Economia solidária é expressão ambígua

Jorge Messias

«Não vou dizer que houve um surto de mo­ra­li­dade. Mas in­ves­ti­dores, em­pre­sá­rios e fi­lan­tropos vão des­co­brindo novos meios de fa­zerem o bem e ob­terem bom re­torno lu­cra­tivo. É disso que re­sulta a fi­lan­tropia de risco. Es­tamos co­me­çando a per­ceber que ser eti­ca­mente res­pon­sável não sig­ni­fica apenas ter Ética mas também, ac­tuar em todos os pontos das ope­ra­ções de mer­cado, de modo a ajudar o nosso no­tável sis­tema ca­pi­ta­lista a obter o me­lhor!» (J. Do­nalddson, Uni­ver­si­dade da Pen­sil­vânia).

 «OR­CIPS é o nome ima­gi­nado pelo Go­verno bra­si­leiro para fa­ci­litar a ela­bo­ração de par­ce­rias e con­vé­nios entre as ins­ti­tui­ções sem fins lu­cra­tivos e o go­verno ou ór­gãos pú­blicos, a todos os ní­veis. As do­a­ções re­a­li­zadas por em­presas pri­vadas a IPSS ou ONGS passam a ser des­con­tadas nas de­cla­ra­ções do Im­posto Sobre Ren­di­mentos» (Wil­ki­pedia, In­ternet).

 «Tudo o que é só­lido se des­mancha no ar, tudo o que é sa­grado é pro­fa­nado e as pes­soas são for­çadas a en­carar com se­re­ni­dade a sua po­sição so­cial e as suas re­la­ções re­cí­procas…» (Karl Marx e Fre­dé­rich En­gels, «Ma­ni­festo do Par­tido Co­mu­nista»).

 O quadro his­tó­rico assim des­crito por Marx e En­gels, já lá vão 150 anos, ajusta-se per­fei­ta­mente à etapa que o ca­pi­ta­lismo atra­vessa. Di­nheiro, poder po­lí­tico, con­trolo da co­mu­ni­cação so­cial, im­plan­tação da Igreja in­te­grista na chefia da so­ci­e­dade civil, tudo pa­recia fir­me­mente ga­ran­tido. De re­pente, tudo fa­lhou. O ca­pi­ta­lismo tinha tudo nas mãos quando o mundo à sua volta se des­man­chou no ar. A Igreja dera plenos po­deres ao papa alemão e san­ti­fi­cara a Cúria. Que fará agora, nestes tempos de aflição?

Como sempre, a fonte de todos os males é o im­pe­ri­a­lismo fi­nan­ceiro. Pas­sando por cima das leis da His­tória, o grande ca­pital en­volveu-se nos planos de um mais que pre­vi­sível abortar da glo­ba­li­zação e da moeda única. O Va­ti­cano, como sempre, co­lara-se ao ca­pi­ta­lismo nas suas ven­turas e des­ven­turas. Agora, o sis­tema en­ca­lhou no seu am­bi­cioso pro­jecto de ti­rania uni­versal com capa de­mo­crá­tica; a Igreja vê-se a braços com as di­fi­cul­dades in­su­pe­rá­veis que os des­vios do mundo laico vão cri­ando aos seus pró­prios planos de poder. É fa­bu­lo­sa­mente rica em bens ma­te­riais. Traiu a causa dos po­bres e dos hu­mildes mas foi ainda mais além: as suas hi­e­rar­quias não se imu­ni­zaram dos pe­rigos da traição ide­o­ló­gica. A re­li­gião do Va­ti­cano é hoje menos do que nada. Os bispos falam a lin­guagem dos ad­mi­nis­tra­dores de em­presa e a Cúria já não se pro­nuncia a uma só voz. Alas­tram es­cân­dalos sobre es­cân­dalos. Vem à luz do dia que o alto clero está pro­fun­da­mente me­tido nos mais ne­fandos crimes – fi­nan­ceiros, po­lí­ticos, so­ciais, de cos­tumes (como os da pe­do­filia), de abuso do poder , etc. Se a Eu­ropa fi­nan­ceira se en­reda nas suas con­tra­di­ções, coisa di­fe­rente acon­tece às suas es­tru­turas di­ri­gentes.

Porém, com um saber se­cular «de ex­pe­ri­ência feito», os altos res­pon­sá­veis ecle­siás­ticos dis­põem já de planos al­ter­na­tivos que po­derão vir a re­velar-se au­tên­ticos salva-vidas. É o caso, menos ven­ti­lado mas com grande fu­turo po­lé­mico, do quadro legal da­quilo a que po­deria chamar-se de­mo­cracia di­recta num Es­tado de eco­nomia so­li­dária. Os ce­ná­rios de­correm no «ter­ceiro sector».

O plano re­vela grande fle­xi­bi­li­dade, ou seja, dá para tudo. Se o re­gime li­beral se man­tiver na Eu­ropa, as forças de­mo­crá­ticas não pre­ci­sarão de con­ti­nuar a pre­o­cupar-se com o «ter­ceiro sector». As redes de ins­ti­tui­ções ca­tó­licas já ins­ta­ladas sa­berão dar conta do re­cado. Ao Es­tado li­beral bas­tará laisser faire, laisser passer, se­gundo os pró­prios prin­cí­pios li­be­rais. Ao exe­cu­tivo cumpre sub­si­diar as ins­ti­tui­ções e ga­rantir as con­di­ções para a sua ex­pansão. Também de­verá apagar qual­quer ves­tígio de Es­tado So­cial.

Caso o re­gime li­beral em vigor seja in­capaz de sub­sistir, então, com uma pe­quena cos­mé­tica o pro­jecto do «ter­ceiro sector» adaptar-se-á fa­cil­mente às novas con­di­ções de um so­ci­a­lismo tão subtil que só com muito boa-von­tade se po­derá dis­tin­guir do an­te­rior li­be­ra­lismo. Eco­nomia so­li­dária é ex­pressão am­bígua que alarga o fosso entre po­bres e ricos e pro­move a cor­rupção. Todas estas ma­no­bras de­correm nos qua­dros da luta de classes.

«A eman­ci­pação dos tra­ba­lha­dores será al­can­çada em função da sua pró­pria luta».



Mais artigos de: Argumentos

As mãos sujas

O título que encima estas duas colunas é, como se sabe, de Jean-Paul Sartre. Porém, se confesso o abuso de o ter pilhado no convencimento de que ficaria aqui bem e que, de resto, o autor de «O Existencialismo é um Humanismo» não me levaria a mal por tê-lo feito, quero...

Sobre o contributo de Max para o marxismo

(...) cada ser humano é único, insubstituível e tem o seu, único e insubstituível, contributo para o fluir da História, independentemente da importância que se dê, ou venha a dar a esse contributo, em termos de Humanidade (ou de humanização). É...