- Nº 1985 (2011/12/15)

Este país não é para pobres

Argumentos

Poderia, é claro, aproveitar o título de um filme há tempos exibido entre nós e encimar estas duas colunas com a afirmação de que este País não é para velhos. O que seria verdade, bem se sabe, mas seria escasso, e a televisão lembra-nos porquê ainda que se esforce um tanto para que o esqueçamos, adiante se recordará como. De facto, seja qual for o telenoticiário que nos surja diante dos olhos, mais tarde ou mais cedo veremos abordada a multiplicação das taxas ainda chamadas moderadoras, embora já impropriamente. Ou a informação de que para aceder ao Rendimento Social de Inserção terá agora um desgraçado que assinar contrato, o que confere à coisa um ar de negócio que pode agradar aos deslumbrados pela civilização do business mas deve aterrorizar os que, com dura experiência já sofrida ou apenas por ouvir falar, justificadamente temem os difíceis labirintos da burocracia sempre envolta não apenas em papéis mas também em cansativas esperas e não raramente em maus modos. Em qualquer destes dois casos ou noutros equivalentes, verá o telespectador que são muitos os velhos que aproveitam o encontro com a TV para se queixarem de mais uma infelicidade que sobre eles desabou (ou, mais exactamente, que sobre eles foi arremessada), mas verá também muitos cuja velhice ainda não assoma no horizonte mas foram condenados a uma espécie de triste equivalência: também eles estão desamparados, privados dos meios de subsistência digna, situados no limiar do desespero ou à beira dele. Porque adoeceram e arrancarão porventura à alimentação os euros necessários para pagarem as consultas médicas que lhes são indispensáveis, porque não têm quaisquer proventos mas também não têm condições físicas mínimas para calcorrearem ruas e escadas em busca de um emprego de facto inexistente. Porque são pobres, enfim, e pobres sem lenitivo à vista. É claro que, perante isto ou quanto com isto se pareça, o Governo exibe alibis: há muitas isenções na área da Saúde, haverá compreensão na atribuição do RSI. É canto que nem de sereia chega a ser e que é diariamente desmentido pelo que se sabe deste País não tanto diante dos televisores como nas ruas, nos transportes públicos, à porta dos super e hipermercados. Pelo que já se sabe e pelo mais que se saberá a breve trecho, logo que o calendário mude de ano e se apertem ainda mais as tenazes que dilaceram o quotidiano dos pobres.

 

A estratégia da neblina

 

Entretanto, como todos os dias é demonstrado pela prática, os canais generalistas mantêm uma sábia prioridade no alinhamento das notícias que nos trazem. Não é que pura e simplesmente omitam que o ministro Macedo, o que em tempos mandou rezar missa de acção de graças pelo êxito na cobrança de impostos e agora poderá mandar missa de requiem pela alma dos que morrerem por escassez de cuidados médicos, perpetrou um bestial aumento das tais taxas ditas moderadoras. Ou que silenciem que o ministro Mota Soares, o que ganhou fama subindo de «Vespa» a Calçada da Ajuda e descendo-a num carro topo-de-gama, reforçou a barreira burocrática erguida entre milhares de infelizes e a mínima esmola estatal a pretexto de que alguns deles não são assim tão infelizes. Não, os generalistas, tal como aliás os que não o são, não são tão anacrónicos que apliquem a velha técnica da eliminação: optam pela estratégia do nevoeiro. Abrem os telenoticiários com as últimas do julgamento do Caso Rui Pedro, e aí fica a atenção dos cidadãos telespectadores envolta na peculiar neblina de saber se o arguido Afonso vai ou não ser condenado e, sobretudo, se se saberá afinal o que foi feito do Rui. Dois dias antes, com resultados equiparáveis, era O Caso do Estripador Português, este directamente tocado por questões de sexo, o que é sempre um enorme aliciante. Antes ainda eram Duarte Lima e O Mistério do Crime no Brasil. Por exemplo. Assim, de caso em caso, de teleberreiro em teleberreiro, se vai fazendo o possível para retirar do primeiro plano da atenção nacional a fome que o desemprego gera, o desespero que a perda da casa implica, o contraste abissal entre os portugueses que se mantêm na abundância e os que se afundam na penúria. Não é a censura, é uma habilidade. Não é a brutalidade, é uma sabedoria. Não é a comunicação social, é a manipulação social.

Correia da Fonseca