Para acabar de vez com a Cultura

Manuel Augusto Araújo

Por­tugal irá viver em 2012 o pri­meiro de muitos anos de agra­va­mento de de­sem­prego, da perda de di­reitos so­ciais e hu­manos, do fosso entre os ricos, cada vez menos e cada vez mais ricos, e os po­bres, cada vez em maior nú­mero e cada vez mais po­bres. O pri­meiro de muitos anos de mi­séria ma­te­rial e moral, da­quilo a que o pri­meiro-mi­nistro e os seus pares ape­lidam com grande des­pudor de de­mo­cra­ti­zação da eco­nomia. Será o pri­meiro ano de muitos ou­tros anos co­gi­tados em se­gunda mão por aquelas mentes ba­fi­entas que querem fazer re­tro­ceder Por­tugal aos anos do fas­cismo sem a bru­ta­li­dade, no dizer deles os ex­cessos, mas com igual nível de ex­plo­ração, de de­si­gual­dades so­ciais, de perda de li­ber­dades, di­reitos e ga­ran­tias dos ci­da­dãos e dos tra­ba­lha­dores. Será o pri­meiro ano de muitos ou­tros anos, se no meio do ca­minho que essa gente cheia de em­páfia julga ir tri­lhar sem es­co­lhos, não se co­locar uma enorme pedra de re­sis­tência que os trave de­fi­ni­ti­va­mente. Uma pedra onde brilhe a luz do aço de Abril, for­jado nos ideais de uma de­mo­cracia eco­nó­mica, so­cial, po­lí­tica e cul­tural avan­çada.

A Cul­tura é um dos campos mais ame­a­çado pela de­vas­tação que este Go­verno está a pro­duzir em todos os ou­tros campos onde ar­re­mete.

Que se po­deria es­perar quando se soube que a pasta da Cul­tura seria so­bra­çada pelo pri­meiro-mi­nistro de que não se co­nhece in­te­resse cul­tural para lá de ter tido in­cur­sões co­rais onde exibiu a sua voz de ba­rí­tono tar­ta­mu­de­ante, de ter chum­bado num cas­ting do La Feria, essa es­trela in­ter­mi­tente das te­a­tradas na­ci­o­nais, e de se poder pre­sumir teve e tem ma­nhãs de ful­gu­rantes can­to­rias na casa de banho. Com tal cur­rí­culo as ex­pec­ta­tivas eram nulas. Para essa gente a Cul­tura seria e será sempre cousa dis­tante, útil para abri­lhantar noites mun­danas, exibir em mo­mentos po­lí­tico-so­ciais cu­riais, vi­sitar cau­te­lo­sa­mente para ser visto para os apro­pri­ados re­gistos fíl­micos e fo­to­grá­ficos.

Havia a ne­ces­si­dade de es­co­lher um com­parsa, o que não seria muito di­fícil. Na vida de um pri­meiro-mi­nistro há sempre um in­te­lec­tual qual­quer pronto a servir e jus­ti­ficar todas e quais­quer mal­fei­to­rias. O Co­elho, ha­bi­tuado às per­di­guei­rices da po­lí­tica, ra­pi­da­mente se aper­cebeu que tinha à mão de se­mear al­guém que bem se qua­drava nos seus pro­pó­sitos mai­ores: lixar a Cul­tura sem fazer muito ba­rulho. Foi tiro e queda. Há que dizer que quando apontou ao Vi­egas já o Vi­egas an­dava há algum tempo a apa­recer e de­sa­pa­recer no campo de tiro da bar­raca de feira da cam­panha elei­toral a fazer-se ao acerto do dis­paro. Actor muito ac­tivo de uma cul­tura bal­sâ­mica onde con­fluem com igual im­por­tância e re­cebem tra­ta­mento equi­va­lente as li­te­ra­turas, os vi­nhos de alto ga­ba­rito, os co­men­tá­rios de fu­tebol, os uís­ques raros, a mais re­fi­nada gas­tro­nomia, os cha­rutos da me­lhor li­nhagem, os mais re­ac­ci­o­ná­rios co­men­tá­rios po­lí­ticos em­bru­lhados em sedas ar­ti­fi­ciais que bem se moldam ao seu pen­sa­mento de li­be­ra­lote de meia ti­jela pós-mo­derna. Per­tence aquela raça de in­te­lec­tuais or­gâ­nicos, como Gramcsi os de­finiu, aqueles que «dis­si­mulam ci­ni­ca­mente a do­mi­nação bur­guesa em seus pontos es­sen­ciais. Cum­prem a missão odiosa de fazer aceitar uma ordem e for­ne­cendo-lhe jus­ti­fi­ca­tivas. Tra­ba­lham para afirmar e pro­pagar as ver­dades par­ciais en­gen­dradas pela bur­guesia e úteis ao seu “poder”» (Les Chi­ennes de Garde, Paul Nizan, Mas­pero 1978). Tudo o que para ele se pode ins­crever no circo dos re­quin­tados in­te­resses cul­tu­rais de uma certa cul­tura mun­dana onde se es­fumam os ques­ti­o­na­mentos da Cul­tura que, na te­oria e na prá­tica, so­bres­salta e pro­cura trans­formar a vida. Por onde passa, Vi­egas deixa o rasto per­fu­mado e per­sis­tente do con­for­mismo que bem se quadra com as suas ha­bi­li­dades de sur­fista sempre na crista das modas ditas cul­tu­rais. Agora a sua ex­pec­ta­tiva é lixar a Cul­tura em sur­dina, fu­mando umas cha­ru­tadas da paz.

O seu sor­riso sim­pá­tico pronto a aco­lher todo o mundo e nin­guém, nas teias de aranha das suas ar­gú­cias a que es­tava ha­bi­tuado, do lá vai a cul­tura, dá cá o pé, lá passou a cul­tura, toma lá o pé, pe­rante umas ru­go­si­dades que não con­se­guia aplainar, ra­pi­da­mente se trans­formou num rictos im­pla­cável, ame­a­çando, de­mi­tindo, im­pondo o seu querer e as me­didas mais es­ta­pa­fúr­dias para afundar a Cul­tura ar­gu­men­tando que «nos pró­ximos anos temos que nos ha­bi­tuar a uma mu­dança com­pleta de pa­ra­digma».

Vi­egas vai acla­rando o pa­ra­digma no meio da mais in­de­co­rosa de­ma­gogia. O que mais diz, re­pete e so­letra, acen­tu­ando cada sí­laba para que não restem dú­vidas é: «Não há di­nheiro!». Um Go­eb­bels de pa­co­tilha. En­quanto o outro pu­xava da pis­tola cada vez que ouvia falar de Cul­tura, este puxa da car­teira, com a mesma ve­lo­ci­dade e pon­taria. Os re­sul­tados são idên­ticos!



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