­fes­ta­ções po­pu­lares entre nós, isto é, pa­cí­ficas e or­deiras. É certo que, ainda se­gundo a TV, a de­cla­ração da PSP su­ge­riria a ex­clusão deste ca­rácter ci­vi­li­zado, di­gamos assim, de ma­ni­fes­ta­ções ha­vidas nos anos ime­di­a­ta­mente pos­te­ri­ores a Abril de 74, mas estou em crer que esta su­posta ex­clusão de­corre de al­guma ma­lícia por parte da te­le­visão, que gosta de tecer in­trigas, e não de algum pen­sa­mento anti-Abril de ins­tân­cias ofi­ciais, o que é im­pen­sável. Quanto ao que é mais im­por­tante, porém, o que a TV nos faz co­nhecer é que os «ou­tros», os que efec­ti­va­mente re­pre­sentam a grande mai­oria e por isso não são «ex­tra­or­di­ná­rios», se dis­põem a dizer que re­cusam ser os pa­ga­dores de dí­vidas alheias, os servos de uma es­pécie de vasta gleba cujos pro­pri­e­tá­rios con­ti­nuam a ar­re­cadar subs­tan­ciais co­lheitas. Aqui e também no resto do mundo, in­cluindo nos Es­tados Unidos, como de resto a pró­pria TV mostra, os «ou­tros» de­ci­diram que é tempo de mudar. E sim­ples­mente saem à rua para que todos o saibam.



Mais artigos de: Argumentos

Os 700

A notícia percorreu todos os noticiários (ou não viesse ela dos EUA): a polícia nova-iorquina fez 700 detidos entre os manifestantes que, há já semanas, assentam regularmente arraiais nas imediações de Wall Street, o coração financeiro dos EUA,...

Despotismo puro e simples

«A violência deve ser um princípio; a astúcia e a hipocrisia, uma regra para os governos que não queiram entregar a coroa do poder aos agentes de uma nova força. Por isso, não nos devemos deter diante da corrupção, da intriga e da...

«Dez contos de réis e de gente» de José Luís Ferreira

Este livro de José Luís Ferreira - Dez contos de réis de gente - trata da realidade pequena e grande, dos homens, das mulheres e das crianças, no meio rural e no meio urbano, na vida das aldeias, vilas e cidades. É, portanto, um livro que nos identifica...