Manuel do Nascimento – escritor de emoções, de combate e de memória

Domingos Lobo

Ma­nuel do Nas­ci­mento nasceu em Mon­chique a 27 de De­zembro de 1912 e fa­leceu em Lisboa a 30 de De­zembro de 1966. Homem de artes vá­rias: tra­ba­lhador das minas de Jales (Ma­nuel do Nas­ci­mento era Téc­nico Su­pe­rior de Minas), editor, jor­na­lista e es­critor.

Largar, como as co­bras, a pele, a cada texto so­frido, e se­guir em frente – Agonia/​1954

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É, exac­ta­mente, en­quanto tra­ba­lhador nas minas de Jales, que trava co­nhe­ci­mento com So­eiro Pe­reira Gomes1 e através deste des­cobre a li­te­ra­tura re­a­lista de cariz so­cial, o neo-re­a­lismo. A ex­pe­ri­ência nas minas, função que o le­varia a con­trair uma lesão pul­monar e, mais tarde, o seu afas­ta­mento da ac­ti­vi­dade, con­tri­buiria para a ela­bo­ração de um dos seus mais co­nhe­cidos ro­mances, Mi­neiros, de 1944, que fixa e de­nuncia, em pá­ginas de uma agu­deza crí­tica in­co­muns à época, a con­dição mi­se­rável dos mi­neiros, a du­reza de vida e as formas ex­tremas de ex­plo­ração e os modos como estes cons­troem e de­sen­volvem a sua luta contra essa mesma su­jeição. Maria de Lourdes Bel­chior, em nota crí­tica sobre o ro­mance es­cre­verá: a mina é o herói desta nar­ra­tiva; aos ho­mens que lá tra­ba­lham re­pugna serem ex­plo­rados pelos ou­tros ho­mens e não querem ser roda den­tada (isto é, sem pen­sa­mento) de uma en­gre­nagem qual­quer.2

Ma­nuel do Nas­ci­mento re­gres­saria ao tema das minas e dos mi­neiros, em O Aço Mudou de Têm­pera, edi­tado em 1946, livro que a cen­sura sa­la­za­renta e os es­birros do re­gime per­se­gui­riam, cau­sando ao autor e ao editor os dis­sa­bores co­nhe­cidos em casos tais. Este ro­mance, de uma exem­plar e as­ser­tiva co­ragem nar­ra­tiva, fala-nos, em jeito de cró­nica ro­man­ceada, de uma al­deia da Beira Alta, du­rante a 2ª. Guerra Mun­dial, numa mina de vol­frâmio, es­ta­be­le­cendo o autor, com enorme des­treza dis­cur­siva, uma série de teias dra­má­ticas, de cariz so­cial e po­lí­tico. Em 1960, na edi­tora Ar­cádia, na qual tra­ba­lhava como editor, pu­blica a nar­ra­tiva His­tó­rias de Mi­neiros, no qual re­to­mará a de­núncia dos modos de vida e ex­plo­ração da­queles tra­ba­lha­dores.

A es­treia li­te­rária de Ma­nuel do Nas­ci­mento acon­tece em 1943 (sendo, por­tanto, um dos au­tores da 1ª. vaga neo-re­a­lista), com o ro­mance Eu Queria Viver! (ro­mance re­e­di­tado em 1958), ao qual o crí­tico João Gaspar Si­mões, na sua co­luna no Diário de No­tí­cias, teceu elo­gios ras­gados, con­si­de­rando ser «uma das mais hu­manas e ori­gi­nais obras que a nova ge­ração nos tem dado».3 Tra­tando-se de um crí­tico da ge­ração da re­vista Pre­sença e um dos seus prin­ci­pais men­tores, não será nota des­pi­ci­enda.

Pre­ciso da emoção para es­co­lher um ca­minho

Os seus tra­ba­lhos como jor­na­lista em di­versas pu­bli­ca­ções, como O Pri­meiro de Ja­neiro, as re­vistas Eva, Ver e Crer, Mundo, A Co­o­pe­ração, Por­tugal Ilus­trado, e tantas ou­tras, fi­caram, em parte, re­gis­tados – as en­tre­vistas com vultos ci­meiros das nossas le­tras, so­bre­tudo – nos dois vo­lumes de En­con­tros. Estas en­tre­vistas são, ainda hoje, pa­tri­mónio ines­ti­mável para o es­tudo e com­pre­ensão da nossa li­te­ra­tura na pri­meira me­tade do sé­culo XX, e dos seus di­versos e prin­ci­pais pro­ta­go­nistas. Não só da arte do ro­mance, dos modos de es­tru­turar e criar um texto, estas en­tre­vistas vão mais longe dado que tratam de coisas que se en­tre­tecem nos modos de es­crever: as casas, os am­bi­entes, os cheiros, a at­mos­fera, o uni­verso em que os au­tores cri­aram e tra­ba­lharam, em que a sua obra pri­meiro se es­tru­turou e se re­flectiu o homem que o autor foi.

Assim, Ma­nuel do Nas­ci­mento vai a Por­ta­legre falar com José Régio, per­correr-lhe a co­lecção de arte sacra, numa at­mos­fera que o pa­ra­lisa, o en­re­gela; os qua­dros (um Al­varez meio es­con­dido na sala de tra­balho do autor de Po­emas de Deus e do Diabo), o te­atro – Régio tinha, à época, em cena, a peça Be­nilde ou a Virgem Mãe. A velha casa de Régio é como um museu, que oprime. De uma ja­nela vêem-se os ci­prestes, os mesmos da Toada de Por­ta­legre, ci­dade do Alto Alen­tejo, cer­cada...

Nestas con­versas li­te­rá­rias, Ma­nuel do Nas­ci­mento, em cum­pli­ci­dade com Luís de Sousa Re­belo, não deixa de re­flectir sobre ou­tros es­paços li­te­rá­rios, a nova li­te­ra­tura in­glesa, pro­du­zida no pós-guerra, e de con­gra­tular-se pela re­cente cri­ação da So­ci­e­dade de Es­cri­tores. Há falta de ri­queza hu­mana no ro­mance por­tu­guês, afirma Luís de Sousa Re­belo, numa outra pas­sagem da en­tre­vista. E vêm à con­versa as ques­tões es­tru­tu­rais da li­te­ra­tura, sejam quais forem os mo­vi­mentos e as épocas: forma e con­teúdo, eis o que à arte li­te­rária não deve faltar. Uma arte re­vo­lu­ci­o­nária deve re­flectir os pre­mentes pro­blemas do seu tempo, deve ser ou­sada, viva, per­tur­ba­dora – so­ci­al­mente co­ra­josa. Uma li­te­ra­tura que ex­prima, fas­ci­nada, os con­flitos hu­manos, em­bora as­suma pre­cisar da emoção para es­co­lher um ca­minho.4 A língua deve ser um ins­tru­mento di­recto de ex­pressão, e não um res­tolho para jogos flo­rais de bar­ro­quismos exan­gues. É pre­ciso de­cantar a lin­guagem. Uma li­te­ra­tura de ideias, aberta às ideias, como, no mesmo livro, Aqui­lino não deixa de de­fender, acres­cen­tando de­pois uma opi­nião que po­deria, sem es­forço, ade­quar-se aos dias que vi­vemos: O Mundo está numa vi­ragem e as artes, in­vó­lucro doi­rado da vida, tran­si­taram para um plano se­cun­dário. A li­te­ra­tura atra­vessa umas al­pon­dras. Al­pon­dras es­treitas e es­cor­re­ga­dias sobre o rio turvo que é a so­ci­e­dade con­tem­po­rânea.5 E ainda Aqui­lino, de­mo­lidor: Es­crever, em Por­tugal, foi sempre di­le­tan­tismo, mania ou he­resia.

Em En­con­tros, Ma­nuel do Nas­ci­mento não se li­mita a con­versas de es­cri­tores, per­corre, com lú­cido olhar crí­tico, as obras dos au­tores que con­voca, ana­lisa-as sem a ufana so­bran­ceria do crí­tico de ofício: é um autor a deixar-se tomar pela fala dos seus pares, pelas pa­la­vras que o des­lum­bram e nelas se deixa en­volver – emo­ci­onar-se, como afirma. O homem es­critor, dirá, é um so­nhador sem re­médio.

Numa en­tre­vista a José Lins do Rego, Ma­nuel do Nas­ci­mento in­ter­roga o grande es­critor bra­si­leiro sobre a po­sição que os es­cri­tores devem ter face aos can­dentes pro­blemas so­ciais do seu tempo. Res­posta de Lins do Rego: De com­bate e de­núncia. E não por ser es­critor, mas por ser homem.

Com Ma­nuel da Fon­seca, Ma­nuel do Nas­ci­mento es­ta­be­lece uma fra­terna con­versa de café, e sen­timos, através desse texto, a cum­pli­ci­dade exis­tente entre au­tores que mu­tu­a­mente se ad­miram, res­peitam e es­tarão do mesmo lado da bar­ri­cada, em lutas co­muns. Con­versa sobre li­te­ra­tura. Ra­ra­mente lemos Ma­nuel da Fon­seca a falar dos seus pares com ta­manha cla­reza. Era o tempo da pu­bli­cação de Seara de Vento, e o jor­na­lista/​es­critor des­lum­brado com a lei­tura do ro­mance, não es­ca­mo­teia elo­gios: Aquele Monte, lá no alto do cerro, aquele velho azedo e ex­pe­ri­ente, o filho que a in­jus­tiça, ar­vo­rada em jus­tiça per­segue, a ra­pa­riga que tem ideias ge­ne­rosas, a mãe, pa­recem suar terra, aquela terra de que todos os ho­mens e mu­lheres do Alen­tejo têm fome.6 Num outro texto de En­con­tros, texto de ho­me­nagem e evo­cação pós­tumas ao pintor Ma­nuel Ri­beiro de Pavia, o autor de Ci­dade, emo­ci­o­nado, afirma: Tu vi­verás, tu que foste dos poucos que sou­beram morrer de pé, fi­carás para sempre entre nós como um com­pa­nheiro que nos apontou, com a cor e a força dos seus de­se­nhos e a ar­dência de um tem­pe­ra­mento ar­re­ba­tado, o ver­da­deiro ca­minho da arte, aquele que nos conduz à alma do Povo.7

Agonia – um ro­mance ino­vador, es­crito «para rasgar a pele»

O ro­mance Agonia, de 1954, se bem que trans­porte ainda té­nues re­fe­rên­cias ao seu livro an­te­rior, O Aço Mudou de Têm­pera é já, no plano es­té­tico, um ro­mance de tran­sição. Há, neste texto, neste per­curso de vida em forma de ro­mance – a sua es­tru­tura, a lin­guagem, o ex­pe­ri­men­ta­lismo da es­crita, o teor for­te­mente in­di­vi­du­a­lista da nar­ra­tiva – uma como que ten­ta­tiva de re­no­vação do neo-re­a­lismo, apro­xi­mando-o do novo ro­mance francês 8, e a forte at­mos­fera in­ti­mista, a abor­dagem da an­gústia, a in­tros­pec­tiva con­fis­si­o­na­li­dade do modo nar­ra­tivo, na 1.ª pessoa, en­tregue a um pro­ta­go­nista/​nar­rador, em­prestam-lhe laivos do que viria a ser, an­te­ce­dendo o ro­mance Apa­rição, de Ver­gílio Fer­reira, uma das pri­meiras in­cur­sões do exis­ten­ci­a­lismo na ficção por­tu­guesa. Não es­que­çamos que Sartre pu­blica A Náusea, em 1938 e O Ser e o Nada, em 1943, dois textos que, de uma forma ou de outra, não dei­xaram de in­cutir, como o re­ferem Mário Di­o­nísio e Óscar Lopes, res­so­nân­cias e in­fluên­cias nos es­cri­tores neo-re­a­listas na dé­cada de 1950.

No en­tanto, esta apa­rente ino­vação dis­cur­siva e me­to­do­ló­gica, não im­pede Ma­nuel do Nas­ci­mento de in­tro­duzir no texto a ver­tente crí­tica e de manter o atento olhar sobre o real que lhe co­nhe­cemos dos ro­mances an­te­ri­ores. E temos o se­nhor Ma­nuel Go­dinho, ser­ra­lheiro, que se viu obri­gado, por causa das suas ideias, a aban­donar a vila e ofício: Que fosse ga­nhar a vida onde lhe en­si­naram as ideias, diz um dos per­so­na­gens. Ideias sub­ver­sivas, por certo, mas o autor, cau­te­loso (já havia sido «es­cal­dado» pela Pide, em textos an­te­ri­ores) não diz quais. Es­pera, como todos os au­tores deste pe­ríodo, a cum­pli­ci­dade dos lei­tores. Ainda o car­pin­teiro que se des­pede, plaina, formão e serra ao ombro, di­ri­gindo-se ao pai do pro­ta­go­nista/​nar­rador: Se­nhor Ma­deira, já acabou o tempo dos es­cravos!. Agonia é um texto feito ao rés das emo­ções, dos sen­tidos, da an­gústia mais ex­trema, es­crito para largar a pele, diz-nos César Ma­deira, o pro­ta­go­nista. É para isso que es­cre­vemos; vamos dei­xando pe­daços de pele, de vís­ceras, como dizia José Gomes Fer­reira, em cada texto. A não ser assim, o que nos resta? A feira de vai­dades, o cor­tejo re­ve­rente de lou­va­mi­nheiros em que a li­te­ra­tura hoje tende a trans­formar-se?

Agonia é, assim, nas suas mais pro­fundas re­ver­be­ra­ções, um livro de van­guarda – como o terão sido Muro Branco e Bar­ranco de Cegos, de Redol. Um texto que, não aban­do­nando a in­cursão ana­lí­tica do re­a­lismo so­cial, se deixa atra­vessar por laivos de um pre­coce exis­ten­ci­a­lismo: O meu pri­meiro dia de co­légio foi um dia de náusea, sim, foi um dia de náusea.9

A fa­mília, esse nú­cleo de todas as opres­sões, um pai aus­tero, a velha criada Joana, digna na sua sub­missão, que parte da casa onde sempre serviu antes de se tornar um es­torvo, um em­pe­cilho, antes que a po­nham porta fora; o co­légio, a mas­tur­bação, os pri­meiros ci­garros, a re­cusa das «ami­zades par­ti­cu­lares»; a casa nova, sinal da pros­pe­ri­dade pa­terna, en­ci­mando bra­sões na fa­chada, de fa­chada, os ope­rá­rios a re­ce­berem, com a raiva a ma­durar, os im­pro­pé­rios do pa­trão: Ma­landos, que só querem roubar o que é meu. E a an­gústia a crescer por dentro de um César Ma­deira que não se revê na­quele es­paço, na­quela fa­mília, essa Agonia em cres­cendo até ao de­ses­pero. À re­volta. As cartas da fa­mília, vagas, va­zias, cir­cuns­tan­ciais, gé­lidas de afectos. E crescer, crescer, de­ses­pe­ra­da­mente crescer, ser homem, mesmo que para tanto seja ne­ces­sário con­trair uma do­ença ve­nérea como afir­mação de vi­ri­li­dade.

O autor per­segue, neste no­tável ro­mance, ou­tros uni­versos ín­timos: a con­dição da mu­lher na 1.ª me­tade do sé­culo XX, através da mãe e da irmã. A pri­meira é uma se­nhora frus­trada, tro­cada por uma amante do ma­rido e in­capaz, sal­va­guar­dando apa­rên­cias, de as­sumir a rup­tura, o di­vórcio; a irmã que não en­contra homem à al­tura da sua con­dição, e de­vora o tempo (mas­turba-se, es­creve o autor) lendo ro­mances de Guido de Ve­rona e Mau­rice De­kobra, afir­mando, no cú­mulo da an­gústia e do de­ses­pero: um dia fujo desta casa! Mas o agudo sen­tido do so­cial, da co­ragem de de­nun­ciar as in­jus­tiças e de juntar a sua voz à voz dos opri­midos, que vêm já de Mi­neiros, Eu Queria Viver e O Aço Mudou de Têm­pera (e no ro­mance Ci­dade, em­bora a cen­sura nele tenha ope­rado tantos tratos de polé, des­vir­tu­ando-o, que o autor en­tendeu re­tirá-lo do mer­cado); as in­jus­tiças de que são ví­timas os as­sa­la­ri­ados; a su­jeição pe­queno-bur­guesa ao di­nheiro, que Óscar Lopes não deixa de as­si­nalar quando se re­fere à obra de Ma­nuel do Nas­ci­mento; as fe­ridas na pai­sagem ma­cu­lando o sos­sego tú­mido da serra, que adi­vi­nhamos ser a sua Mon­chique natal: Na­queles ca­se­bres, ho­mens e mu­lheres dor­miam e se agi­tavam à es­pera do som gri­tante das busas. A cor­rida ma­tu­tina vinha de um cha­ma­mento quase ali­ci­ante, o largar do tra­balho de um grito, de animal mal fe­rido, das se­reias das fá­bricas, grito de som ás­pero a lem­brar uma praga de ex­pulsão10. Há, na des­crição do tear, na de­fi­nição do tra­balho ope­rário, algo de A Lã e a Neve, de Fer­reira de Castro; a mesma in­dig­nada im­po­tência pe­rante o real avas­sa­lador, a re­volta in­te­rior face à visão da­queles te­ares, desses pul­mões de ho­mens e mu­lheres que res­piram o suco das lãs, das bocas que comem o sabor acre das tintas, desses so­nhos des­feitos dos ope­rá­rios do­brados sobre as má­quinas, jo­vens ve­lhi­nhos, que se deixam de­fi­nhar, en­fer­rujar como os te­ares num re­pe­tido suor me­câ­nico de todos os dias, sem um gesto, sem um esgar de re­volta. Um si­lêncio de opressão a rasgar a noite, a pesar sobre as casas, sobre os so­nhos trun­cados; uma agonia de su­foco, de des­terro, de clau­sura – ir­res­pi­rável.

E em Lisboa, o mesmo tédio, a mesma pai­sagem de opressão, de men­tira que os al­vores da 2.ª Guerra Mun­dial acen­tuam. Um am­bi­ente de ca­tás­trofe emi­nente, de fim de ciclo, as crises cí­clicas do ca­pi­ta­lismo a de­albar para a sua ló­gica mais ex­trema: a da vi­o­lência e da guerra, do con­fronto, da ca­tás­trofe so­cial e ci­vi­li­za­ci­onal, para que o re­gime da ex­plo­ração e da mi­séria tente ul­tra­passar as suas pró­prias con­tra­di­ções – adiar, uma vez mais, o seu ine­xo­rável fim. A guerra, talvez a guerra traga dias me­lhores, dirá, em de­ses­pero, um dos per­so­na­gens. Este ro­mance é atra­ves­sado por uma per­ma­nente tensão in­te­rior, pelo de­sâ­nimo, por noites de in­sónia, pela con­tínua an­gústia do pro­ta­go­nista/​nar­rador. Um livro de ver­dades e ocul­ta­ções, de in­dig­nação e re­volta, de más­caras que fingem tra­gédia. Mas de es­pe­rança, também: Fe­liz­mente o mundo não será sempre assim, diz uma das per­so­na­gens. Mes­quinho mundo, no qual os ho­mens se matam, roubam, se hu­mi­lham, se es­pe­zi­nham pela su­jeição ao di­nheiro. Mas há, al­gures, um grito de re­volta e de cer­teza: o mundo não será sempre assim!

Como re­fere o his­to­ri­ador al­garvio José Rosa Sam­paio, o ro­mance Agonia teve uma edição na Ca­ta­lunha, «em cujo pre­fácio Ma­nuel do Nas­ci­mento é apre­sen­tado como una de les fi­gures més im­por­tants de la li­te­ra­tura por­tu­guesa ac­tual». Para um autor que, 42 anos de­pois da pu­bli­cação da sua úl­tima obra con­tinua quase ig­no­rado no seu país, este elogio não será, para nossa ver­gonha, pe­quena coisa.

Após a ex­pe­ri­ência es­te­ti­ca­mente ino­va­dora que o ro­mance Agonia re­pre­senta dentro do mo­vi­mento neo-re­a­lista, Ma­nuel do Nas­ci­mento re­gressa a uma cla­rís­sima te­má­tica de aná­lise so­ci­o­ló­gica, não já fi­xada nas in­tros­pec­ções in­di­vi­du­a­li­zadas, mas com um acu­ti­lante olhar, vasto e co­lec­tivo, sobre as fe­ridas que o fas­cismo es­pa­lhava sobre o corpo so­cial do país, com o livro de contos O Último Es­pec­tá­culo, de 1955, e, em 1960, com o seu úl­timo tí­tulo His­tó­rias de Mi­neiros, com o qual re­toma os temas que ao longo da vida sempre o sen­si­bi­li­zaram en­quanto es­critor, en­quanto homem em­pe­nhado na luta pela dig­ni­fi­cação e res­peito dos mi­neiros do qual foi o cro­nista mais firme e em­pe­nhado e, por acrés­cimo, dos tra­ba­lha­dores hu­mi­lhados e ex­plo­rados pelo re­gime.

Se o texto li­te­rário re­flecte a vida, também se propõe, nal­guns casos, pelo menos, nela in­ter­ferir, trans­for­mando-a, afirmou Ur­bano Ta­vares Ro­dri­gues. Na hora em que as­si­na­lamos o cen­té­simo ani­ver­sário do nas­ci­mento de Ma­nuel do Nas­ci­mento, é in­tei­ra­mente justo re­ferir que ele foi um desses au­tores, um es­critor que pro­curou, através da li­te­ra­tura, da sua in­ter­venção cí­vica e da co­ra­josa de­núncia so­cial ex­pressa nos seus textos, in­ter­ferir na vida para mudar o des­tino dos ho­mens e mu­lheres, de todos os ex­plo­rados – para trans­formar a vida, dado ter acre­di­tado que a li­te­ra­tura é também um ins­tru­mento de com­bate na dura luta que tra­vamos contra a ig­no­mínia e a su­jeição; por nos ter le­gado a cer­teza de que o mundo não será sempre assim. Porque isto de largar a pele, só acon­tece a um homem uma vez na vida.

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1 Existe no Museu do Neo-re­a­lismo, no es­pólio de So­eiro Pe­reira Gomes, re­fe­rên­cias a cor­res­pon­dência tro­cada entre o autor de Es­teiros e Ma­nuel do Nas­ci­mento, e entre este e Fer­nando Na­mora.

2 Maria de Lourdes Bel­chior – Os Ho­mens e os Li­vros, vol.II, pp.155-56, Lisboa, 1980

3 João Gaspar Si­mões – Crí­tica III – Im­prensa Na­ci­onal – Lisboa, 1998

4 Ma­nuel do Nas­ci­mento – En­con­tros – p.21 – Edição do Autor – Lisboa, 1961

5 Idem, p.25

6 idem – pp.100/​101

7 Idem – p.151

8 Ur­bano Ta­vares Ro­dri­gues pu­blica, em 1952,
A Porta dos Li­mites, inau­gu­rando, desse modo, no dis­curso neo-re­a­lista, a ver­tente que o nou­veau roman im­pri­miria à prosa dos au­tores re­ve­lados nos anos 1950, não os afas­tando, con­tudo, como no caso de UTR, da aná­lise crí­tica e in­ter­ven­tiva sobre a re­a­li­dade por­tu­guesa.

9 Ma­nuel do Nas­ci­mento – Agonia, p.50 – Soc. de Ex­pansão Cul­tural, Lisboa, 1954

10 Idem, p.96

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Bi­bli­o­grafia con­sul­tada

En­saios Es­co­lhidos I e II - A. Pi­nheiro Torres

Crí­tica III - João Gaspar Si­mões

Es­cre­vi­vendo Ur­bano – Museu do Neo-Re­a­lismo

His­tória da Lit.Por­tu­guesa – Ó. Lopes, A. J. Sa­raiva Mi­neiros, O Aço Mudou de Têm­pera, En­con­tros e Agonia, de Ma­nuel do Nas­ci­mento

Nova Sín­tese, 1, 2 e 3 – Assoc. Pro­mo­tora do Museu do Neo-re­a­lismo

Ma­nuel do Nas­ci­mento, um es­critor al­garvio quase Es­que­cido, de José Rosa Sam­paio (texto pu­bli­cado na In­ternet)

Con­flito e Uni­dade da Arte Con­tem­po­rânea - Mário Di­o­nísio.

 



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