A sonda e o mundo

Correia da Fonseca

De­certo por in­vo­lun­tária coin­ci­dência, foi no dia em que se com­ple­tavam ses­senta e sete anos sobre o lan­ça­mento em Hi­roshima da pri­meira bomba ató­mica usada para o ex­ter­mínio de gente (isto é, ex­cluindo da con­tagem os en­ge­nhos ató­micos de­fla­grados a tí­tulo ex­pe­ri­mental no de­serto de Ne­vada, nos Es­tados Unidos) que a te­le­visão nos trouxe a no­tícia de que a NASA con­se­guira fazer pousar em Marte uma com­plexa má­quina, dita sonda, en­viada com o ob­jec­tivo de co­lher in­for­ma­ções acerca da­quele pla­neta. A sonda tem nome e tudo, e não um nome qual­quer: «Cu­ri­o­sity». E é claro que o nome aponta para a mo­ti­vação talvez prin­cipal, talvez não, que ex­pli­cará a cons­trução e envio de um en­genho fa­bu­loso que de certo custou mi­lhões de dó­lares ao erário norte-ame­ri­cano: o de­sejo de alargar o co­nhe­ci­mento ainda es­casso acerca do pla­neta que ime­di­a­ta­mente se segue ao nosso no quadro do sis­tema solar quando a con­tagem é feita a partir do Sol. De onde o nome de «Cu­ri­o­sity». É certo que custa a crer que os Es­tados Unidos apli­cassem tão gi­gan­tescas verbas apenas para sa­ciar o bo­nito, mas neste caso muito caro, ape­tite por sa­benças de ca­rácter ci­en­tí­fico, tanto mais que já está pra­ti­ca­mente as­se­gu­rada a ine­xis­tência dos mar­ci­anos cuja ima­gi­nada exis­tência ali­mentou du­rante dé­cadas al­guma ficção ci­en­tí­fica. Mas é sa­bido que há ou­tras mo­ti­va­ções. Não se ig­nora que as avan­ça­dís­simas tec­no­lo­gias que têm per­mi­tido êxitos que vão desde a cons­trução e co­lo­cação de sa­té­lites ar­ti­fi­ciais até à cha­mada «con­quista da Lua» têm muito a ver com os avanços ar­ma­men­tistas de ponta. Tal como se sabe que os tais muitos mi­lhões gastos pelo Es­tado norte-ame­ri­cano nesta área não são pro­pri­a­mente per­didos, pelo menos se­gundo um de­ter­mi­nado ân­gulo: en­tram nas te­sou­ra­rias de em­presas pri­vadas que sa­tis­fazem as ne­ces­si­dades da NASA e que assim obtêm pro­ventos de­certo nada ir­re­le­vantes. Se, como em tempos foi dito por um se­cre­tário da De­fesa USA, o que então era bom para a Ge­neral Mo­tors era bom para os Es­tados Unidos, sín­tese que con­densa todo um en­ten­di­mento do in­te­resse na­ci­onal e da gestão pú­blica, pa­rece le­gí­timo supor que a mesma visão é apli­cável às em­presas do cha­mado com­plexo in­dus­trial-mi­litar.

Onde se lembra Sa­ra­mago

En­tre­tanto, não ga­ranto que neste mesmo dia 6 de Agosto a te­le­visão nos tenha tra­zido muitas in­for­ma­ções alar­gadas acerca do que vai pelo mundo e, so­bre­tudo, que tenha ul­tra­pas­sado o aca­nhado li­mite de in­te­resses que dia após dia vai ca­rac­te­ri­zando os seus ser­viços no­ti­ci­osos. É claro que nos falou da Síria e da ope­ração mul­ti­na­ci­onal que por in­ter­posto «exér­cito livre» ali se vai ar­ras­tando, agora dir-se-ia que em fase de quarto min­guante pro­va­vel­mente en­ga­noso. Mas não re­cordo nada que nos tenha fa­lado da pe­ri­gosa jo­gada pro­vo­ca­tória que con­siste na ins­ta­lação de armas anti-míssil a re­la­ti­va­mente poucos qui­ló­me­tros da fron­teira oci­dental da Rússia, in­for­mação que chegou a andar pelos te­le­no­ti­ciá­rios e de­pois de­sa­pa­receu. E sei com in­teira se­gu­rança que não nos deu no­tí­cias das fomes que con­ti­nuam a grassar em África; das de­su­manas con­di­ções de so­bre­vi­vência que Is­rael impõe a mi­lhares de pa­les­ti­ni­anos a quem co­meçou por roubar a terra e se obs­tina agora a roubar a es­pe­rança; do quo­ti­diano de sobre-ex­plo­ração a que estão sub­me­tidos mi­lhões de tra­ba­lha­dores sul-ame­ri­canos; se­quer do quo­ti­diano dos trinta mi­lhões de po­bres que nos Es­tados Unidos se ar­rastam de de­sem­prego para su­bem­prego. A esta mi­nús­cula su­gestão de um pos­sível in­ven­tário de hor­rores poder-se-ia acres­centar muito mais, como de­certo não se du­vida, mas estes exem­plos bastam para que cla­ra­mente se en­tenda que o que a te­le­visão omite não apenas numa de­ter­mi­nada data mas sim ao longo dos dias, das se­manas, dos anos, é na ver­dade o que ca­rac­te­riza este tempo de do­mínio pla­ne­tário pelo ca­pi­ta­lismo ne­o­li­beral. Re­ca­pi­tulo este in­ven­tário si­nistro e, te­les­pec­tador, com­paro-o com o jú­bilo de­cor­rente do êxito da sonda «Cu­ri­o­sity». E re­vi­sitam-me dois an­tigos versos de Sa­ra­mago, os ini­ciais do poema «Fala do Velho do Res­telo ao As­tro­nauta», plenos de uma pun­gente ac­tu­a­li­dade: «Aqui, na Terra, a fome con­tinua, /A mi­séria, o luto, e outra vez a fome».



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