Rádio Portugal Livre foi criada há 50 anos

Emissora ao serviço do povo, da democracia e da independência nacional

Gustavo Carneiro

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Fala a Rádio Por­tugal Livre, emis­sora por­tu­guesa ao ser­viço do povo, da de­mo­cracia e da in­de­pen­dência na­ci­onal. Eram estas as pa­la­vras, ou­vidas pela pri­meira vez a 12 de Março de 1962, que mar­cavam o início das emis­sões da rádio clan­des­tina do PCP – pa­la­vras que se ou­viram pelo menos duas vezes por dia du­rante os mais de 12 anos e meio em que a Rádio Por­tugal Livre fun­ci­onou.

Nunca será pos­sível ava­liar com rigor o real im­pacto que a emis­sora clan­des­tina do PCP (tal como o Avante!, O Mi­li­tante e qual­quer outro jornal ou bo­letim par­ti­dário ou uni­tário) teve na for­mação da cons­ci­ência dos ope­rá­rios, dos tra­ba­lha­dores, dos in­te­lec­tuais, dos es­tu­dantes, dos sol­dados, na luta que de­sem­bocou em Abril no der­ru­ba­mento do fas­cismo e na in­ces­sante ba­talha pela cons­trução do Por­tugal de­mo­crá­tico a ca­minho do so­ci­a­lismo. Mas uma coisa é certa: todos esses ór­gãos rom­peram a cen­sura com que o fas­cismo pre­tendeu amor­daçar o País; todos eles de­nun­ci­aram a ex­plo­ração e a re­pressão fas­cistas; re­ve­laram lutas tra­vadas e vi­tó­rias al­can­çadas; deram a co­nhecer a so­li­da­ri­e­dade dos povos do mundo com a re­sis­tência an­ti­fas­cista em Por­tugal; ape­laram e ci­men­taram a uni­dade, di­fun­diram e ex­pli­caram as aná­lises e ori­en­ta­ções do Par­tido.

Outro facto in­des­men­tível é que 1962 marca o início de uma nova – e der­ra­deira – ofen­siva po­pular contra o fas­cismo, com o grande 1.º de Maio, a con­quista da jor­nada de oito horas nos campos do Sul e as lutas es­tu­dantis. Ao êxito destas jor­nadas não será es­tranho o pró­prio apa­re­ci­mento da Rádio Por­tugal Livre.

Para as­si­nalar este im­por­tante ani­ver­sário, o Avante! (que em Abril de 1962 saudou o apa­re­ci­mento dessa nova e bela voz irmã) con­versou com quatro obreiros da Rádio Por­tugal Livre: Au­rélio Santos, di­rector da RPL du­rante mais de 11 anos; Ve­rís­sima Ro­dri­gues, lo­cu­tora desde a pri­meira até à úl­tima edição; Maria da Pi­e­dade Mor­ga­dinho e Mar­ga­rida Ten­gar­rinha, que lá tra­ba­lharam res­pec­ti­va­mente du­rante 11 e seis anos.

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A Rádio Por­tugal Livre (RPL) surgiu em Março de 1962, ano de fortes lutas po­pu­lares contra o fas­cismo. Trata-se de uma sim­ples coin­ci­dência?


Au­rélio Santos (AS):
Eu penso que o pró­prio apa­re­ci­mento da Rádio animou as grandes lutas de massas ocor­ridas nesse ano, de­sig­na­da­mente o 1.º de Maio de 1962. Desde as grandes mo­vi­men­ta­ções em torno da can­di­da­tura de Hum­berto Del­gado que havia um am­bi­ente no País que tor­nava ne­ces­sário o re­curso a ou­tros meios de in­ter­venção. O PCP com­pre­endeu a im­por­tância da uti­li­zação desses meios e criou a Rádio Por­tugal Livre. Mas não bas­tava ser ne­ces­sário criar esses meios, era também pre­ciso que tal fosse pos­sível. E nessa al­tura foi pos­sível.

 

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E porquê na Ro­ménia?

 

AS: No in­te­rior do País não havia quais­quer hi­pó­teses de ins­talar uma rádio. Fazia-se a im­prensa clan­des­tina, com me­didas de de­fesa cons­pi­ra­tiva muito ri­go­rosas, mas uma rádio seria fa­cil­mente lo­ca­li­zada. Então o Par­tido pro­curou o apoio dos par­tidos co­mu­nistas que já ti­nham criado es­tru­turas se­me­lhantes para serem uti­li­zadas por par­tidos que lu­tavam em con­di­ções de di­ta­duras fas­cistas.

 

Maria da Pi­e­dade Mor­ga­dinho (MPM): Esta lo­ca­li­zação não foi um acaso, pois a Ro­ménia tinha muita ex­pe­ri­ência de ins­ta­lação no seu ter­ri­tório de rá­dios clan­des­tinas de ou­tros par­tidos e mesmo do pró­prio Par­tido Co­mu­nista da Ro­ménia, du­rante a ocu­pação nazi.

 

AS: A Rádio Por­tugal Livre ins­talou-se em Bu­ca­reste, mas nós man­ti­vemos uma total in­te­gri­dade de li­gação com o PCP, uma in­de­pen­dência total. Não tí­nhamos qual­quer li­gação com o Par­tido Co­mu­nista da Ro­ménia para lá do apoio téc­nico que nos pres­tava. Cos­tumo dizer que vi­víamos em con­di­ções de ex­tra­ter­ri­to­ri­a­li­dade, pois ac­tuá­vamos com a ca­beça dentro do País.

 

Mar­ga­rida Ten­gar­rinha (MT): Tí­nhamos os pés na Ro­ménia e a ca­beça em Por­tugal…

 

MPM: Nós sen­tíamos muito a forma como abríamos as nossas emis­sões – Fala a Rádio Por­tugal Livre, emis­sora por­tu­guesa ao ser­viço do povo, da de­mo­cracia e da in­de­pen­dência na­ci­onal –, aber­tura esta que era pre­ce­dida pelos acordes d' A Por­tu­guesa. E também não é por acaso que junto ao mi­cro­fone tí­nhamos uma ban­dei­rinha por­tu­guesa.

 

Como se ga­rantia essa li­gação tão pró­xima ao País e ao que cá se pas­sava?

 

AS: O cir­cuito de in­for­mação do Par­tido per­mitia o acom­pa­nha­mento pra­ti­ca­mente total do que se pas­sava no País. As in­for­ma­ções pas­sadas para as casas clan­des­tinas do Par­tido che­gavam à Rádio e eram fun­da­men­tais, pois davam-nos a ideia do pulsar do País, do que se fazia e do que se pen­sava em Por­tugal. E de­pois havia a es­cuta das emis­soras por­tu­guesas, a lei­tura dos jor­nais, as agên­cias in­ter­na­ci­o­nais.

 

Ve­rís­sima Ro­dri­gues (VR): Quando a Rádio co­meçou havia um ma­nan­cial de lutas em Por­tugal e os jor­nais es­tavam cheios de no­tí­cias sobre o País. Eram as lutas dos as­sa­la­ri­ados agrí­colas do Alen­tejo pelas oito horas de tra­balho ou as lutas dos es­tu­dantes, que foram alvo de muita so­li­da­ri­e­dade, em França, em Itália ou na União So­vié­tica. Não havia falta de no­tí­cias nos pri­meiros tempos, a di­fi­cul­dade era «meter o Rossio na Be­tesga».

Nós con­se­guíamos di­fundir muita coisa com bas­tante ac­tu­a­li­dade, pois muita da in­for­mação che­gava pelas agên­cias e jor­nais es­tran­geiros antes de chegar a in­for­mação do Par­tido.

Por exemplo, sou­bemos da prisão do ca­ma­rada An­tónio Dias Lou­renço, em 1962, pela France Presse, e da prisão dos meus pais, Ma­nuel Ro­dri­gues e lu­crécia dos Santos Ramos, fun­ci­o­ná­rios do Par­tido, no ano se­guinte, pelo L’U­nitá…

 

AS: Este tra­balho de re­colha de in­for­mação era uma das prin­ci­pais pre­o­cu­pa­ções da equipa da Rádio Por­tugal Livre, uma equipa que teve vá­rias com­po­si­ções: co­meçou com quatro ele­mentos, sendo o Pedro So­ares o di­rector, e foi de­pois re­for­çada com a minha ida e da Maria da Pi­e­dade, em 1963. A Mar­ga­rida chegou um pouco mais tarde, em fi­nais desse ano.

 

MT: A Ve­rís­sima é a única de nós que es­teve desde o início…

 

VR: Che­guei a Bu­ca­reste a 27 de Fe­ve­reiro de 1962 jun­ta­mente com os ou­tros ca­ma­radas que iam fazer parte da equipa. Es­tava já lá o Pedro So­ares, que tinha es­tado a tratar da im­plan­tação da Rádio. Fui com a ta­refa de lo­cução e a partir de 1968 co­mecei também a ter algum tra­balho de re­dacção. Pas­saram pela Rádio 16 pes­soas, o que re­vela al­guma es­ta­bi­li­dade.

 

AS: Foi a voz da Rádio Por­tugal Livre. Muita gente, no Alen­tejo por exemplo, quando ia com­prar um tran­sístor, per­gun­tava: «mas pode-se ouvir a me­nina?» A me­nina era a Ve­rís­sima, que nessa al­tura era uma jovem de 15 anos e a voz dela tinha uma cla­reza tão grande que iden­ti­fi­cava a rádio…

 

MPM: É ainda im­por­tante des­tacar o es­pe­cial cui­dado e até ca­rinho com que tra­tá­vamos a ilus­tração mu­sical dos nossos pro­gramas. Apesar de o tempo ser curto, pú­nhamos nisso uma grande pre­o­cu­pação, uti­li­zando so­bre­tudo mú­sica por­tu­guesa de qua­li­dade, como o Lopes-Graça, o Adriano ou o Zeca. Formos também nós, na RPL, que lan­çámos pela pri­meira vez o Avante, Ca­ma­rada pela voz da Luísa Basto.

 

Como acabou a Rádio?

 

VR: Acabou a 27 de Ou­tubro de 1974, com a lei­tura dos do­cu­mentos do VII Con­gresso (Ex­tra­or­di­nário) do PCP, re­a­li­zado a 20 de Ou­tubro. Eu par­ti­cipei nessa lei­tura. Ter­minou de­pois com uma de­cla­ração – não sei se há cópia dessa de­cla­ração – de que a Rádio sus­pendia as suas emis­sões de­vido às novas con­di­ções cri­adas. Nunca dis­semos que en­cer­rá­vamos as emis­sões, mas sim que as sus­pen­díamos.

 

AS: No 1.º de Maio com­pre­en­demos que a di­ta­dura ia cair e que se abriria uma nova pá­gina na his­tória de Por­tugal. Nos dias se­guintes, con­ti­nuámos a emitir, mas já não se­riam os por­tu­gueses que ou­viam a RPL, éramos nós que ou­víamos o que se pas­sava no País. Mas con­ti­nuámos a emitir, pois como disse a Ve­rís­sima, a Rádio ainda podia vir a ser ne­ces­sária. Até Ou­tubro de 1974 não se sabia qual a ori­en­tação que pre­va­le­ceria, já que o Spí­nola com­batia o MFA.

 

Ainda existem as gra­va­ções da RPL?

 

AS: Tí­nhamos uma co­lecção dos nossos pro­gramas em Mos­covo e outra em Bu­ca­reste. De­sa­pa­re­ceram du­rante as con­vul­sões que agi­taram o mundo so­ci­a­lista. Já tentei re­cu­perá-la em Bu­ca­reste e não foi pos­sível. O de­sa­pa­re­ci­mento dos ar­quivos e da pró­pria gra­vação dos pro­gramas da Rádio Por­tugal Livre é uma grande perda.

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Me­mó­rias, emo­ções, pres­sões e bom es­pí­rito

 

Dos tra­ba­lhos que fi­zeram para a Rádio Por­tugal Livre, quais os que re­cordam com mais emoção?

 

VR: Apesar dos poucos re­cursos que tinha, a RPL mandou re­pór­teres a vá­rios pontos do mundo. O Au­rélio foi ao Vi­et­name e es­teve em Hanói quando a ci­dade es­tava a ser bom­bar­deada e trouxe vá­rias re­por­ta­gens. A Mar­ga­rida foi às co­me­mo­ra­ções da Re­vo­lução de Ou­tubro. Também fomos às zonas li­ber­tadas da Guiné-Bissau. E en­tre­vis­támos vá­rios di­ri­gentes do Par­tido, no­me­a­da­mente o ca­ma­rada Álvaro Cu­nhal.

 

MPM: Nós vi­víamos mo­mentos de grande emoção so­bre­tudo quando nos che­gavam in­for­ma­ções sobre a li­ber­tação de ca­ma­radas. Re­cordo a li­ber­tação de José Vi­to­riano, que en­tre­vistei em Praga, onde se foi tratar, e a de Ma­nuel Ro­dri­gues da Silva, entre ou­tros.

 

MT: A Rádio também tinha um papel muito im­por­tante na de­núncia da re­pressão fas­cista. Havia uma ru­brica só de­di­cada a isso. Fi­zemos uma série de pro­gramas para a li­ber­tação de Ma­nuel Ro­dri­gues da Silva, José Vi­to­riano, Ma­nuel Guedes, José Magro… Para além disso, de­nun­ciá­vamos pides e bufos e che­gámos a di­vulgar ma­trí­culas de carros que eram usados pela PIDE.

 

VR: O ini­migo es­preita, re­for­cemos a vi­gi­lância, era assim que se cha­mava essa ru­brica.

 

Pas­semos às re­por­ta­gens. Quais as que vos mar­caram mais?

 

AC: Muitas das vezes que saía da Ro­ménia le­vava um gra­vador. Uma oca­sião, du­rante um con­gresso do PCUS, co­nheci Iuri Ga­gá­rine, que tinha che­gado do Cosmos há pouco tempo. Fiz-lhe uma en­tre­vista, uma longa en­tre­vista, com as suas im­pres­sões. Quando che­guei ao hotel, vou ouvir a gra­vação e per­cebi que não es­tava nada gra­vado. No dia se­guinte, voltei a en­contrá-lo, ex­pli­quei-lhe a si­tu­ação e ele, com aquele sor­riso ra­dioso que tinha, dis­po­ni­bi­lizou-se a gravar outra en­tre­vista para a Rádio Por­tugal Livre, que foi trans­mi­tida em ex­clu­sivo.

 

MT: Nas co­me­mo­ra­ções do 50.º ani­ver­sário da Re­vo­lução de Ou­tubro con­segui al­gumas re­por­ta­gens in­te­res­santes. O Au­rélio pôs-me um gra­vador na mão e meteu-me num avião e eu lá fui. Quando des­cobri que ao pé de mim iam uns cra­ques dos jor­nais co­mu­nistas mais im­por­tantes do mundo, senti-me pe­que­nina, mas pensei que não ia ficar atrás deles. E de facto, con­segui umas re­por­ta­gens fan­tás­ticas.

 

Lem­bras-te dos as­suntos que abor­daste?

 

MT: Falei com o ma­ri­nheiro do cru­zador Au­rora que deu ordem para que fossem dis­pa­rados os ca­nhões contra o Pa­lácio de In­verno, em No­vembro de 1917, onde es­tava o go­verno pro­vi­sório. No Uz­be­quistão, falei com as pri­meiras mu­lheres que se li­ber­taram do véu e que con­se­guiram, a partir da re­vo­lução, formar uma co­o­pe­ra­tiva de mu­lheres para se li­ber­tarem do jugo im­posto pelo is­la­mismo. Também re­colhi re­latos fan­tás­ticos do cerco de Le­ni­ne­grado, re­ve­la­dores da vi­ta­li­dade da­quele povo, da­quele par­tido e da­quela re­sis­tência contra o na­zismo. Foram umas oito ou nove re­por­ta­gens.

 

MPM: Lembro-me do or­gulho que senti quando levei uma cha­pinha ao peito que dizia «cor­res­pon­dente da Rádio Por­tugal Livre» e fui cre­den­ciada, nessa qua­li­dade, para par­ti­cipar no Con­gresso In­ter­na­ci­onal das Mu­lheres, que se re­a­lizou em 1969 em Hel­sín­quia. Fiz en­tre­vistas e re­colhi de­poi­mentos – da Va­len­tina Te­resh­kova [pri­meira mu­lher no es­paço] e de muitas di­ri­gentes de or­ga­ni­za­ções fe­mi­ninas e par­tidos co­mu­nistas.

Re­cordo também uma re­por­tagem que fiz como en­viada da Rádio às ho­me­na­gens re­a­li­zadas a pro­pó­sito dos 25 anos da des­truição de Lí­dice, na Che­cos­lo­vá­quia  pelos nazis e o fu­zi­la­mento de todos os ho­mens. Só fi­caram as mu­lheres e as cri­anças. Na­quela al­tura, já das ruínas tinha res­sur­gido uma nova po­vo­ação com novos ha­bi­tantes, muitos dos quais ti­nham so­bre­vi­vido aos campos de con­cen­tração e re­gres­sado. Foi muito emo­ci­o­nante.

 

Ima­gino que tra­ba­lhassem sob uma grande pressão...

 

MPM: Sim, tra­ba­lhá­vamos sempre a olhar para o re­lógio, com este a andar mais de­pressa do que nós que­ríamos. A se­guir ao al­moço só se ouvia o ma­tra­quear das má­quinas. Mas tí­nhamos bom es­pí­rito.

Uma noite fomos des­per­tados pelo te­le­fo­nema de um ca­ma­rada ro­meno a dizer-nos que tinha ou­vido numa rádio que o Sa­lazar tinha mor­rido. Con­cen­trámo-nos nas ins­ta­la­ções da RPL a ouvir as emis­soras e a ler jor­nais e agên­cias e só de ma­dru­gada des­co­brimos o que tinha acon­te­cido: tinha de facto mor­rido um Sa­lazar mas não era este, era um di­plo­mata da Amé­rica La­tina. Ar­ru­mámos as coisas e abrimos um dossiê com toda a do­cu­men­tação re­co­lhida a que cha­mámos «pri­meira morte de Sa­lazar». Pas­sado um tempo, o Sa­lazar cai da ca­deira e as pri­meiras no­tí­cias fa­lavam da sua morte. Abrimos um novo dossiê a que demos o nome «se­gunda morte de Sa­lazar». Quando, por fim, o Sa­lazar morreu ar­ru­mámos toda a pa­pe­lada, com o nome «ter­ceira e de­fi­ni­tiva morte de Sa­lazar».

Isto mostra que a tensão era grande mas também que não fal­tava a ale­gria e a grande cons­ci­ência de que es­tá­vamos a re­a­lizar uma ta­refa muito im­por­tante para o nosso Par­tido.


A RPL era a «pri­meira trans­mis­sora» da ori­en­tação do Par­tido

 

Re­fe­riram que a Rádio Por­tugal Livre man­teve sempre uma li­gação es­treita à di­recção do Par­tido. Como era feita esta li­gação?

 

AS: O con­tacto mais di­recto que tí­nhamos era com Álvaro Cu­nhal, que acom­pa­nhou de muito perto a Rádio. Du­rante todo o tempo em que fui o di­rector, e en­quanto o Álvaro Cu­nhal es­teve em Mos­covo, todas as se­manas tí­nhamos um con­tacto te­le­fó­nico para dis­cussão de al­gumas das ques­tões que se co­lo­cavam ao tra­balho da Rádio.

 

MT: E o Álvaro ia lá com al­guma frequência…

 

AS: Sim, pelo menos uma vez por ano reunia com o co­lec­tivo da Rádio Por­tugal Livre. De­pois da sua saída de Mos­covo, no seu tempo de es­tadia em Paris, os con­tactos eram bas­tante mais di­fí­ceis, uma vez que não havia pos­si­bi­li­dades de co­mu­ni­cação di­recta entre Bu­ca­reste e Paris.

Aí pas­sámos a re­ceber cartas em que, de forma às vezes bas­tante de­sen­vol­vida, tra­tava de al­guns dos pro­blemas de ori­en­tação do Par­tido. Essa sua con­tri­buição foi de­ci­siva para a con­fi­gu­ração do tipo de emissão da Rádio Por­tugal Livre e do seu con­teúdo.

A minha ida para o Co­mité Cen­tral de­pois do VI Con­gresso do PCP [re­a­li­zado em 1965] per­mitiu uma ainda maior in­te­gração do tra­balho da Rádio na acção mais geral do Par­tido.

 

MPM: Apro­veito esta oca­sião para des­fazer al­guns equí­vocos. Ainda hoje há quem não dis­tinga a Rádio Por­tugal Livre da Voz da Li­ber­dade. A pri­meira foi uma emis­sora do Par­tido Co­mu­nista Por­tu­guês, uma rádio co­mu­nista e re­vo­lu­ci­o­nária, que fun­ci­o­nava a partir de Bu­ca­reste.

A Voz da Li­ber­dade era uma emis­sora da Frente Pa­trió­tica de Li­ber­tação Na­ci­onal, se­deada em Argel. Era uma emis­sora uni­tária, onde es­tavam re­pre­sen­tados co­mu­nistas, so­ci­a­listas e ou­tros sec­tores an­ti­fas­cistas. E en­quanto a Rádio Por­tugal Livre trans­mitia di­a­ri­a­mente, a Voz da Li­ber­dade trans­mitia só duas vezes por se­mana.

 

MT: A nossa pre­o­cu­pação cons­tante era sermos fiéis à ori­en­tação do Par­tido. Mas muitas vezes, sobre as­pectos pon­tuais, não sa­bíamos qual era a ori­en­tação e tí­nhamos que in­ter­pretar. Mas julgo que a Rádio foi sempre um ins­tru­mento de trans­missão da ori­en­tação do Par­tido para Por­tugal e mesmo para os pró­prios mi­li­tantes.

 

MPM: Uma das ru­bricas que tí­nhamos na Rádio era a lei­tura in­te­gral do Avante! e d’ O Mi­li­tante. Isto per­mitia que muitos fun­ci­o­ná­rios a quem a im­prensa do Par­tido não tinha ainda che­gado gra­vassem as emis­sões e pu­dessem pôr a cir­cular no­tí­cias e in­for­ma­ções di­fun­didas pela Rádio.

 

Qual a im­por­tância teve a RPL na di­vul­gação das po­si­ções do Par­tido numa época tão con­tur­bada e con­fusa da his­tória de Por­tugal?

 

MT: A partir de 1963, a RPL trans­mitiu toda a do­cu­men­tação das reu­niões do Co­mité Cen­tral re­la­tivas ao com­bate e cor­recção da linha opor­tu­nista de di­reita, que tinha co­me­çado a ser cri­ti­cada a partir da fuga de Pe­niche, e di­vulgou os textos que se­riam de­pois o Rumo à Vi­tória. Quando, em Ja­neiro de 1965, foi apro­vado pelo Co­mité Cen­tral o pro­jecto de Pro­grama, con­tendo os oito pontos para a Re­vo­lução De­mo­crá­tica e Na­ci­onal, este foi ime­di­a­ta­mente en­viado para a Rádio para ser posto à dis­cussão de todo o Par­tido. Fomos os pri­meiros trans­mis­sores desses do­cu­mentos.

 

AS: Outro mo­mento im­por­tante deu-se nos anos 1968/​1969, aquando da «de­ma­gogia li­be­ra­li­zante» de Mar­cello Ca­e­tano. A RPL foi rá­pida a di­vulgar o do­cu­mento Sa­la­za­rismo sem Sa­lazar, que apon­tava uma ori­en­tação geral do Par­tido na­quela si­tu­ação nova. Havia quem acre­di­tasse que Por­tugal se trans­for­maria numa de­mo­cracia par­la­mentar e os que con­si­de­ravam que nada mu­dara e que o re­gime con­ti­nuava o mesmo. O Par­tido, aler­tando para a pre­tensão de con­ti­nuar o sa­la­za­rismo sem Sa­lazar, con­si­de­rava também que a «de­ma­gogia li­be­ra­li­zante» tra­duzia um en­fra­que­ci­mento do apoio ao re­gime, que devia ser apro­vei­tado pelas massas po­pu­lares.

 

MPM: Por oca­sião do cin­quen­te­nário do nosso Par­tido, cum­prido a 6 de Março de 1971, trans­mi­timos, du­rante um ano in­teiro, um pro­grama com dados sobre a his­tória do Par­tido, al­guns dos quais até aí des­co­nhe­cidos.

Em todos os do­cu­mentos emi­tidos pelo Par­tido desde a morte do Sa­lazar havia sempre três pre­o­cu­pa­ções: não deixar afrouxar a luta de massas, con­ti­nu­ando a de­sen­volvê-la em todas as frentes; pro­mover a uni­dade de todos os de­mo­cratas e an­ti­fas­cistas; re­forçar o Par­tido. Estas pre­o­cu­pa­ções es­ti­veram sempre pre­sentes nas nossas emis­sões.

 

AS: Outro im­por­tante con­tri­buto da Rádio foi a luta contra a guerra co­lo­nial, não só de­nun­ci­ando o que ela re­pre­sen­tava de atraso para o País, como o que sig­ni­fi­cava de perda do pres­tígio de Por­tugal no mundo. Mas foi im­por­tante também pelos pro­gramas di­ri­gidos às Forças Ar­madas que con­ti­nham essa ori­en­tação, que davam igual­mente al­gumas in­di­ca­ções im­por­tantes para o de­sen­vol­vi­mento da cons­ci­ência po­lí­tica da­queles que es­tavam mo­bi­li­zados na guerra co­lo­nial e dos que, es­tando nas uni­ver­si­dades, foram de­pois man­dados para lá à força. Por al­turas do 25 de Abril, a maior parte dos qua­dros mi­li­tares abaixo de ca­pitão e mesmo na ca­te­goria de ca­pitão eram ofi­ciais mi­li­ci­anos, vindos das uni­ver­si­dades.

 

MT: Em 1968, saí da Rádio e voltei a Por­tugal, para a re­dacção do Avante!, onde já tinha es­tado an­te­ri­or­mente. E posso tes­te­mu­nhar que a Rádio Por­tugal Livre era útil para a re­dacção do Avante!, porque muitas vezes a RPL dava ins­tru­ções e ori­en­ta­ções que não tí­nhamos ainda re­ce­bido ou que ela in­ter­pre­tava de outra ma­neira. Não só o Avante! era útil para a Rádio como a Rádio era útil para o Avante!.


Di­fusor de sub­versão que o fas­cismo ten­tava calar

 

A Rádio Por­tugal Livre era muito ou­vida? Que con­di­ci­o­na­lismos se co­lo­cavam no País à sua au­dição?

 

MPM: Há uns anos ouvi um in­di­víduo que foi membro do Par­tido e que es­teve na Rádio Por­tugal Livre afirmar que ela pra­ti­ca­mente não era es­cu­tada. Mas há ele­mentos que provam o con­trário. Em pri­meiro lugar, se a Rádio não fosse ou­vida – e em al­guns lo­cais em muito boas con­di­ções – não ha­veria tanta pre­o­cu­pação por parte do fas­cismo em pro­curar in­ter­ferir com as nossas emis­sões. Foi por isso que foi ins­ta­lada na Glória do Ri­ba­tejo a RARET, uma an­tena muito po­tente a partir da qual pro­cu­ravam in­ter­ferir nas emis­sões da Rádio Por­tugal Livre.

 

AS: E não era só essa an­tena, que es­tava li­gada à Voz da Amé­rica, mas também os pró­prios equi­pa­mentos das Forças Ar­madas que ser­viam para pro­curar im­pedir ou pelo menos di­fi­cultar a cap­tação das emis­sões da Rádio Por­tugal Livre. Tudo isto porque a RPL cons­ti­tuía uma rup­tura com o sis­tema de cen­sura que existia no País. Era um di­fusor de sub­versão que o re­gime tentou por todas as formas im­pedir.

 

MPM: Por essa al­tura, o Go­ver­nador Civil de Beja mandou uma cir­cular para os pre­si­dentes de Câ­mara da re­gião ins­truindo-os para que in­ves­ti­gassem quem é que ad­quiria apa­re­lhos de rádio, se estes apa­nhavam ondas curtas, se eram pagos ou ofe­re­cidos… Isto mostra que não era in­di­fe­rente ao fas­cismo a exis­tência de uma emis­sora an­ti­fas­cista a trans­mitir di­a­ri­a­mente para o País.

 

Mas ti­nham essa cons­ci­ência quando lá es­tavam?

 

MPM: Lembro-me de termos re­ce­bido uma in­for­mação de ca­ma­radas de Al­ca­nena que re­la­tavam a ac­tu­ação de um bufo in­fil­trado num sin­di­cato e que pro­cu­rava de­sar­ti­cular as lutas mal estas se co­me­çavam a de­se­nhar. De­nun­ciámos esse facto, com o nome do in­di­víduo, e ape­lámos aos tra­ba­lha­dores para que cor­ressem com o bufo do sin­di­cato. Muito tempo de­pois, já nem nos lem­brá­vamos disto, re­ce­bemos outra carta de Al­ca­nena onde se dizia que graças à de­núncia da Rádio Por­tugal Livre os tra­ba­lha­dores não só cor­reram com o bufo como lhe deram um cas­tigo exem­plar.

E há mais exem­plos... Logo a se­guir ao 25 de Abril, num co­mício em Al­jus­trel, muita gente veio abraçar-me por ter re­co­nhe­cido a minha voz como sendo a da Rádio Por­tugal Livre. Num outro co­mício, em Mon­temor-o-Novo (ainda eu não es­tava au­to­ri­zada pelo Par­tido a dizer de onde tinha vindo), mal tinha co­me­çado a falar fui in­ter­rom­pida pelas mu­lheres que, em cima dos atre­lados dos trac­tores, gri­tavam Viva a nossa amiga da Rádio Por­tugal Livre. Nas Caldas da Rainha, um casal abordou-me no final de um co­mício di­zendo-me que não saía dali en­quanto eu não lhe con­fir­masse que era eu a voz que eles co­nhe­ciam da Rádio.

A minha voz não tinha a po­tência nem o timbre da voz da Ve­rís­sima, mas tinha uma coisa que a tor­nava co­nhe­cida, o so­taque alen­te­jano.

 



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