Mão-de-obra barata estrangeira

Trabalhadores agrícolas sazonais na Áustria

Sónia Melo

Tra­ba­lham por três euros à hora nos campos de cul­tivo da re­gião do Tirol. De sol a sol, à volta da ci­dade de Inns­bruck. Faça chuva ou faça sol. As suas mãos gre­tadas são as pri­meiras a tocar os nossos le­gumes. São os tra­ba­lha­dores agrí­colas que vêm de longe para ajudar a fazer a co­lheita, porque os aus­tríacos já não tra­ba­lham na la­voura sob estas con­di­ções.

Cada um destes tra­ba­lha­dores sa­zo­nais obtém uma li­cença de tra­balho para seis meses, vá­lida uni­ca­mente para a área da agri­cul­tura

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Às seis da manhã, en­quanto o trá­fego na auto-es­trada do vale do rio Inn ainda flui sem atritos, um au­to­carro conduz An­drej* e mais de­zas­sete tra­ba­lha­dores das co­lheitas aos campos que en­volvem a ca­pital do Tirol. Chove. An­drej deixa a mo­chila no carro, dentro leva o al­moço na mar­mita. Uma cinta sobre a ca­mi­sola ajuda An­drej a su­portar me­lhor estar o dia in­teiro cur­vado. Nos pés traz cal­çadas ga­lo­chas. A capa de chuva verde há já um par de meses que deixou de ser im­per­meável. A faca na mão é o seu único ins­tru­mento de tra­balho. Ao todo 59 euros foi quanto pagou ao chefe pelo equi­pa­mento no início da es­tação: a capa custou qua­renta, as ga­lo­chas doze e a faca sete.

Eles co­lhem a grande ve­lo­ci­dade. Hoje ra­ba­netes. Com as mãos sem luvas. Pri­meiro ar­rancar. Re­tirar as fo­lhas es­tra­gadas. Fazer mo­lhos de quinze. En­cher as caixas. Em­pi­lhar no atre­lado do tractor. De­pressa, porque por caixa não ga­nham mais de cin­quenta cên­timos. Em média An­drej enche oi­tenta caixas por dia, o que lhe cor­res­ponde a um ganho de qua­renta euros. No pico do Verão uma jor­nada de tra­balho pode chegar a durar de­zas­seis horas. An­drej re­cebe entre qua­tro­centos e se­te­centos euros por mês, à volta de três euros por hora. De acordo com o es­ti­pu­lado pelo con­trato co­lec­tivo de tra­balho, um tra­ba­lhador de co­lheita na Áus­tria não pode ga­nhar menos do que 5,70 euros por hora, mesmo que seja pago por quan­ti­dade co­lhida.

Este ano foi con­ce­dido aos agri­cul­tores uma quota de 530 tra­ba­lha­dores sa­zo­nais. Este con­tin­gente é fi­xado pelo Mi­nis­tério da Eco­nomia e do Tra­balho e pelo Centro de Em­prego do Tirol con­so­ante a de­manda dos agri­cul­tores e a si­tu­ação ac­tual do mer­cado de tra­balho. De­ter­mina quantos tra­ba­lha­dores oriundos de países extra-co­mu­ni­tá­rios podem la­borar no Tirol. A mai­oria é pro­ve­ni­ente da Ucrânia e da Sérvia, uma grande parte é da Ro­ménia e da Bul­gária – apesar da adesão à UE estes dois úl­timos países ainda estão su­jeitos a res­tri­ções ao mer­cado livre do tra­balho dentro da co­mu­ni­dade. Cada um destes tra­ba­lha­dores sa­zo­nais obtém uma li­cença de tra­balho para seis meses, vá­lida uni­ca­mente para a área da agri­cul­tura. Os agri­cul­tores, abor­dados acerca do con­tin­gente es­ti­pu­lado, queixam-se que este é in­su­fi­ci­ente. Porém, não em­pregam ci­da­dãos da União Eu­ro­peia, já que estes não estão obri­gados a tra­ba­lhar so­mente na agri­cul­tura e além disso «de­pois de al­guns dias de tra­balho, os aus­tríacos têm dores de costas e já não vão para o campo», afirma Al­fred Un­mann, da Re­par­tição dos pro­du­tores de hor­ta­liças da Câ­mara da Agri­cul­tura do Tirol.

 

Um bom ne­gócio

 

Esta é uma das poucas de­cla­ra­ções por parte dos agri­cul­tores. Abor­dados quanto aos seus aju­dantes na co­lheita, poucos são aqueles que se pro­nun­ciam, pre­fe­rindo ficar anó­nimos ou nem se­quer se dis­po­ni­bi­li­zando para falar. A en­ti­dade pa­tronal de An­drej negou-se mesmo a ser en­tre­vis­tada, con­fron­tada com ques­tões acerca das con­di­ções de tra­balho dos seus em­pre­gados.

Para Al­fred Un­mann, da Câ­mara da Agri­cul­tura, fun­ciona tudo às mil ma­ra­vi­lhas: «os aju­dantes sa­zo­nais de co­lheitas que chegam de ou­tros países ga­nham aqui um bom di­nheiro, em pro­porção àquilo que são os sa­lá­rios nos seus países de origem.» Um ponto de vista que é par­ti­lhado pelos agri­cul­tores. Di­eter Behr, es­pe­ci­a­lista do Fórum Civil Eu­ropeu para a Mi­gração e Agri­cul­tura, de­fende, por sua vez, uma te­oria muito di­fe­rente desta. Numa en­tre­vista que deu à Radio FRO da re­gião da Alta Áus­tria em 2004, o pe­rito já dizia: «estes tra­ba­lha­dores es­tran­geiros devem ser tidos em conta en­quanto seres hu­manos e não só como força la­boral. Até porque eles não custam pra­ti­ca­mente nada ao país, muito pelo con­trário, con­tri­buem mais do que aquilo que re­cebem.»

«Quando o tempo está mau e os le­gumes são de má qua­li­dade, não ga­nhamos mais de vinte euros por dia», diz An­drej, que até os elás­ticos que usa para atar os mo­lhos de ra­ba­netes teve de com­prar à ca­deia de su­per­mer­cados cli­ente do seu chefe. «Em anos de má co­lheita, não com­pensa fazer este tra­balho», acres­centa An­drej. No en­tanto aceita estas con­di­ções porque no seu país não tem em­prego.

Só ao meio-dia é que fazem uma pausa. O al­moço é co­mido frio, pois foi co­zi­nhado na noite an­te­rior. É nesta al­tura que muitos apro­veitam para ligar à fa­mília. «Eu tra­balho muito, mas como carne todas as se­manas», conta An­drej à sua mãe, que se re­go­zija no outro lado da linha. Não há casas de banho à vista, em­bora Josef Schirmer, pre­si­dente do Grémio de Pro­du­tores de Le­gumes do Tirol, ter ga­ran­tido no pas­sado mês de Junho, numa en­tre­vista ao Diário de No­tí­cias do Tirol, serem co­lo­cados em todos os grandes campos de cul­tivo da re­gião uni­dades mó­veis de la­trinas para as­se­gurar os pa­drões de hi­giene. Na­quela al­tura a in­qui­e­tação era grande, ao serem re­ve­ladas as con­di­ções de vida e de hi­giene dos tra­ba­lha­dores de co­lheita em Ro­sarno, no Sul da Itália. In­ter­pe­lado pelo Diário de No­tí­cias do Tirol quanto às con­di­ções de hi­giene nos campos da re­gião, Schirmer não apontou ir­re­gu­la­ri­dades. Até ao fecho de edição, Josef Schirmer não teve dis­po­ni­bi­li­dade para nos prestar de­cla­ra­ções.

 

Uma marca da ex­plo­ração

 

An­drej é um dos cerca de 160 em­pre­gados de um grande agri­cultor. Com uma área de cul­tivo de mais de cem hec­tares, o em­pre­gador é um dos mai­ores pro­du­tores agrí­colas da re­gião. Jun­ta­mente com mais trinta pro­du­tores de le­gumes formam a marca Ver­duras do Tirol. Uma marca que re­pre­senta pro­dutos de alta qua­li­dade e re­gi­o­nais – con­tudo as se­mentes são da Ho­landa e os tra­ba­lha­dores do Leste da Eu­ropa. Cada vez mais pe­quenos agri­cul­tores têm que fe­char os seus ne­gó­cios. Os grandes, porém, tornam-se cada vez mai­ores. Para isso con­tri­buem os sub­sí­dios da União Eu­ro­peia, que os con­cede de acordo com a área de cul­tivo. Só no ano de 2009 o em­pre­gador de An­drej re­cebeu 85 000 euros em sub­ven­ções.

No campo vai fi­cando es­curo. A faca de­sa­pa­rece no­va­mente na mo­chila. Já sem força nas pernas, An­drej sobe ao au­to­carro. O ca­pataz conduz o grupo à casa do pes­soal, que se en­contra nas ime­di­a­ções de Inns­bruck. Mesmo assim para An­drej o tra­balho ainda não acabou, já que o au­to­carro que os trans­porta aos campos de cul­tivo ainda tem que ser limpo – «quase uma hora de tra­balho, pelo qual não re­ce­bemos nem um cên­timo». Ele está sujo de um dia pe­sado de la­buta. A terra cola-se-lhe na pele. O seu único de­sejo de mo­mento é tomar banho. Mas ainda tem que es­perar, já que par­tilha a casa de banho com ou­tros vinte co­legas. «Mo­ramos quatro pes­soas num quarto de 16m² com uma kit­che­nette e cada um de nós paga 110 euros de renda ao pa­trão», re­lata An­drej. A casa do pes­soal é com­posta por qua­renta quartos. O em­pre­gador de An­drej fac­tura men­sal­mente à volta de 18 000 euros adi­ci­o­nais alu­gando os quartos aos seus tra­ba­lha­dores. «Nem na ci­dade de Inns­bruck as rendas são tão caras como aqui», gra­ceja An­drej. No pe­queno quarto al­guém acende o fogão. Todas as noites são pre­pa­radas aqui oito re­fei­ções – para hoje e para amanhã.

No final do mês é pre­ciso estar atento no mo­mento de re­ceber o or­de­nado no es­cri­tório: «só nos é mos­trado o ro­dapé da folha de ven­ci­mentos, onde temos que as­sinar. Tapam o resto da folha. Temos que as­sinar mas não nos deixam levar uma cópia con­nosco», conta An­drej. Àqueles que não sabem falar alemão e que por­tanto não se sabem de­fender, «guardam-lhes» o or­de­nado até acabar a es­tação numa conta ban­cária da em­presa. Só de vez em quando é que re­cebem adi­an­ta­mentos do pró­prio di­nheiro. Nos úl­timos anos An­drej teve que ir ao mé­dico três vezes. De cada vez ve­ri­ficou que o seu cartão de saúde era in­vá­lido. A as­sis­tente do mé­dico li­gava à se­cre­tária do seu chefe e de re­pente – «es­tava tudo re­sol­vido».

Não se en­contra à venda no su­per­mer­cado um pe­pino torto. Assim como uma ce­noura que­brada nunca aban­dona o ar­mazém do agri­cultor. Pés de al­face que sejam muito pe­quenos ou muito grandes e que por isso não cum­pram com as normas de qua­li­dade são se­pa­rados. A ba­lança das ca­deias dis­tri­bui­doras é im­pi­e­dosa. Para ate­nuar ou co­brir estes pre­juízos os la­vra­dores têm que re­duzir custos. «Já que os custos com o pes­soal cor­res­pondem a um terço do preço de venda», sa­li­enta Al­fred Un­mann, da Câ­mara da Agri­cul­tura, «sem a força la­boral es­tran­geira a pro­dução não seria viável». Está claro por que mo­tivo os aus­tríacos já não la­butam nos campos de cul­tivo. Igual­mente óbvio que por con­se­guinte seja ne­ces­sária uma mi­gração.

Na casa do pes­soal, a poucos qui­ló­me­tros de Inns­bruck, fe­cham-se as cor­tinas. O dia chegou ao fim, mas amanhã con­tinua.

 

*A ver­da­deira iden­ti­dade do tra­ba­lhador e do res­pec­tivo em­pre­gador é do co­nhe­ci­mento da jor­na­lista.

 

Ori­ginal pu­bli­cado no jornal aus­tríaco 20er



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