No centenário do nascimento de José Moreira

José Casanova

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Em Ja­neiro de 1950, uma bri­gada da PIDE as­sal­tava uma casa clan­des­tina do PCP, em Vila do Paço, no con­celho de Torres Novas e prendia o fun­ci­o­nário do Par­tido que a ocu­pava. O as­salto de­corria de uma de­núncia, pelo que a po­lícia sabia, não apenas que se tra­tava de uma casa clan­des­tina, mas também que nela vivia o res­pon­sável prin­cipal pelas ti­po­gra­fias do Par­tido: José Mo­reira.

Era a grande opor­tu­ni­dade que se ofe­recia à PIDE – pelo menos esta assim o jul­gava… – para, fi­nal­mente, cum­prir o sonho, que per­se­guia desde há vá­rios anos, de des­man­telar a rede de ti­po­gra­fias clan­des­tinas do PCP.

Tanto mais que, nos úl­timos cinco anos, ou seja, desde que José Mo­reira as­su­mira aquela res­pon­sa­bi­li­dade, ne­nhuma ti­po­grafia fora lo­ca­li­zada e as­sal­tada pela po­lícia fas­cista.

E o Avante! pas­sara a sair re­gu­lar­mente, fa­zendo chegar aos tra­ba­lha­dores e ao povo as ori­en­ta­ções, aná­lises e ob­jec­tivos do Par­tido, de­sem­pe­nhando o seu papel de agi­tador, pro­pa­gan­dista e or­ga­ni­zador co­lec­tivo.

Criado em 1931, na sequência da Con­fe­rência de Abril de 1929, o Avante! so­frera pe­sados golpes nos seus pri­meiros dez anos de vida. Por efeito quer da forte re­pressão fas­cista quer da in­su­fi­ci­ente pre­pa­ração do Par­tido para fazer frente a essa ofen­siva, a pu­bli­cação do Avante! fora in­ter­rom­pida por cinco vezes nessa dé­cada. Ainda assim, o órgão cen­tral do Par­tido foi pu­bli­cado re­gu­lar­mente du­rante todos os meses do ano de 1935 e saiu se­ma­nal­mente entre 1936 e 1938, che­gando a atingir ti­ra­gens de 10 mil exem­plares – proeza no­tável, co­nhe­cida que era a força da ofen­siva fas­cista nessa som­bria dé­cada de 30.

Era o tempo em que Sa­lazar, no quadro de grandes avanços do nazi-fas­cismo na Eu­ropa, le­vava por di­ante o pro­cesso de fas­ci­zação do Es­tado, to­mando como mo­delos, pri­meiro a Itália de Mus­so­lini e, de­pois, a Ale­manha de Hi­tler. Assim, à cri­ação, em 1930, do par­tido único fas­cista, a União Na­ci­onal, à im­po­sição de uma cen­sura férrea (e à im­po­sição aos fun­ci­o­ná­rios pú­blicos da acei­tação dos prin­cí­pios da di­ta­dura fas­cista, da re­jeição dos ideais co­mu­nistas e de dever de de­nun­ciar todos os que pro­fes­sassem dou­trinas sub­ver­sivas), segue-se a pro­cla­mação da Cons­ti­tuição fas­cista; a pro­mul­gação do Es­ta­tuto do Tra­balho Na­ci­onal (co­piado da Carta del La­voro, de Mus­so­lini), que ile­ga­liza os sin­di­catos li­vres e impõe os sin­di­catos fas­cistas; a cri­ação da Po­lícia de Vi­gi­lância e De­fesa do Es­tado (PVDE, mais tarde PIDE, mais tarde DGS); a cri­ação do Se­cre­ta­riado da Pro­pa­ganda Na­ci­onal; a cri­ação do Tri­bunal Mi­litar Es­pe­cial; a cri­ação do Con­selho Cor­po­ra­tivo e a de­fi­nição do re­gime ju­rí­dico dos Or­ga­nismos de Co­or­de­nação Eco­nó­mica; a cri­ação da Fe­de­ração Na­ci­onal para a Ale­gria no Tra­balho (FNAT) e da Mo­ci­dade Por­tu­guesa – ins­pi­radas em or­ga­ni­za­ções con­gé­neres cri­adas por Mus­so­lini e Hi­tler; a cri­ação do Campo de Con­cen­tração do Tar­rafal (também se­guindo mo­delos da Itália fas­cista e da Ale­manha nazi); a cri­ação da Le­gião Por­tu­guesa…

Es­tava, assim, criada a po­de­rosa má­quina de ex­plo­ração, opressão, re­pressão e pro­pa­ganda do fas­cismo, uma má­quina que, em ma­téria per­se­cu­tória e re­pres­siva, tinha o PCP como alvo prin­cipal e pri­o­ri­tário; uma má­quina que vi­brou fortes e pro­fundos golpes no Par­tido, o qual, no final dessa dé­cada, vivia mo­mentos par­ti­cu­lar­mente di­fí­ceis.

É com o pro­cesso da his­tó­rica re­or­ga­ni­zação de 1940/​41 e da cons­trução dos igual­mente his­tó­ricos III e IV con­gressos, res­pec­ti­va­mente em 1943 e 1946 – pro­cesso le­vado a cabo por um no­tável con­junto de qua­dros, dos quais emerge como fi­gura mais des­ta­cada o ca­ma­rada Álvaro Cu­nhal – que o Par­tido cria as con­di­ções ne­ces­sá­rias para en­frentar o apa­relho re­pres­sivo fas­cista, ao mesmo tempo que se afirma como um grande par­tido na­ci­onal, mar­xista-le­ni­nista, van­guarda re­vo­lu­ci­o­nária da classe ope­rária e das massas, força de­ter­mi­nante da re­sis­tência e da uni­dade an­ti­fas­cistas.

Entre as me­didas to­madas estão as que se re­la­ci­onam com a cri­ação de con­di­ções para a saída re­gular da im­prensa par­ti­dária, ob­jec­tivo que viria a ser ple­na­mente al­can­çado: de Agosto de 1941 até ao 25 de Abril de 1974, o Avante! foi pu­bli­cado sem in­ter­rup­ções, sempre com­posto e im­presso no in­te­rior do País, afir­mando-se como o jornal que, à es­cala in­ter­na­ci­onal, du­rante mais tempo re­sistiu com êxito à clan­des­ti­ni­dade.

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Morrer pelo Par­tido

À al­tura da prisão de José Mo­reira, in­co­mo­dava os es­birros da PIDE o facto de o órgão cen­tral do PCP ter sido pu­bli­cado, sem in­ter­rup­ções, desde a re­or­ga­ni­zação de 40/​41 e de, entre 1945 e 1949 não terem con­se­guido lo­ca­lizar e as­saltar uma única ti­po­grafia.

Jul­gavam, assim, que com a prisão de José Mo­reira iriam vi­brar um golpe fatal na rede de ti­po­gra­fias clan­des­tinas do Par­tido. Bas­taria para isso que o preso fa­lasse, que lhes for­ne­cesse as mo­radas, que co­nhecia, das vá­rias ti­po­gra­fias exis­tentes.

Tal não acon­teceu: sub­me­tido aos in­ter­ro­ga­tó­rios pi­descos – in­ter­ro­ga­tó­rios inin­ter­ruptos, in­ten­sivos e bru­tais, já que a PIDE queria obter de ime­diato as mo­radas das ti­po­gra­fias de modo a evitar que o Par­tido ti­vesse tempo de as mudar – José Mo­reira re­cusou-se a falar, a trair os seus ca­ma­radas e o seu Par­tido. Entre morrer ou trair, optou por morrer. A PIDE não lhe ar­rancou uma única mo­rada, uma única in­for­mação. E tor­turou-o até à morte – que ocorreu no dia 23 de Ja­neiro de 1950.

Com o in­tuito de es­conder o crime, a po­lícia fas­cista pro­cedeu à usual en­ce­nação do «sui­cídio», ati­rando o corpo do mi­li­tante co­mu­nista de uma ja­nela do 3.º andar da An­tónio Maria Car­doso. Tinha 37 anos de idade e era fun­ci­o­nário do Par­tido há cerca de cinco anos. Pouco tempo antes da sua prisão e do seu as­sas­si­nato, es­cre­vera: «Uma ti­po­grafia clan­des­tina é o co­ração da luta po­pular. Um corpo sem co­ração não pode viver».

E em Agosto desse ano, pode ler-se no órgão cen­tral do PCP: «A me­lhor ho­me­nagem que lhe po­demos prestar é levar o Avante!, o seu Avante!, a todos os re­cantos do país.»

Re­corde-se que, cerca de um ano antes, o fas­cismo re­ju­bi­lara com a prisão, nos pri­meiros meses de 1949, de mais de uma de­zena de di­ri­gentes e qua­dros do Par­tido, entre eles Álvaro Cu­nhal, Mi­litão Ri­beiro e Sofia Fer­reira. E que, por essa al­tura, o go­verno fas­cista de Sa­lazar era ad­mi­tido como membro fun­dador da NATO, com o apoio do go­verno dos EUA, que cons­ti­tuía o prin­cipal su­porte do re­gime fas­cista por­tu­guês a nível in­ter­na­ci­onal – su­porte que se man­teve até ao dia 24 de Abril de 1974.

Re­giste-se, ainda, que dias antes do as­sas­si­nato de José Mo­reira, em 2 de Ja­neiro, mor­rera Mi­litão Ri­beiro, na Pe­ni­ten­ciária de Lisboa, ví­tima de um crime cruel e per­verso.

Co­ragem sem li­mites

José Mo­reira nasceu há cem anos, em Vi­eira de Leiria. Quase cri­ança, foi tra­ba­lhar para a Ma­rinha Grande, como ope­rário vi­dreiro. É ali, no con­tacto di­recto com a ex­plo­ração em duras con­di­ções de tra­balho, que vai for­mando a sua cons­ci­ência de classe. É ali, num am­bi­ente de forte tra­dição re­vo­lu­ci­o­nária e de luta do ope­ra­riado local, que ad­quire a cons­ci­ência po­lí­tica que cedo o le­vará a aderir ao PCP.

Em 1945, logo a se­guir ao fim da II Guerra Mun­dial, passa à clan­des­ti­ni­dade e, en­quanto fun­ci­o­nário do Par­tido, é-lhe con­fiada a dura, di­fícil e im­por­tan­tís­sima ta­refa de res­pon­sável pelo apa­relho de im­prensa – ta­refa que exigia uma de­di­cação ex­trema, um alto sen­tido de res­pon­sa­bi­li­dade e de dis­ci­plina, uma grande ca­pa­ci­dade cri­a­tiva e, acima de tudo, uma co­ragem sem li­mites. Tudo ca­rac­te­rís­ticas que José Mo­reira pos­suía e às quais aliava um ele­vado es­pí­rito de sa­cri­fício, uma en­trega total ao Par­tido e à luta, uma rí­gida ob­ser­vância dos cui­dados cons­pi­ra­tivos – bem como uma im­pres­si­o­nante sen­si­bi­li­dade hu­mana, vi­sível no seu trato fra­terno e so­li­dário com os que o ro­de­avam e no es­tí­mulo e no apoio que dava aos qua­dros que, em total iso­la­mento, tra­ba­lhavam nas ti­po­gra­fias.

Para se per­ceber a im­por­tância e a com­ple­xi­dade da ta­refa de José Mo­reira, basta ter em conta, por exemplo, as di­fi­cul­dades para fazer chegar o Avante! às mãos dos mi­li­tantes co­mu­nistas e das massas tra­ba­lha­doras e po­pu­lares. As di­fi­cul­dades co­me­çavam com a aqui­sição do papel bí­blia uti­li­zado na ge­ne­ra­li­dade das pu­bli­ca­ções do Par­tido, já que a PIDE obri­gava as pa­pe­la­rias a re­gistar o nome de todos os com­pra­dores desse tipo de papel e as quan­ti­dades ad­qui­ridas. Su­pe­rada, com ima­gi­nação, essa di­fi­cul­dade, tra­tava-se, de­pois, de dis­tri­buir o papel e as tintas pelas vá­rias ti­po­gra­fias, ope­ração pe­ri­gosa e ar­ris­cada a exigir cui­dados ex­tremos. A se­guir, era ne­ces­sário ir buscar os textos ela­bo­rados pela Di­recção do Par­tido e en­tregá-los, para im­pressão, nas ti­po­gra­fias – o que im­pli­cava uma série de en­con­tros e con­tactos. De­pois de im­pressos, havia que dis­tri­buir os do­cu­mentos – o Avante!, entre eles, com lugar de des­taque – pelas or­ga­ni­za­ções par­ti­dá­rias, que os fa­riam chegar aos tra­ba­lha­dores e ao povo. Tudo isto co­lo­cava enormes exi­gên­cias: os cui­dados a ter nos múl­ti­plos en­con­tros e des­lo­ca­ções que se im­pu­nham e o enorme es­forço a que tal ta­refa obri­gava, sa­bendo-se que, por ra­zões de se­gu­rança, os en­con­tros e as en­tregas do Avante! e dos ou­tros ma­te­riais im­pressos, eram feitos em lo­cais «neu­tros», isto é, dis­tantes quer das ti­po­gra­fias quer das zonas a que se des­ti­navam. Para cum­prir todas estas ta­refas, José Mo­reira des­lo­cava-se de bi­ci­cleta, che­gando a per­correr 2500 qui­ló­me­tros por mês, muitas vezes trans­por­tando pe­sadas, pe­sa­dís­simas cargas.

Assim lu­tavam os co­mu­nistas pela li­ber­dade de in­for­mação: exer­cendo-a – para isso, afron­tando as per­se­gui­ções e a re­pressão fas­cistas, dando as suas vidas se ne­ces­sário fosse.

E muitas vezes isso foi ne­ces­sário ao longo do quase meio sé­culo de luta he­róica – das per­se­gui­ções, das pri­sões, das tor­turas a que eram sub­me­tidos pelo re­gime fas­cista.

Fal­si­fi­ca­dores da his­tória

Es­tado Novo foi a de­sig­nação adop­tada por Sa­lazar para mas­carar o re­gime fas­cista que, du­rante quase meio sé­culo, ex­plorou, oprimiu e re­primiu o povo por­tu­guês.

O di­tador ga­rantia que não havia presos po­lí­ticos em Por­tugal – havia, dizia ele, uns quantos de­lin­quentes so­ciais – e ju­rava que a PIDE não tor­tu­rava nem ma­tava, que isso eram in­ven­ções dos co­mu­nistas para de­ne­grir o re­gime. Mais tarde, o seu su­cessor, Mar­celo Ca­e­tano, afi­naria pelo mesmo di­a­pasão: os co­mu­nistas chamam tor­turas a sim­ples in­ter­ro­ga­tó­rios de duas ou três horas…

Hoje, os his­to­ri­a­dores do sis­tema ga­rantem que em Por­tugal não existiu fas­cismo – quando re­ferem o re­gime fas­cista chamam-lhe «Es­tado Novo» ou «an­tigo re­gime» – as­se­guram que Sa­lazar não era fas­cista, ou que era, até, um grande de­mo­crata e juram a pés juntos que a PIDE prendeu pouco e matou pouco…

Na­tu­ral­mente, também no que res­peita ao PCP a his­to­ri­o­grafia do­mi­nante faz o seu ca­minho de men­tiras, de­tur­pa­ções, ca­lú­nias, si­len­ci­a­mentos, pro­cu­rando apagar o papel sin­gular de­sem­pe­nhado pelos co­mu­nistas na re­sis­tência ao fas­cismo, na luta pela li­ber­dade e a de­mo­cracia, e os seus es­forços cons­tantes vi­sando a cons­trução da uni­dade an­ti­fas­cista e o der­ru­ba­mento do re­gime.

Assim, não sur­pre­ende que, em mi­lhares de pá­ginas de­di­cadas por esses fal­si­fi­ca­dores da his­tória ao «Es­tado Novo» e ao PCP, o nome de José Mo­reira seja, em regra, ig­no­rado.

As es­tó­rias que es­crevem render-lhes-ão, cer­ta­mente, vo­lu­mosos pro­ventos.

Mas a his­tória não os ab­sol­verá.

 



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