A cábula

Anabela Fino

O facto de Passos Co­elho ter es­co­lhido as 19.30 horas de sexta-feira para fazer o anúncio ao País das novas «me­didas de ajus­ta­mento» – a pa­lavra aus­te­ri­dade pa­rece ter sido ba­nida do lé­xico do Go­verno – sus­citou ines­pe­radas es­pe­cu­la­ções. Que o mo­mento foi es­co­lhido por logo a se­guir haver fu­tebol na te­le­visão, o mais eficaz anes­té­sico na­ci­onal, dis­seram uns; que foi por ser vés­pera de fim-de-se­mana e Passos acre­ditar que o povão vai ao sá­bado e ao do­mingo a ba­nhos à Ca­pa­rica, dei­xando as pre­o­cu­pa­ções em banho-maria até se­gunda-feira, aven­taram ou­tros... Es­tava-se nisto quando uma foto veio es­cla­recer o parte do mis­tério: afinal o homem quis des­pa­char o as­sunto para ir com a sua cara me­tade a um con­certo, onde se terá di­ver­tido muito e jun­tado a sua bela voz à do pú­blico que fez coro com Paulo de Car­valho can­tando a plenos pul­mões «Nini dan­ça­aava só para miiim». Como é cos­tume nestas coisas, des­feito um mis­tério logo outro se adensou: como pode o pri­meiro-mi­nistro andar a di­vertir-se quando mi­lhões de por­tu­gueses fi­caram em es­tado de choque com a bru­ta­li­dade das me­didas por ele anun­ci­adas? A res­posta a esta questão só veio a pú­blico no início da se­mana, via edição elec­tró­nica do Ex­presso, mas já cir­cu­lava nos mi­nis­té­rios na sexta-feira sob a forma de um guião de quatro fo­lhas. Não há mo­tivo para pre­o­cu­pa­ções. Preto no branco, a cá­bula ex­plica como de­verão os go­ver­nantes/​as­ses­sores/​co­men­ta­dores e ou­tros «ores» de ser­viço res­ponder às ine­vi­tá­veis per­guntas, so­bre­tudo da im­prensa, sobre a ma­téria, re­co­men­dando logo à ca­beça que o façam «com energia e am­bição». Não está con­fir­mado, mas pre­sume-se que a cá­bula seja da au­toria do ga­bi­nete de Mi­guel Relvas. Por esta se­benta se fica a saber que os por­tu­gueses têm todos os mo­tivos do mundo para ficar sa­tis­feitos, a cantar mesmo às ninis de cada um, pois o au­mento de 11 para 18 por cento da con­tri­buição dos tra­ba­lha­dores para a Se­gu­rança So­cial «per­mite baixar preços», o que «au­menta o ren­di­mento dis­po­nível das fa­mí­lias», au­menta as «pers­pec­tivas de in­ves­ti­mento», «alivia a te­sou­raria das em­presas» e, claro, como não podia deixar de ser, «au­menta o em­prego». Que alívio. E nós quase a acre­ditar que baixar os sa­lá­rios em sete por cento, de forma de­fi­ni­tiva, re­duzir os ren­di­mentos dos tra­ba­lha­dores e dos pen­si­o­nistas em cerca de quatro mil mi­lhões de euros, mais o que Vítor Gaspar se lem­brar, ia ser uma des­graça.

O ma­nual de in­ter­pre­tação das pa­la­vras de Passos também dá nota, fe­liz­mente, de como res­ponder a ou­tras ques­tões – tipo re­pre­sentam as me­didas in­sen­si­bi­li­dade so­cial?, novo au­mento de im­postos? –, for­ne­cendo basto ar­gu­men­tário para os as­pectos tidos como sen­sí­veis. Assim, o item «pa­trões» re­vela que o corte nas con­tri­bui­ções das em­presas para a Se­gu­rança So­cial «não é o re­forço de ca­pi­tais para os bolsos dos pa­trões, é para o re­forço e salvar as em­presas e o em­prego». Ufff. E nós quase a acre­ditar que os 0,1 por cento de em­presas que vai abi­char mais de dois mil mi­lhões de euros com a me­dida iam dis­tri­buir mais lu­cros aos ac­ci­o­nistas! Não há nada como uma boa ex­pli­cação. Por aqui se vê que Passos Co­elho bem pode soltar a voz. A pro­pó­sito, o con­certo ter­minou com a canção «E de­pois do adeus». Ele há coin­ci­dência que não vêm nos ma­nuais.



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