Crónica é palavra dúbia. Assim como cronista. Diz respeito ao tempo que passa e que se regista. E se a crónica era uma saga nos termos medievos ou renascentistas de quem as escrevia, passa a ser ou a pretender ser – conforme a verdade aí se instala e dela é certidom, como em Fernão Lopes – história.
(…) Jornalista, portanto um cronista do efémero, Henrique Custódio, desde há décadas escreve profissionalmente no Avante!. Tem a honra – como eu próprio tive durante trinta e cinco anos – de participar no colectivo da redacção do órgão central do Partido Comunista Português. E isto é desde logo dizer quanto baste para avaliar da verdade do que escreve, do sentido e da perspectiva que convidam o leitor a pensar pela sua própria cabeça, a pesar e a medir a realidade arrancada a quente da vida que vivemos e que projectamos transformar. Mas não bastará para avaliar a qualidade da prosa que cuida ao extremo, demorando-se não apenas na escolha do adjectivo mas também na construção da frase de modo a torná-la impressiva e muitas vezes inesquecível.
Henrique Custódio, o camarada de tantos anos de labor num colectivo que é voz única no panorama da comunicação de massas e que faz suas as razões da luta que o PCP há noventa anos trava contra a opressão burguesa – tenha a cara do fascismo ou a figura mentirosa da burguesia que continua a governar os nossos dias – não vai lá com maneiras finas. Armado de uma percepção aguda do que de escandaloso acontece na sociedade de injustiça onde ainda vivemos, o jornalista usa o sarcasmo e a indignação para lhe desvendar as contradições. E prefere às ironias diáfanas de um Eça, o estadulho sarcástico de um Camilo para zurzir nos velhos e novos exploradores, nos corruptos, nos mentirosos escribas que lhes douram os actos e as figuras. Da prosa deste autor sai essa gente mal ferida aos olhos do leitor – que é quem no fundo interessa a quem escreve.
Retratos da exploração
Tem certamente Henrique Custódio os seus ódios de estimação, aqui e no plano internacional. E é vê-los passar, como em galeria de bafientos retratos – por muito novos que sejam – esses homens e mulheres ao serviço da exploração do trabalho, da grande corrupção, da submissão ao imperialismo. Gente que, ao longo das décadas, vem contrariando ferozmente as conquistas de Abril e o caminho aberto para o socialismo que Abril propunha e por onde o povo, ancorando-se nas orientações do PCP, avançou até ser detido pela santa aliança dos reaccionários de todos os matizes que, unidos contra os trabalhadores e as suas conquistas, apostaram em fazer andar para trás a roda da história.
Muitas são as destruições de que aqui se fala. É um caminho de sombras e de pesadelos, desde a contra-Reforma Agrária que entregou, sob a batuta de Soares e de Barreto, as terras das UCP e das Cooperativas e as pôs com dono, vastos campos desde então improdutivos e abandonados, de novo colocados nas mãos dos velhos e de novos latifundiários. Desde o começo das privatizações, que entregaram nas mãos de velhos e de novos monopolistas a banca, a indústria, a agricultura, as pescas, os serviços.
Quem tenha a memória de Abril e os anos lhe sobrem, reconhecerá os nomes dos champalimaud, dos mello, dos espírito santo, dos belmiro e de toda a companhia que inchou à custa do poder político instalado pelo voto «democrático» em campanhas que vendem presidentes como quem vende sabonetes. Os mais jovens que se arrumam do nosso lado e participam nas lutas pelos seus direitos também os conhecem. E juntos, mais novos e mais velhos, apontam a dedo os nomes de Mário Soares e de Cavaco Silva, de Sá Carneiro e de Freitas do Amaral, e também os de Paulo Portas e de Guterres, de Durão Barroso e de Alberto João Jardim, de Sócrates. Acompanhados de muitos outros, ministros, secretários e outros boys que, à vez ou à uma, vêm mergulhando o país na miséria e arrancam ao povo direitos conquistados arduamente, e instalando a corrupção que se consolida à medida que a dominação do capital se acentua. E no plano internacional, com a derrota do socialismo na União Soviética e nos países do Leste da Europa, outros nomes, os do imperialismo, se juntam a esta galeria, desde os clinton e os bush, aos thatcher e aos blair que arrasam países e assassinam os aliados de ontem para governarem «mais directamente» o mundo. Porque o imperialismo não tem amigos, só tem interesses, embora Soares não tenha pejo em evocar o seu ami Miterrand mas já não fale do seu amigo Craxi, do seu ídolo Savimbi ou de qualquer outro corrupto que tenha subido ao patíbulo por ser já impossível esconder a escandaleira.
Esperança e luta
Mas a história não se faz apenas nomeando abutres. E entram em cena nestas crónicas os trabalhadores e os resistentes. Organizados nos seus sindicatos, nas associações e colectividades, nas comissões de utentes. São esses a quem Henrique Custódio dá lugar, mostrando-lhes as lutas e a firmeza, saudando-lhes a coragem de afirmar e de agir em condições adversas. Defendendo direitos – ao trabalho, à saúde, à educação, à cultura e até à livre expressão que, mesmo esta, se encontra ameaçada.
O livro é curto, para tão longa história. Porque é de história que se trata aqui. A crónica, cada uma delas, não alcança esse estatuto. Mas a escolha, a selecção e compilação delas todas, conseguem dar ao leitor uma perspectiva e um sentido, como acima dissemos. E através das décadas conseguimos verificar quanto caminho foi percorrido para aqui chegar e de que modo ele tem sido feito e como tem sido mantido o rumo inaugurado em Novembro de 1975, mergulhando Portugal num limbo de trevas, embora semeado de lutas. Quanto caminho feito pela política de direita que foi aliando o PS ao CDS, o CDS ao PSD, o PSD ao PS para ser claro hoje que a origem dos males está precisamente nessa aliança a três que pretendem esconder com os alardes de uma competição onde apenas contam os pequenos interesses de clãs enquanto que os une a todos a serviçal postura de lacaios do capital a quem de novo entregaram as rédeas do poder.
São décadas. Diríamos que viradas do avesso, pois que décadas se chamavam aos escritos «venturosos» da Ásia e da Índia, onde de vento em popa os portugueses saqueavam e massacravam outros povos para maior glória e proveito do reino e dos seus piratas encartados dos anos quinhentos. Estas, as de Abril, não são décadas luminosas, antes sombrias, em comparação com os avanços históricos de uma revolução democrática e nacional levada avante pelos trabalhadores e pelo povo em aliança com os militares revolucionários de então. Mas são Décadas de Abril, assim mesmo. Porque Abril não é apenas a nostalgia de uma época em que o futuro se apresentava aberto à nossa frente. Abril permanece, em nós, como uma esperança e um projecto.
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Extracto do prefácio de Filipe Leandro Martins ao livro Décadas de Abril, de Henrique Custódio, Edições «Avante!», Lisboa, 2011.
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