Golpe de Estado no Paraguai

Capital terrorista afasta Fernando Lugo

Em menos de 24 horas o pre­si­dente do Pa­ra­guai, Fer­nando Lugo, foi afas­tado pelos par­tidos re­pre­sen­tantes da oli­gar­quia na­ci­onal e es­tran­geira. O golpe de Es­tado é con­tes­tado pelo povo pa­ra­guaio e pelas vi­zi­nhas na­ções sul-ame­ri­canas.

«Es­pe­ramos con­se­guir com Franco o que não con­se­guimos com Lugo», disse o re­pre­sen­tante dos la­ti­fun­diá­rios

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O Con­gresso dos de­pu­tados e o Se­nado do Pa­ra­guai con­su­maram o lin­cha­mento po­lí­tico do pre­si­dente eleito em 2008. Quinta-feira, 21, foi a cha­mada Câ­mara baixa a de­sen­ca­dear o afas­ta­mento de Fer­nando Lugo, apon­tado como o má­ximo res­pon­sável pelo mas­sacre que no pas­sado dia 15 vi­timou 11 cam­po­neses sem-terra e seis po­lí­cias em Cu­ru­guaty. O con­fronto deveu-se à dis­puta de uma fracção de uma pro­pri­e­dade do Es­tado, ocu­pada ile­gal­mente há dé­cadas pelo la­ti­fun­diário e ex-se­nador do Par­tido Co­lo­rado, Blas Ri­quelme, e nem a exo­ne­ração, nesse mesmo dia, do mi­nistro da Ad­mi­nis­tração In­terna e a no­me­ação para o cargo de um ex-membro dos Grupos de Acção An­ti­co­mu­nistas, Rúben Candia, pa­rece ter re­freado a sanha gol­pista.

Acto con­tínuo, na sexta-feira, 22, o Se­nado sen­ten­ciou o man­da­tário, dando como pro­vadas as acu­sa­ções e trans­fe­rindo o poder para o vice-pre­si­dente, Fe­de­rico Franco, do Par­tido Li­beral Ra­dical Au­tên­tico, que havia apoiado Lugo du­rante a cam­panha elei­toral.

Pe­rante os de­pu­tados, Fer­nando Lugo ainda afirmou não existir razão ju­rí­dica ou po­lí­tica para o des­ti­tuírem, mas no dia se­guinte já não com­pa­receu no Se­nado. Como su­bli­nhou o seu re­pre­sen­tante nas es­cassas duas horas con­ce­didas à de­fesa, a sen­tença es­tava pre­vi­a­mente de­ci­dida, facto que fica pro­vado por um do­cu­mento as­si­nado antes do início da sessão pelo pre­si­dente da­quele órgão, no qual se de­talha os passos sub­se­quentes à des­ti­tuição do pre­si­dente.

Na sequência da vo­tação, Fer­nando Lugo frisou que os gol­pistas são «os que sempre be­ne­fi­ci­aram do poder» e apelou ao povo para que saísse à rua e re­sis­tisse pa­ci­fi­ca­mente. Os pa­ra­guaios res­pon­deram mas a po­lícia dis­persou com vi­o­lência a mul­tidão que se con­cen­trou frente ao Con­gresso.

Já no sá­bado, pros­se­guiram as ini­ci­a­tivas de re­púdio do golpe, com a reu­nião de um con­junto de or­ga­ni­za­ções po­lí­ticas e so­ciais na sede da maior cen­tral sin­dical do país – donde terá saído a cons­ti­tuição de uma frente de re­sis­tência ao golpe –, e a con­cen­tração po­pular junto à sede do canal pú­blico de te­le­visão, onde tra­ba­lha­dores e di­recção con­tes­tavam a ime­diata in­tro­missão do go­verno na pro­gra­mação da emis­sora.

O di­rector do canal, Mar­celo Mar­ti­nessi, e os tra­ba­lha­dores re­cu­saram a ordem de ocul­tação dos pro­testos po­pu­lares. À porta do edi­fício foi ins­ta­lada uma tri­buna onde se di­fundia à es­cala na­ci­onal a de­núncia do golpe. A re­sis­tência pros­se­guiu apesar da ocu­pação do edi­fício pela po­lícia, que chegou acom­pa­nhada pelo as­sessor de co­mu­ni­cação dos gol­pistas, Ch­ris­tian Vás­quez, e as­sumiu um ca­rácter com­ba­tivo quando, no do­mingo, Fer­nando Lugo tomou a an­tena aberta para dizer que «a di­ta­dura não se ex­pressa apenas por via mi­litar, mas também par­la­mentar, por in­ter­médio do ca­pital, do nar­co­trá­fico, da vi­o­lência».

Além do re­púdio in­terno, o golpe de Es­tado no Pa­ra­guai foi re­jei­tado pelas na­ções da re­gião, com des­taque para a Ar­gen­tina, Ve­ne­zuela, Equador, Bo­lívia, Cuba, Ni­ca­rágua, El Sal­vador, Perú, Hon­duras ou Re­pú­blica Do­mi­ni­cana, que afir­maram não re­co­nhecer Fe­de­rico Franco como pre­si­dente. Esta se­mana, os países da UNASUR pre­viam dis­cutir as ini­ci­a­tivas a tomar, e os mem­bros do Mer­cosur já sus­pen­deram o Pa­ra­guai da pró­xima ci­meira da or­ga­ni­zação, que se re­a­liza hoje e amanhã na Ar­gen­tina.

 

Co­zi­nhado em lume brando

 

Em sen­tido con­trário, o Va­ti­cano foi o pri­meiro Es­tado a re­co­nhecer o pre­si­dente gol­pista, igual­mente cau­ci­o­nado pela Ale­manha. Os EUA ape­laram aos pa­ra­guaios para que res­peitem os prin­cí­pios de­mo­crá­ticos do país, forma cí­nica de ad­mi­tirem como le­gí­timo o golpe de Es­tado dito cons­ti­tu­ci­onal.

A po­sição norte-ame­ri­cana não é es­tranha. Desde 2009 que a em­bai­xada em As­sunção re­por­tava ao de­par­ta­mento de Es­tado em Washington que «a di­visão entre Lugo e Franco está a crescer», atestam do­cu­mentos pu­bli­cados pelo Wi­ki­leaks.

Num ar­tigo di­vul­gado no re­be­lion.org, Jean-Guy Al­lard traça o en­vol­vi­mento da re­pre­sen­tação di­plo­má­tica dos EUA no Pa­ra­guai com os sec­tores gol­pistas. Um vice-pre­si­dente que pu­bli­ca­mente louvou o an­tigo di­tador Al­fredo Stros­sner e ór­gãos le­gis­la­tivos do­mi­nados pelos par­tidos re­pre­sen­tantes da oli­gar­quia na­ci­onal e es­tran­geira ga­ran­tiram à em­bai­xada dos EUA o afas­ta­mento ci­rúr­gico de Fer­nando Lugo. O clamor de­sen­ca­deado com o se­questro de um pre­si­dente e o seu envio para um país vi­zinho du­rante a ma­dru­gada e em pi­jama, como acon­teceu com Ma­nuel Ze­laya, nas Hon­duras, em 2009, terá ser­vido de lição para o de­sen­ca­de­a­mento de in­ten­tonas menos vis­tosas e a aposta no des­gaste prévio ao as­salto.

Prova disso é o in­ci­dente de­sen­ca­deado em 2010 com o então mi­nistro da De­fesa, Luis Spaini. O ge­neral re­ti­rado foi des­ti­tuído pela Câ­mara dos De­pu­tados de­pois de ter di­ri­gido uma carta à em­bai­xa­dora norte-ame­ri­cana, Li­liana Ayalde, acu­sando-a de in­tro­missão na so­be­rania do Pa­ra­guai.

A an­te­ceder o pro­cesso contra Spaini, Ayalde terá al­mo­çado com Fe­de­rico Franco e um grupo de ge­ne­rais na em­bai­xada dos EUA, dis­cu­tindo, já na­quela al­tura, o fu­turo po­lí­tico do país e a des­ti­tuição de Fer­nando Lugo.

Os textos di­vul­gados no Wi­ki­leaks atestam ainda que os EUA es­tavam ao cor­rente de que o ex-ge­neral gol­pista Lino Oviedo, o ex-pre­si­dente Ni­canor Du­arte e o vice-pre­si­dente Fe­de­rico Franco con­ti­nu­avam a «es­tudar formas de re­duzir o prazo de Lugo» e ad­mi­tiam que «um juízo po­lí­tico» podia «con­verter-se numa pos­si­bi­li­dade cada vez maior».

 

Poder re­ac­ci­o­nário

 

À cons­pi­ração im­pe­ri­a­lista acrescem as acu­sa­ções de que Fer­nando Lugo pre­tendia se­guir o «rumo co­mu­nista» de Chávez, Correa ou Mo­rales. A oli­gar­quia la­ti­fun­diária, do­mi­nante desde o tempo em que o fas­cista Stros­sner con­si­de­rava o Pa­ra­guai o ter­ri­tório mais an­ti­co­mu­nista do mundo, re­agiu pron­ta­mente a qual­quer de­cla­ração de sen­tido se­quer pro­gres­sista. O agrário chi­leno Edu­ardo Avilés exortou re­cen­te­mente os seus pares a com­prarem armas e a for­marem es­qua­drões da morte para iden­ti­fi­carem e li­qui­darem co­mu­nistas, re­vela Pablo Ste­fa­noni em ar­tigo igual­mente di­vul­gado no re­be­lion.org.

«Até quando vamos ter de es­perar para com­bater estes co­mu­nistas fi­lhos da puta, que estão a des­truir o nosso que­rido Pa­ra­guai como fi­zeram os al­len­distas no Chile?», terá es­crito Avilés na mis­siva.

No Pa­ra­guai, a sim­ples re­fe­rência à re­forma agrária ou a re­cente ad­missão do Par­tido Co­mu­nista às elei­ções pro­vocam o ódio do ca­pital fun­diário, que paga dos mais baixos im­postos do mundo e está li­gado em lu­cra­tivos ne­gó­cios a mul­ti­na­ci­o­nais da agro-in­dús­tria como a Car­gill ou a Mon­santo.

É sin­to­má­tico que, con­su­mado o golpe de Es­tado, o grémio agrário tenha can­ce­lado uma marcha de trac­tores sobre a ca­pital e blo­queios de es­tradas em todo o ter­ri­tório agen­dados para se­gunda-feira, 25. Os dois por cento dos pro­pri­e­tá­rios que con­trolam 85 por cento da terra jus­ti­fi­caram di­zendo que «dão o be­ne­fício da dú­vida ao novo pre­si­dente», no­ti­ciou a AFP.

O pre­si­dente da as­so­ci­ação pa­tronal foi mesmo mais claro afir­mando que «es­pe­ramos con­se­guir com Franco o que não con­se­guimos com Lugo», isto é, a re­pressão dos pro­testos so­ciais contra a in­jus­tiça, a de­si­gual­dade e a ex­plo­ração mais de­sen­freada, os quais foram re­vi­go­rados du­rante a pre­si­dência de Fer­nando Lugo, isto apesar do pre­si­dente não ter tido con­di­ções para avançar com al­gumas trans­for­ma­ções eco­nó­micas e so­ciais, como a de­mo­cra­ti­zação do acesso ao solo, por exemplo.

As pro­messas de Lugo foram sempre tra­vadas pelas forças bur­guesas e pelo apa­relho Es­tatal, pe­jado de ser­vi­dores do Par­tido Co­lo­rado, que go­vernou por mais de 60 anos. Os pro­cessos de mu­dança, mesmo que tí­midos, ra­ra­mente pas­saram das in­ten­ções e o chefe de Es­tado es­tava ma­ni­e­tado por uma es­tru­tura de poder refém dos in­te­resses con­trá­rios aos que o ex-bispo ca­tó­lico dizia de­fender e ha­bi­tuada a per­pe­tuar-se por meios vi­o­lentos.

 

Co­mu­nistas pa­ra­guaios apelam à re­sis­tência

 

O Par­tido Co­mu­nista Pa­ra­guaio con­si­dera que «ao povo não resta outra opção senão dar uma lição de de­mo­cracia» aos se­na­dores e de­pu­tados cor­ruptos e «ex­pressar ener­gi­ca­mente o re­púdio para com um golpe de Es­tado ins­ti­tu­ci­onal, de­fender a paz e o exer­cício pleno das li­ber­dades civis no Pa­ra­guai.

Em co­mu­ni­cado di­fun­dido na noite de quinta-feira, 21 – quando o Con­gresso dos de­pu­tados já havia ini­ciado o pro­cesso de des­ti­tuição de Fer­nando Lugo en­ca­mi­nhando-o para o des­fecho co­nhe­cido no Se­nado –, os co­mu­nista pa­ra­guaios ape­lavam à uni­dade com­ba­tiva e am­pliada de todas as ca­madas e sec­tores de­mo­crá­ticos do país.

«A mi­se­rável ati­tude da mai­oria do Con­gresso de apro­veitar-se do sangue der­ra­mado por com­pa­tri­otas no mas­sacre de Cu­ru­guaty (no con­texto da luta pela terra e pela re­cu­pe­ração de pro­pri­e­dades rou­badas) para con­sumar um golpe de Es­tado, de­monstra a vo­cação pro­fun­da­mente an­ti­de­mo­crá­tica dos po­lí­ticos da di­reita», ex­pressou o PC Pa­ra­guaio, para quem «esta ma­nobra é di­ri­gida pelo que de mais ran­çoso e obs­curo sub­siste na po­lí­tica pa­ra­guaia». Por isso, exigia a ins­ta­lação de um ga­bi­nete pre­si­den­cial capaz de «travar o gol­pismo e a crise» com­posto por «pes­soas de pro­vada le­al­dade» ao pro­cesso de mu­danças de­fen­dido du­rante a pre­si­dência de Fer­nando Lugo.

  

PCP con­dena Golpe

 

Re­a­gindo ao golpe de Es­tado que se con­su­mava na sexta-feira, 22, no Pa­ra­guai, o Ga­bi­nete de Im­prensa do PCP emitiu uma nota na qual re­pu­diou «com ve­e­mência» o «pro­cesso su­mário de im­pug­nação vi­sando a des­ti­tuição do pre­si­dente de­mo­cra­ti­ca­mente eleito, Fer­nando Lugo».

Para o Par­tido, «a ten­ta­tiva de golpe de Es­tado pro­mo­vida pelos par­tidos da di­reita pa­ra­guaia e de­mais sec­tores re­ac­ci­o­ná­rios afectos aos grandes in­te­resses la­ti­fun­diá­rios e eco­nó­micos da­quele país sul-ame­ri­cano – as mesmas forças que no pas­sado pro­ta­go­ni­zaram a mais longa di­ta­dura na Amé­rica La­tina – visa a in­ter­rupção e li­qui­dação do pro­cesso de­mo­crá­tico e po­pular. Tal como nas Hon­duras, em 2009, o pre­sente “golpe ins­ti­tu­ci­onal” in­sere-se na agenda sub­ver­siva e re­van­chista do im­pe­ri­a­lismo con­du­zida pelos EUA na re­gião».

«O PCP junta a sua voz a todos quantos, no­me­a­da­mente na Amé­rica La­tina, exigem o res­peito pela von­tade po­pular e ex­pressa a sua so­li­da­ri­e­dade para com os co­mu­nistas, os de­mo­cratas e o povo pa­ra­guaio», con­clui o texto.

Si­mul­ta­ne­a­mente, no Par­la­mento Eu­ropeu (PE), o de­pu­tado co­mu­nista João Fer­reira ques­ti­o­nava aquela ins­tância sobre a ne­ces­si­dade de con­denar e re­jeitar o golpe de Es­tado em de­sen­vol­vi­mento e «de­fender o pleno res­peito pela le­ga­li­dade de­mo­crá­tica e cons­ti­tu­ci­onal pa­ra­guaia, ga­rantia de que a von­tade so­be­rana do povo pre­va­lece sobre a von­tade da oli­gar­quia e/​ou sobre a in­ge­rência ex­terna».

Na per­gunta en­de­re­çada ao PE, o eleito do PCP con­si­derou ainda que «as forças mais re­ac­ci­o­ná­rias deste país tentam pro­ceder a um jul­ga­mento po­lí­tico do pre­si­dente eleito para não só bran­que­arem even­tuais res­pon­sa­bi­li­dades pró­prias no mas­sacre de cam­po­neses e po­lí­cias que as au­to­ri­dades do país devem apurar, como para pro­cu­rarem, por esta via, des­ti­tuir o pre­si­dente e tomar ile­gi­ti­ma­mente o poder a ele atri­buído pela ex­pressão so­be­rana do povo».

João Fer­reira lem­brou igual­mente que «é ne­ces­sário re­jeitar a re­pe­tição do pas­sado re­cente de golpes (al­guns deles fas­cistas) na Amé­rica La­tina, cujo exemplo mais re­cente é as Hon­duras, onde o pre­si­dente eleito foi de­posto com a ac­tiva cum­pli­ci­dade de po­tên­cias es­tran­geiras, no­me­a­da­mente dos EUA e da UE, se­guindo-se a re­pressão de todos quantos a ele se opu­seram ou opõem, as­sas­si­natos de opo­si­tores, sin­di­ca­listas, cam­po­neses, mem­bros da Frente contra o Golpe, e a im­po­sição das mais graves li­mi­ta­ções ao exer­cício das li­ber­dades po­lí­ticas e de­mo­crá­ticas».



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