Jerónimo, operário comunista

Correia da Fonseca

Foi o úl­timo de seis ir­mãos, nasceu em Pi­res­coxe, lo­ca­li­dade obs­cura ali para os lados de Santa Iria da Azóia, de nome es­tranho e ar­re­ve­sado talvez so­bre­tudo para o gosto dos nas­cidos na Ave­nida de Roma ou na Linha de Cas­cais. Eram uma fa­mília de gente de muito tra­balho duro e de poucos di­nheiros, como aliás era então e con­tinua a ser a mai­oria das fa­mí­lias por­tu­guesas. Je­ró­nimo fez o que teria de ser o seu per­curso na­tural: es­cola, ofi­cina quando ainda a ju­ven­tude prin­ci­piara, ca­ma­ra­dagem cedo ex­pe­ri­men­tada e apren­dida, umas frestas na ro­tina quo­ti­diana para o gosto da bola e também para o das lei­turas. Na pro­fissão se­guiu uma es­cala pro­fis­si­onal pre­vi­sível: afi­nador de má­quinas de ter­ceira, se­gunda, pri­meira classe. A par disso, ou­tras apren­di­za­gens, e em re­sul­tado delas ele, que nas­cera em Abril de 47, num outro Abril, o de 74, for­ma­lizou uma outra con­dição, a de mi­li­tante do Par­tido Co­mu­nista Por­tu­guês, par­tido na­tural de todos os tra­ba­lha­dores e por­tanto dos ope­rá­rios me­ta­lúr­gicos ou não. Trinta e sete anos mais tarde, num pro­grama da SIC, o «Alta De­fi­nição» o jor­na­lista Da­niel Oli­veira (não se con­funda com o ci­dadão ho­mó­nimo da área do Bloco de Es­querda) quis con­versar com ele talvez para que o co­nhe­cês­semos me­lhor, talvez so­bre­tudo na pre­visão aliás fácil de que uma en­tre­vista com Je­ró­nimo de Sousa re­sul­taria num pro­grama en­tu­si­as­mante. Não se en­ga­nava, o que prova que Da­niel Oli­veira sabe o que está a fazer, o que de resto se notou ao longo de toda a en­tre­vista: por di­versas vezes se viu no rosto do en­tre­vis­tador a sen­si­bi­li­dade ao que ouvia do en­tre­vis­tado. Com boas ra­zões para isso.

 

A «lição da fá­brica» e ou­tros mo­mentos

 

Je­ró­nimo não deixou de ser ope­rário me­ta­lúr­gico de 74 para cá, mas a essa con­dição ini­cial acres­centou al­gumas ou­tras: mi­li­tante sin­dical, de­pu­tado à As­sem­bleia Cons­ti­tuinte em 75/​76 e à As­sem­bleia da Re­pú­blica nas dé­cadas pos­te­ri­ores, Se­cre­tário-geral do seu Par­tido. En­tre­tanto, porém, e bem antes de Abril, teve ou­tras ex­pe­ri­ên­cias, e de entre todas elas a da Guerra Co­lo­nial vi­vida e so­frida na Guiné. Foi, ob­vi­a­mente, um per­curso rico e va­riado. Delas falou Je­ró­nimo sem a mí­nima ên­fase, sem uma ponta de pro­ta­go­nismo, nem mesmo quando narrou como ele pró­prio e ou­tros ca­ma­radas de armas, sus­peitos de con­tes­tarem a guerra in­justa e cri­mi­nosa para que ha­viam sido mo­bi­li­zados, foram co­lo­cados pelos co­mandos numa si­tu­ação equi­va­lente à de con­de­nação à morte al­gures na frente da Guiné. Mas também falou de ou­tras coisas menos si­nis­tras, até en­ter­ne­ce­doras. Da­quilo a que chamou «a lição da fá­brica» com o sabor da ca­ma­ra­dagem nos lo­cais de tra­balho mas também da apren­di­zagem muito con­creta da mais-valia apro­priada pelo pa­tro­nato. Dos cin­quenta es­cudos, pe­que­nino te­souro di­fi­cil­mente ame­a­lhado ao longo de anos, que o seu pai um dia lhe en­tregou numa hora de des­pe­dida. Da fra­ter­ni­dade e da ale­gria en­con­tradas quer na pro­fissão quer nos mo­mentos de lazer. E de tudo isso sempre se des­prendeu um dis­cre­tís­simo or­gulho por per­tencer ao largo e mai­o­ri­tário seg­mento dos por­tu­gueses que são gente de tra­balho e da quo­ti­diana so­li­da­ri­e­dade efec­tiva, também da luta po­lí­tica que emerge da cons­ci­ência de classe apren­dida na du­reza da re­a­li­dade diária. De tudo Je­ró­nimo falou di­ante do en­tre­vis­tado em cujo rosto de vez em quando apon­tavam ves­tí­gios de es­panto, ou de co­moção, ou de sur­presa. Em ver­dade, esta foi muito pro­va­vel­mente a me­lhor de todas as en­tre­vistas já con­ce­didas por Je­ró­nimo em qual­quer dos ca­nais da te­le­visão por­tu­guesa, mas também terá sido ele o me­lhor dos en­tre­vis­tados já abor­dados por Da­niel Oli­veira. Porque nas pa­la­vras de Je­ró­nimo como que es­tavam in­crus­tados os cheiros a pão e a ferro, a tra­balho e a pól­vora, a luta e a es­pe­rança. Po­derá passar por «Alta De­fi­nição» muita outra gente. Não pa­rece pro­vável que al­guma outra com o travo de ve­ra­ci­dade e a aragem de fu­turo que ca­rac­te­ri­zaram a pre­sença de Je­ró­nimo de Sousa.



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