Tributo ao meu amigo de sempre – Zeca Afonso

Alfredo de Matos

No 25.º ani­ver­sário da morte de José Afonso – o Zeca Afonso como lhe cha­maram todos os amigos – o Avante! presta tri­buto ao com­po­sitor, poeta, cantor, mi­li­tante in­sub­misso de causas justas, através do tes­te­munho do seu amigo Al­fredo Matos que tão bem o des­creve como o que ele sempre foi: um ver­da­deiro ca­ma­rada, no sen­tido mais su­blime da ex­pressão.

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Foi um mo­mento par­ti­cu­lar­mente emo­ci­o­nante quando o Zeca, pe­rante in­sis­tência con­ti­nuada, a que não re­sistiu, in­ter­pretou, na­quele local, na­quela Vila, na­quele ano, àquela hora e para aquela imensa mul­tidão, aquele li­belo acu­sa­tório te­mível e sempre ac­tual – «os Vam­piros». Que noite ines­que­cível!

Co­nhe­cemo-nos no início de 1967. Com frequência nos vi­si­támos. Eu, na sua pri­meira casa, em Se­túbal, o Zeca, na minha casa, no Bar­reiro e, aqui, con­vi­veram, con­nosco, al­gumas vezes, dois grandes amigos co­muns – o Carlos Pa­redes e o Adriano Cor­reia de Oli­veira. Mo­mentos de con­versa livre e amiga.

De­sen­vol­vemos uma ami­zade só­lida, na base de imensas cum­pli­ci­dades, à volta dos nossos ideais, prin­ci­pal­mente. Esta re­lação levou a que o Zeca tenha ade­rido e par­ti­ci­pado, com grande en­tu­si­asmo, na­quele me­mo­rável es­pec­tá­culo, um au­tên­tico con­certo, talvez a maior e mais vi­brante sessão de po­esia e canto que en­cheu como um ovo o gi­násio do Luso do Bar­reiro, no dia 11 de No­vembro de 1967, um sá­bado, da ini­ci­a­tiva do Ci­ne­clube do Bar­reiro – cuja di­recção, li­de­rada por Álvaro Mon­teiro, viria, por esse mo­tivo, a ser presa pela PIDE – e da Co­missão Cul­tural do Luso. Este foi mais um dos mo­mentos em que to­mámos nas nossas mãos a pro­cura da li­ber­dade que o poder fas­cista nos ne­gava.

Adriano Cor­reia de Oli­veira não cantou porque, como ex­plicou, es­tava na tropa. Odete Santos de­clamou po­etas como An­tónio Ge­deão e Ma­nuel da Fon­seca. Te­resa Paula Brito in­ter­pretou Para Não Dizer Que Não Falei De Flores e es­pi­ri­tuais ne­gros. O vir­tu­o­sismo de Carlos Pa­redes e Fer­nando Alvim em temas como Verdes Anos. Por fim, Zeca Afonso acom­pa­nhado à viola por Rui Pato. A apre­sen­tação, im­pro­vi­sada mas con­se­guida, es­teve a cargo do bar­rei­rense Ma­nuel Tei­xeira Gomes. Serviu de apoio à par­ti­tura com os textos do Zeca, o muito jovem, e meu filho, Vítor de Matos.

Uma mul­tidão, im­pen­sável, na­queles tempos e na­quelas con­di­ções, re­petia com in­sis­tência:

«Vam-pi-ros», «Vam-pi-ros», «Vam-pi-ros», «Vam-pi-ros».

O Zeca não queria, re­sistiu até ao li­mite, mas era im­pos­sível não ceder ao pe­dido in­ces­sante da mul­tidão. Todas as emo­ções trans­bor­daram quando aquela Voz rompeu, como um grito, o mo­mento de si­lêncio:

 

«No céu cin­zento

Sob o astro mudo

Ba­tendo as asas

Pela noite ca­lada

Vêm em bandos

Com pés de ve­ludo

Chupar o sangue

Fresco da ma­nada».

 

Ovação po­de­rosa es­talou na sala. E, em coro, todos, a uma voz, su­bli­nham;

 

«Eles comem tudo

Eles comem tudo

Eles comem tudo

E não deixam nada».

 

Es­tava a viver-se um im­pres­si­o­nante e in­des­cri­tível acon­te­ci­mento, de grande im­pacto na re­gião, que, num pe­ríodo de cres­centes ac­ções po­lí­ticas opo­si­ci­o­nistas, em­polgou o co­meço da mo­vi­men­tação dos de­mo­cratas para o in­tenso pe­ríodo elei­toral de 1969, em que, no Con­celho do Bar­reiro, a CDE venceu, nas urnas, a União Na­ci­onal.

 *

 A 22 de Julho de 1970, Zeca de­dicou-me «Por Trás Da­quela Ja­nela», Poema, por si criado e ma­nus­crito, que pos­te­ri­or­mente me en­tregou.

Es­tava eu, então, preso no Forte de Ca­xias. Foi em Maio da­quele ano, no dia 3, que a PIDE as­saltou, si­mul­ta­ne­a­mente, no Dis­trito de Se­túbal, de ma­dru­gada, oito casas, pren­dendo oito ci­da­dãos: quatro, em Se­túbal – Carlos Lopes, An­tónio Gon­çalves, Fer­nando Carlos e Za­ca­rias Fer­nandes. Um, na Moita – Sta­line Ro­dri­gues. Um, em Alhos Ve­dros – Le­onel Co­elho. Dois, no Bar­reiro – Álvaro Mon­teiro e Al­fredo de Matos.

Pelo Natal de 1972, este Poema, também com mú­sica do Zeca, de in­ter­pre­tação di­fícil como o pró­prio o re­feria, foi edi­tado em disco, sob o tí­tulo, Eu Vou Ser Como a Tou­peira, que também in­cluiu a canção A Morte Saiu à Rua, de­di­cada ao es­cultor Dias Co­elho, di­ri­gente do PCP, as­sas­si­nado pela PIDE em 19 de De­zembro de 1961. Eis o que diz o ma­nus­crito:

 

Ao Al­fredo Matos

Por trás da­quela ja­nela

Por trás da­quela ja­nela

Faz anos o meu amigo

E irmão

 

Não pôs cravos na la­pela

Por trás da­quela ja­nela

Nem se ouve ne­nhuma es­trela

Por trás da­quele portão

 

Se aquela pa­rede an­dasse

Se aquela pa­rede an­dasse

Eu não sei o que faria

Não sei

 

Se o mundo agora acor­dasse

Se aquela pa­rede an­dasse

Se um grito enorme se ou­visse

Duma cri­ança ao nascer

 

Talvez o tempo cor­resse

Talvez o tempo cor­resse

E a tua voz me aju­dasse

A cantar

 

Mais dura a pedra mo­leira

E a fé, tua com­pa­nheira

Mais pode a flecha cer­teira

E os rios que vão pró mar

 

Por trás da­quela ja­nela

Por trás da­quela ja­nela

Faz anos o meu amigo

E irmão

 

Na noite que segue ao dia

Na noite que segue ao dia

O meu amigo lá dorme

De pé

E o seu perfil anuncia

Na­quela pa­rede fria

Uma canção de ale­gria

No vai e vem da maré

As­sina: José Afonso

 

Nas mi­nhas cartas da prisão, à Eve, a minha com­pa­nheira, dou-lhe conta das emo­ções ao ouvir aquela Voz, vinda de um gira-discos, que uma vez por se­mana, du­rante es­cassas horas, es­cu­tá­vamos in­ter­ca­lada com a voz de Paco Ibañez, de Jean Ferrat, de Léo Ferré, de Adriano Cor­reia de Oli­veira, de Be­ethoven… É a Voz. Aquela Voz. Nas cartas, eu ia es­cre­vendo, frases es­pa­lhadas pelo texto que lá iam pas­sando «… ondas eléc­tricas per­correm todo corpo, eri­çando-lhe os pelos, tal pele de ga­linha, sen­sação que se vai re­pe­tindo, quando o nosso Zeca ar­ranca o São Ma­caio… e, o Me­nino do Bairro Negro – Bairro, bairro negro onde não há pão não há sos­sego… e, Vejam bem que não há só gai­votas em terra quando um homem se põe a pensar… e, Os Vam­piros – No céu cin­zento sob um astro mudo. Ao ecoar Maio Ma­duro Maio, o si­lêncio sus­pende a nossa res­pi­ração».

 

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No 1.º de De­zembro de 1970, no Forte de Ca­xias, es­cre­vi­nhei um texto como se fosse um poema, de­di­cado ao Zeca, que dele nunca teve co­nhe­ci­mento, talvez porque o achei de valor muito re­du­zido, mesmo pobre, em­bora com algum sim­bo­lismo pelo lugar e con­di­ções em que foi criado. Ei-lo:

 

Um dia gol­pe­aram o pé da flor

Mas a cri­ança agarrou a flor

Que voltou a dar pé­talas gar­ridas

Com um per­fume ainda mais doce

 

E a flor se fez ár­vore

 

De­pois negro ven­daval

Ar­rancou seu forte tronco…

Mas vi­eram as cri­anças

As Mu­lheres e os ho­mens

Que vol­taram a plantar a ár­vore

Que voltou a dar flores e frutos

Para as cri­anças

As mu­lheres e os ho­mens.

 

E a ár­vore se fez bosque…

 

Aqui chegou o poeta…

Não há me­lhor me­lodia

Que esta faca afiada

Que este golpe de mar­telo

Que um va­gido de cri­ança

 

Treme a terra bem no fundo de nós

Acordam os Po­etas

Os sol­dados er­guem as armas

Galgam as águas dos rios

Rasgam as aves o céu…

 

Ouvi a sua voz

É Por­tugal que canta

É Por­tugal que está no seu poema

E a ale­gria volta cheia de mú­sica

Trova. Ba­lada. Canção

O Poeta canta a vida da gente

Pes­cador. Cam­ponês. Re­si­neiro. Sol­dado

Poeta. Ope­rário. Cei­feira. Doutor

 

Tudo é vida no seu canto

Flor. Árvore. Fruto. Pedra

Tudo em ti é mo­vi­mento

 

Rei que tu não foste sendo

Ao teu País dás o teu grito

Há uma nuvem de gente no teu canto

 

Na tua voz há festa

Tem raiva o teu cantar

Há amor e es­pe­rança nas tuas Pa­la­vras

É Por­tugal que está no teu Poema

É Por­tugal que está na tua voz.

 

De­di­cado à minha irmã, Con­ceição – presa em 1965, de­pois em 1968, ac­ti­vista po­lí­tica clan­des­tina, membro do PCP, tor­tu­rada pela PIDE de forma par­ti­cu­lar­mente cruel – o Zeca es­creveu um poema, ofe­re­cendo-lhe o texto por si ma­nus­crito, na versão ori­ginal. A letra, que ataca ex­pli­ci­ta­mente a PIDE em ho­me­nagem a uma com­ba­tente ex­pres­sa­mente no­meada, nunca chegou a ser gra­vada. Ei-la:

 

À Con­ceição Matos

Na Rua An­tónio Maria

Da Primaz Ins­ti­tuição

Vive a Maior Con­fraria

Desta vá­lida Nação

 

E muita ma­tula brava

Ainda pen­sava

Que havia de vir

Um dia assim de re­pente

Para toda a gente

Voltar a sorrir

 

Mas eles, Con­ceição, vão

Lamber as botas

Comer à mão

Dum novo Pina Ma­nique

Com outra lábia

Com outro tique

 

Na Rua An­tónio Maria

Con­venha a todos saber

A pa­trió­tica espia

Sabe bem onde morder

 

Vela pela vossa mo­rada

No vão duma es­cada

Sem se anun­ciar

E ofe­rece a quem bem des­tina

Um quarto de es­quina

Com vistas pr`ó mar

 

Mas eles, Con­ceição, vão

Lamber as botas

Comer à mão

Dum novo Pina Ma­nique

Com outra lábia

Com outro tique

 

Tem quatro le­tras apenas

Mas outro nome lhe dão

Nesta For­ta­leza an­tiga

Só não muda a guar­nição

E muita ma­tula ufana

Cui­dado que a mana

Mor­rera de vez

Deu graças à Dª. Ur­raca

Ao som da res­saca

Que o pa­gode fez

 

Mas eles, Con­ceição, vão

Lamber as botas

Comer à mão

Dum novo Pina Ma­nique

Com outra lábia

Com outro tique

 

Al­deia da roupa branca

Suja de já não corar

O Zé Povo foi à França

Não se cansa de es­perar

 

O ca­pataz de fa­zenda

Pôs a quinta à venda

Para quem mais der

 

E os donos mar­caram tentos

Com novos in­ventos

Doa a quem doer

As­sina, Zeca Afonso

 

Sem que ja­mais cesse, a minha ad­mi­ração pelo Zeca – é assim o trato, que eter­na­mente se man­terá, quando ci­tado – as­senta, ainda, na sua qua­li­dade impar de cri­ador de po­esia e de mú­sico, de com­po­sitor de génio, sempre ir­re­pe­tível, de ser o seu pró­prio e maior in­tér­prete e também pelo seu ca­rácter ín­tegro, ge­ne­roso, leal, so­li­dário. Zeca, um ver­da­deiro ca­ma­rada, no sen­tido mais su­blime da ex­pressão.


O Zeca em Se­túbal

 

O Zeca Afonso foi um dos fun­da­dores e ani­ma­dores do Cír­culo Cul­tural de Se­túbal, como é sa­bido. Mas um dos lo­cais pri­vi­le­gi­ados da sua ac­tu­ação, assim como de muitos ou­tros can­tores e fa­distas ama­dores, era a ca­te­dral da «cons­pi­ração» co­mu­nista, a «Aca­demia Sapec», a ta­berna do nosso ca­ma­rada Je­ró­nimo Bár­bara – o Sapec –, aberta há 43 anos, e que hoje, desde o seu fa­le­ci­mento, é o Res­tau­rante Egas, man­tendo per­sis­ten­te­mente todos os do­mingos uma noite de fado.

Não é por acaso que o «Egas» é fiel de­po­si­tário de uma re­pro­dução do Avante! nº. 48, de Agosto de 1937, onde há um texto in­ti­tu­lado «O FADO E O FA­CISMO».

Cu­ri­o­sa­mente, na noite de 15 de Fe­ve­reiro pas­sado, dia em que o Avante! fez 81 anos, a neta do Sapec, Ca­ro­lina, leu entre acordes «A morte saiu à rua», grito de José Afonso contra o as­sas­si­nato de José Dias Co­elho, a 19 de De­zembro de 1961.

 



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