Memória

Mário Castrim – Dez anos

Correia da Fonseca

Passaram depressa, quase não dei por eles – Por estes dez anos. Não admira: na verdade, bem se pode dizer que durante estes anos, dia após dia, o Mário continuou comigo. Graças à televisão que era entre nós uma quotidiana preocupação comum? Sim, em certa medida, mas não muito.

Na verdade, o Mário foi para mim muito mais do que um camarada de trabalho, e bem se entenderá porquê se lembrarmos que o Mário Castrim foi muito mais que um crítico de televisão quotidianamente visitado por um toque de genialidade.

Lembro-o, é claro, sempre que a televisão me indigna, ou me desgosta, ou me inquieta, mas lembro-o em muitas mais ocasiões ao longo dos dias. Porque o Mário Castrim era um homem raro, possuído por uma generosidade sem limites, fraterno como nunca encontrei outro, sábio de uma sabedoria que se alimentava de inteligência, de cultura e de ternura. E cidadão exemplaríssimo: sabe-se, para além de qualquer dúvida, que renunciou à grande obra literária que bem poderia ter-nos deixado porque a sacrificou em favor da tarefa cívica de denunciar, dia após dia, o crime político e cultural que era uma televisão ao serviço do fascismo. Bem nos lembramos de que as suas crónicas eram implacáveis, fulminantes, mobilizadoras, E, naturalmente, encorajantes.

O francês Louis Aragon escreveu um dia que «il est contagieux l’éxemple du courage». Durante anos e anos, muitas vezes me lembrei deste verso ao ler crónicas do Mário Castrim.

Passaram depressa estes dez anos. Mas não passou o Mário Castrim. Continua em quantos tiveram a sorte de com ele privarem, de aprender com ele acerca das grandes mas também das pequenas coisas. De o lerem, sendo certo que nunca mais puderam ler textos como os que o Mário escrevia. Na planificação do Avante! para este ano de 2012 desde sempre esteve inscrito o dever de este jornal assinalar o décimo aniversário da morte do Mário, nosso companheiro e nosso mestre. Porque ele não deixou de estar connosco, dia após dia. E aqui vai continuar.

Biografia breve
 
 

Mário Castrim, professor, escritor, jornalista e crítico televisivo, nasceu em Ílhavo, a 31 de Julho de 1920, e faleceu em Lisboa a 15 de Outubro de 2002.

Trabalhou no jornal Diário de Lisboa, até ao encerramento do título, após o que passou a colaborar com o semanário Tal & Qual. Colaborava ainda regularmente com o Avante!, tendo enriquecido o jornal com os seus poemas praticamente até ao fim da vida.

Mário Castrim, pseudónimo de Manuel Nunes da Fonseca, foi o primeiro crítico de televisão em Portugal.

Destacada figura da vida cívica e cultural do País, e militante comunista com muitas décadas de corajosa e coerente intervenção, Mário Castrim deu um valioso contributo, enquanto crítico de televisão, escritor e intelectual, para a formação democrática e humanista de muitas gerações. Por isso mesmo permanece como «referência histórica do género e exemplo a considerar por sucessivas gerações de críticos, mas também ficará na nossa memória como homem culto e lúcido, cidadão comprometido com o seu tempo e fiel às suas convicções», como na altura do seu desaparecimento sublinhou o Sindicato dos Jornalistas.

Escreveu ainda livros infantis e juvenis: «Histórias com Juízo», «Estas são as Letras», «As Mil e Uma Noites», «A Moeda do Sol», a série «As aventuras da girafa Gira Gira», «O Cavalo do Lenço Amarelo é Perigoso», «A Caminho de Fátima», «O Caso da Rua Jau» e «Váril, o Herói»; peças de teatro: «Com os Fantasmas não se Brinca» e «Contar e Cardar». É também autor das obras «Televisão e Censura», «Histórias da Televisão Portuguesa» e de dois livros de poesia: «Nome de Flor» e «Viagens».
Está representado em diversas antologias, nomeadamente, «Um Homem na Cidade», de 1968, que reuniu crónicas de dez jornalistas do Diário de Lisboa.

Ser comunista, hoje

Esperança:
é a maneira
como o futuro fala
ao nosso ouvido.
Depois
há que saber
organizá-lo.

Então
Os comunistas entram em acção.
 

 

Versos muito pessoais

III

 

És livre?

Isto é:

quem amas?

 

IV

 

Realizo-me no acto de pagar

as quotas do Partido.

Não tem nada de heróico.

Nada mais natural

como beijar o filho

na hora de deitar.

 

V

 

Leio

o AVANTE!

devagar

e com toda a atenção

como se o escrevesse.

 

*************************

 

Lágrimas, não. Lágrimas, não. A sério -

Enfim, não digo que. É natural.

Mas pronto. Adeus, prazer em conhecer-vos -

Filhos, sejamos práticos, sadios.

 

Nada de flores. Rigorosamente.

Nem as velas, está bem? Se as acenderem

Sou homem para me levantar e vir

soprá-las, e cantar os «parabéns».

 

Não falem baixo: é tarde para segredos.

Conversem, mas de modo que eu também

oiça, e melhor a grande noite passe.

 

Peço pouco na hora desprendida:

Fique eu em vós apenas como se

Tudo não fosse mais que um sonho bom.

 

               (Último poema de Mário Castrim, escrito uma semana antes  do seu falecimento e após cerca de dez semanas de internamento.)


 



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