A morte e a morte do meu amigo Vila (Mexilhoeira Grande)

Francisco Mota

Image 10219

Fi­quei pre­o­cu­pado quando re­cebi o te­le­fo­nema da Dau in­for­mando que o Vila queria fazer um al­moço na tasca, para os amigos mais che­gados. E porquê? Porque dizia que ia morrer e não o queria fazer sem juntar os amigos para um úl­timo al­moço. Mas está do­ente? Não, mas diz que algum dia mor­rerá e não sabe se é dentro de um mês, um ano ou vá­rios anos, mas so­bre­tudo não quer pensar que isso possa acon­tecer sem os ver aqui todos.

Con­cluí que este Vila tem uma ima­gi­nação enorme, que eu pen­sava que só uti­li­zava para pintar e co­zi­nhar, mas que agora vejo que também serve para re­a­lizar coisas «es­tram­bó­ticas». Lá fomos no dia apra­zado, co­memos, can­támos, be­bemos e pas­sámos a tarde e um pouco da noite a falar do pas­sado e deste pre­sente mal­vado que nos im­pin­giram.

Esta coisa da morte tem que se lhe diga e dá muito que pensar. Já o Garcia Mar­quez, nos «Cem anos de so­lidão», conta como um dos per­so­na­gens de Ma­condo, que tinha mor­rido há umas se­manas, um dia apa­receu ao Co­ronel Au­re­liano Bu­endia (se a me­mória não me en­gana) e lhe ex­plicou que estar morto era uma cha­tice, não tinha com quem falar, não bebia um copo com nin­guém e so­bre­tudo que todos os dias eram iguais, assim que tinha de­ci­dido voltar à vida. O seu amigo es­teve de acordo e ele andou pela al­deia, até que de­cidiu voltar a morrer porque a vida também era uma cha­tice. Também Jorge Amado segue na mesma linha no conto «A morte e a morte de Quincas Berro D'Água», que se cha­mava assim desde há anos, porque era pes­cador e cada vez que che­gava a terra ia di­reito a uma tasca do cais da Baía, agar­rava numa gar­rafa e bebia ca­chaça até se sentir bem. No en­tanto, um dia, um mau dia, fez o mesmo e ouviu-se em todo o cais, em toda a Baía e em me­tade do mar oceano, um grito sobre-hu­mano «ááááá­gua­a­a­a­aaaa!!!!!». O tas­queiro tinha posto por en­gano uma gar­rafa de água igual às que ti­nham ca­chaça. Aí nasceu o «Quincas Berro D'Água». Pois este pes­cador, num dia de tor­menta, caiu ao mar e morreu. Foi muito cho­rado nos Cais da Baía, mas o morto achou que aquilo não era forma de morrer. Então voltou à vida e pre­parou com todos os de­ta­lhes a sua morte, como ele achava que devia ser. Levou um tempo na­quilo, mas chegou ao fim, de­clarou «que cada um trate do seu en­terro, im­pos­sível não há» e morreu de­fi­ni­ti­va­mente.

Por­tanto, sem chegar ao ex­tremo do poeta An­tónio Lança, que dizia que «a morte nunca existiu», morrer, morre-se. A questão é saber quem está morto e quem está vivo. Se não digam-me: José Gomes Fer­reira, Ma­nuel da Fon­seca, Aqui­lino Ri­beiro, Sa­ra­mago, Ary dos Santos, Gil Vi­cente, Álvaro Cu­nhal, Eça de Queiroz, Fernão Lopes, Lopes-Graça, Gi­a­co­metti, Adriano Cor­reia de Oli­veira, José Afonso, Mário Vi­egas e tantos e tantos ou­tros, não ne­ces­sa­ri­a­mente co­nhe­cidos, mas que são exemplo de rigor, ho­nes­ti­dade, luta e hon­radez, querem-me dizer, re­pito, que esta gente está morta? Não pensem nisso nem um se­gundo. Esta gente está viva e con­tinua a in­flu­en­ciar a vida e o pen­sa­mento de mi­lhões de pes­soas, porque os grandes nunca morrem.

E pelo con­trário, estão vivos gente como o Co­elho, os seus mi­nis­tros, o pa­trão deles cha­mado Amorim ou Bel­miro, mais os pa­trões do Bel­miro e do Amorim (que os têm, se ca­lhar longe daqui), os que nos mandam a troika, os que nos fazem so­frer? E so­bre­tudo o Ca­vaco, como «pri­meira fi­gura» deste país, que não faz nada, que se en­ri­quece com ope­ra­ções ban­cá­rias du­vi­dosas, que goza con­nosco fa­lando das suas di­fi­cul­dades eco­nó­micas, que é in­digno das fun­ções que de­sem­penha e do sítio onde vive e que nós pa­gamos, querem-me dizer que esta gente está viva? Não. Todos estão mortos, todos são mortos, que nos en­ganam porque apa­recem na te­le­visão para pa­recer vivos.

 

Image 10234

De morrer

 

O fe­nó­meno bi­o­ló­gico da morte não tem ne­nhum in­te­resse ainda que possa ser do­lo­roso nal­guns casos. Todos sa­bemos que che­gará algum dia. O que in­te­ressa é a dig­ni­dade, a cons­ci­ência, a ca­pa­ci­dade crí­tica, a in­te­li­gência que usamos du­rante a vida bi­o­ló­gica, para saber se es­tamos vivos ou mortos.

Tinha muita von­tade de contar-vos isto. Já contei. O que não contei foi o que co­memos no «al­moço de de­funtos» do Vila. Pois co­me­çámos com uma canja de lin­gueirão com co­to­ve­li­nhos pe­que­ninos, se­guimos com uma abrótea ar­re­piada e ter­mi­námos com um co­zido de grãos de milho com arroz, carnes, tou­cinho e um sabor fan­tás­tico. Prato tí­pico do bar­rocal al­garvio, entre o mar e a mon­tanha.

Mas queria hoje falar-vos da abrótea. Este peixe ba­rato, de carne mole e pa­rente da pes­cada, se se co­zinha sem ar­re­piar, não tem sabor, a carne desfaz-se e tudo é uma papa sem graça. Então como se faz? Passo a pa­lavra ao Vila que es­creve «De­pois de ama­nhado e la­vado, salga-se o peixe, es­fre­gando com sal no sen­tido do rabo para a ca­beça. A esta ope­ração dá-se o nome de «ar­re­piar». Ata-se o peixe com um fio e pen­dura-se de ca­beça para baixo de um dia para o outro. Parte-se o peixe e de­molha-se du­rante cinco mi­nutos. Coze-se com água a ferver, um quarto de ce­bola e salsa. Num tacho aloura-se azeite e ce­bola e adi­ciona-se a água onde cozeu o peixe. A quan­ti­dade deve ser duas vezes e meia su­pe­rior ao vo­lume do arroz. Junta-se um ramo de salsa e rec­ti­fica-se de sal. Serve-se o peixe com o arroz com uma quan­ti­dade ge­ne­rosa de azeite e limão» (do livro «Coisas da terra e do mar», do Vila). O que co­memos neste al­moço era talvez do me­lhor que já comi na tasca. Es­tava de morrer...

Para con­cluir diria que antes e de­pois da «ce­ri­mónia fú­nebre» o pré-morto es­tava vivo e bem vivo. Assim se­guirá, sem dú­vida. E sem dú­vidas.



Mais artigos de: Argumentos

Vozes, futuro e passado

Desta vez, o «Prós e Contras» tinha um cartaz invulgarmente apelativo: o título da emissão era «A Voz dos Novos», e é claro que quem fala da voz dos novos fala de algum modo do futuro, para alguns uma espécie de Mar Tenebroso que nos ameaça com todos os...

Subsídios pr'ás calendas

A saga dos prazos para a reposição dos subsídios de férias e de Natal parece não ter fim. O que começou por ser um roubo, perdão, um «corte» apenas para 2012 e 2013, passou nos últimos tempos – desde que Peter Weiss admitiu o seu extermínio...

As bolsas, as troikas e as concordatas

«A Bolsa de Valores Sociais reproduz o ambiente de uma Bolsa de Valores e o seu papel é facilitar o encontro entre ONG criteriosamente seleccionadas (com trabalhos reais e comprovados na área da Educação e do Empreendorismo) e investidores sociais (doadores) dispostos a apoiar essas...