Estória de piratas
Como se sabe, para anunciar a execução sumária da operadora estatal de televisão o dr. António Borges não se deslocou ao domicílio da vítima e preferiu os estúdios da TVI, empresa concorrente da condenada. Terá havido quem tenha estranhado a opção, uma vez que se tratava de uma importante decisão do Governo, de uma «reforma estrutural», como se diz no peculiar dialecto do neoliberalismo imperante. Não parece, porém, que a estranheza se justifique, pois não é costume que os assassinos, ou os seus porta-vozes, se desloquem a casa dos futuros assassinados para aí anunciarem o que decidiram fazer. Também houve quem se surpreendesse por uma medida de tamanho vulto não ter sido anunciada pelo ministro que tutela o sector, mas sim por um sujeito cujas presumíveis qualificações excedem largamente as necessárias para a mera função de dador de recados. A propósito desta singularidade houve mesmo quem apelidasse o dr. Borges de «lebre», o que não parece excessivamente lisonjeiro para um ex-vice presidente da famigerada Goldman Sachs. Mas talvez este aspecto se explique por uma questão de cautela, pois é óbvio que os grandes assaltos, as gigantescas pilhagens, recomendam precauções. Ora, o que está anunciado não se limita à passagem para o sector privado de uma função que pela sua própria natureza e pelas exigências que a acompanham deve estar confiada ao Estado, isto é, ao aparelho que representa todos os cidadãos: a entrega a uma empresa privada do mais importante canal português de TV, complementada pela execução sumária do canal que melhor ou pior ainda correspondia ao dever de informação/promoção cultural que está na matriz de qualquer operadora pública de televisão, será ainda acompanhada pela dádiva cash de um apetitoso brinde estimado em cerca de 140 milhões de euros anuais, interessante verba praticamente recolhida por subscrição nacional de participação obrigatória. Assim, graças a um golpe de génio do Governo Passos Coelho/Miguel Relvas, a exploração comercial da televisão deixa de ser em Portugal uma actividade sempre em risco de resultados negativos mas sim, pelo contrário, uma possibilidade de bons dividendos financeiros. Aos quais, como bem se sabe, se acrescentarão os outros, os dividendos que não se contabilizam em euros mas sim pela quotidiana lavagem de cérebros.
O medo e o crime
É certo que a altura do assalto parece ter sido bem escolhida: o momento em que a Radiotelevisão Portuguesa, graças a medidas discutíveis mas factuais, deixou de ser uma crónica fonte de resultados negativos e passou a constituir-se em promessa de lucros. Aliás, esta sabedoria do momento mais propício é uma clássica condição de êxito para qualquer operação de esbulho ou pirataria. E vem de longe. Bem me lembro de que nos «romances de piratas» que Salgari escreveu e que fascinaram muitas adolescências o ataque dos corsários esperava a passagem das naus a assaltar quando carregadas de ouro, não quando partiam vazias em busca de nova carga. Não sei, é claro, se o ministro Relvas e seus similares leram Salgari na adolescência, inclinando-me aliás a crer que se aplicaram a leituras mais avançadas e modernas, mas afigura-se que de qualquer modo se mantiveram fiéis a esta lei da pirataria. E também a outras, decerto. Contudo, nesta sua prática há uma dimensão inovadora em relação às do capitão Morgan e do Corsário Negro: o transparente horror à cultura evidenciado pelo cruel extermínio da RTP2, canal cronicamente suspeito, ainda que com muito escasso fundamento, de ser «cultural». Tanto quanto me lembro, os piratas de Salgari não seriam decerto intelectuais, mas eram gente que em tempos anteriores teriam tido as suas leituras e não odiavam a cultura. Ora, o assassínio da «2» sob invocação do pretexto pelintra de que tem escassa audiência (entenda-se: menor audiência que as novelas parolas e os futebóis fascinantes) só tem explicação plausível pela aversão à cultura, pelo medo da cultura e de quanto com cultura se pareça. Com sólida razão, reconheça-se: mais tarde ou mais cedo, a cultura pode levar um homem a pensar. E se muitos homens se põem a pensar, não sei o que vai ser deste Governo, desta gente, deste modelo de sociedade.