O festival do enxovalho

Nuno Gomes dos Santos

Vi, re­cen­te­mente, dois es­pec­tá­culos de mú­sica por­tu­guesa. Me­lhor di­zendo: de can­ções por­tu­guesas. Um chama-se «Me­mo­rial» e nele se jun­taram Fer­nando Tordo e Carlos Mendes, que con­vi­daram a Fi­lipa Pais para compor o ra­ma­lhete. O outro foi o de Paulo de Car­valho, no Dia In­ter­na­ci­onal da Mu­lher, que as­si­nalou duas datas, o 8 de Março e os 50 anos de car­reira do cantor/​com­po­sitor.

Em qual­quer deles vi e ouvi boas mú­sicas, ser­vidas por textos dignos e sé­rios, mesmo quando o humor roçou pelas pa­la­vras. O Fer­nando, o Carlos e o Paulo – e de bom grado in­cluo aqui a Fi­lipa – sou­beram (sabem) dar às can­tigas o lugar que sempre lhes soube bem, digo a eles e às can­ções que in­ter­pretam. Também num e noutro es­pec­tá­culo ouvi mú­sicas de tempos menos novos que, por terem sido o que foram, nos en­si­naram há muito que os can­tores de que agora vos falo não po­de­riam ser outra coisa a não ser o que são, nem te­riam o re­per­tório que têm se não ti­vessem, desde sempre, es­co­lhido o rumo da dig­ni­dade, do pro­fis­si­o­na­lismo e do res­peito por si pró­prios e pelo pú­blico. Ser­vidas por com­po­si­ções a con­dizer, ou­vimos, nos dois es­pec­tá­culos, pa­la­vras de po­etas e de ho­mens que pen­saram da vida o fundo que ela é, o quo­ti­diano que a ro­deia, o amor que a en­feita.

Es­tava eu muito con­tente com os in­tér­pretes e o su­porte mu­sical e poé­tico que, por es­colha sua, nos ofe­re­ceram, somei a isto um en­contro de con­vívio por onde pas­saram o Du­arte Mendes, a Luísa Basto, o Fran­cisco Naia, o Ed­mundo Silva, o Ma­nuel Lou­reiro e ou­tras pes­soas dadas ao prazer de cantar e tocar, quando li­guei a te­le­visão e vi e ouvi o pom­po­sa­mente cha­mado Fes­tival RTP da Canção. No final do des­file das can­tigas, somei de­sa­fi­nação com mú­sicas in­de­fi­nidas e pri­má­rias, só ul­tra­pas­sadas no pri­ma­rismo pelas le­tras que en­ver­go­nha­riam qual­quer puto com jeito para rimas recém-saído do en­sino Bá­sico! Uma ex­cepção apenas, a da can­tiga que ga­nhou, em­bora so­frível na mú­sica e na letra mas cer­tinha, ra­zo­a­vel­mente bem can­tada, e pouco mais. Mais uma vez colhe o di­tado que diz que a ex­cepção con­firma a regra.

Lem­brei-me então de que quase todas as pes­soas que me ale­graram, nos dois es­pec­tá­culos ci­tados e no con­vívio in­formal onde es­tive, par­ti­ci­param, há uns anos, no Fes­tival da Canção. E in­ter­pre­taram Ary, Niza, Vic­to­rino de Al­meida, Ti­noco, Nuno Na­za­reth Fer­nandes, Pedro Osório, José Cal­vário. E também o Fer­nando Tordo e o Paulo de Car­valho com­po­si­tores. E, nesses en­con­tros entre o palco e a pla­teia e num res­tau­rante pro­pício a eventos ca­ma­radas, vol­taram a fazê-lo, com in­cur­sões pelas pa­la­vras de Fer­nando Assis Pa­checo ou Agos­tinho da Silva. E can­taram e cantam Eu­génio de An­drade, Jo­a­quim Pessoa, Ma­nuel da Fon­seca, Romeu Cor­reia, can­tigas do Zeca, do Adriano, do Sa­muel, do Fausto. E que o Fes­tival teve a servi-lo ou­tros po­etas, como Yvette Cen­teno, José Jorge Le­tria, Rosa Lo­bato Faria, Fer­nando Vi­eira e Pedro Támen. E disse para co­migo, pla­gi­ando: ao que isto chegou!

Vi, no ecrã da minha tris­teza, um fes­tival da canção sem can­ções, quer-se dizer: sem mú­sicas e sem le­tras e in­tér­pretes de que pu­dés­semos dizer benza-os deus, mas com muitos efeitos es­pe­cias, car­regos de tec­no­logia, bai­lados nos quais o maior es­torvo era a dança, apre­sen­ta­dores pí­fios, tudo a con­dizer. E pus-me a pensar por que cargas de água a RTP re­solveu dar tantos passos atrás.

Não se julgue que o que acaba de ser es­crito co­loca os fes­ti­vais de há muito no altar ima­cu­lado da ex­ce­lência. Nada disso! Mas a ver­dade é que neles nas­ciam, por entre muita me­di­o­cri­dade, diga-se, can­ções dignas e não por isso menos po­pu­lares, como «Sol de In­verno», «Ca­valo à Solta», «Canção de Ma­drugar», «Ma­dru­gada», «Tou­rada», «No Dia Se­guinte», «Por­tugal no Co­ração», «Lu­si­tana Paixão», «E Afinal Quem És tu», «Chamar a Mú­sica», «E De­pois do Adeus». E neles co­me­çaram a car­reira a sério ou sal­taram para a ri­balta in­tér­pretes cujo nome co­nhe­cemos e cujo ta­lento ad­mi­ramos: os já re­fe­ridos Tordo, Paulo de Car­valho e Carlos Mendes, e ainda Dulce Pontes, Sa­muel ou Sara Ta­vares.

A res­posta à questão «por que cargas de água re­solveu a RTP dar tantos passos atrás» só pode ser uma de duas: ou a te­le­visão do Es­tado (porque é do fes­tival que aqui se fala) tem medo das can­tigas (que são uma arma, qual­quer que seja o alvo sobre que ou quem dis­parem), ou não gosta de can­ções. Venha o diabo e es­colha. Mas façam-nos um favor: não chamem àquilo fes­tival da canção! A canção por­tu­guesa não me­rece esse en­xo­valho!



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