A armadilha – The trap

Eduardo Tavares Costa

Este ar­tigo leva um des­do­bra­mento do tí­tulo em in­glês porque trata de um pro­duto te­le­vi­sivo que ele pró­prio é sub­pro­duto de uma es­pécie de fo­lhetim da fa­mília dos «big brother» que, pro­dutos e sub­pro­dutos, pre­tendem passar por pro­gramas de en­tre­te­ni­mento. Não que os sub­pro­dutos sejam pi­ores que os pro­dutos que lhes servem de mo­delo. Em termos qua­li­ta­tivos equi­valem-se e convém es­cla­recer já que são todos pés­simos e não são pro­gramas de en­tre­te­ni­mento, mas algo de outro.

A «coisa» co­zinha-se assim: anuncia-se um pro­grama de en­tre­te­ni­mento que ofe­re­cerá a opor­tu­ni­dade, a cerca de duas de­zenas de jo­vens de­sem­pre­gados, a re­cibos verdes, ou tra­balho in­certo, de pas­sarem do ano­ni­mato à fama na­ci­onal, quiçá in­ter­na­ci­onal, car­reiras na te­le­visão, na rádio, no ci­nema (ce­reja no topo do bolo), com pro­ventos pingue, se ven­cerem um su­posto jogo que se pro­longa por mais ou menos três meses, du­rante os quais, en­cer­rados numa casa, não terão no­tí­cias do ex­te­rior.

Con­correm à volta de 90 000 (!) jo­vens de­ses­pe­rados, que são se­lec­ci­o­nados por uma equipa de es­pe­ci­a­listas (onde ima­gi­namos cer­ta­mente psi­có­logos e gente do mundo do es­pec­tá­culo), que re­du­zirão, e tru­ci­darão, aquelas de­zenas de mi­lhares de can­di­datos a 22 eleitos, mais ponto menos vír­gula.

As re­gras, co­nhe­cidas, do su­posto jogo-en­tre­te­ni­mento são des­co­brirem o se­gredo (en­ver­go­nhante) de vida de que cada um deles é por­tador e não se agre­direm fi­si­ca­mente.

De 15 em 15 dias ou se­ma­nal­mente, um deles é ser ex­pulso da «casa mais fa­mosa de Por­tugal» ou pelo grupo das ra­pa­rigas ou pelo grupo dos ra­pazes, ou por sub­grupos dentro do grupo, que se vão for­mando em função dos seus in­te­resses ou in­cli­na­ções, ou pelo pú­blico que vota te­le­fo­ni­ca­mente, através de cha­madas pagas, ou pela con­ju­gação destas vo­ta­ções, po­dendo os jo­vens a ex­pulsar ser pro­postos pela pró­pria pro­dução. Por­tanto, na apa­rência, de­mo­cracia que bonde.

O perfil dos jo­vens se­le­ci­o­nados apre­senta traços ca­rac­te­rís­ticos:

para os ho­mens, mais de um metro e oi­tenta e tanto de al­tura, horas e horas de mus­cu­lação e gar­ra­fões de es­te­róides, corpos de­pi­lados e ole­ados, in­fân­cias trau­má­ticas, venda de drogas ou pas­sa­gens por ca­deias, exi­bi­ções em bares com os (mal)afa­mados va­rões ni­que­lados e notas en­ta­ladas nos fios den­tais, se­xu­a­li­dades equí­vocas, ru­mores de pros­ti­tuíção e crime vi­o­lento;

o perfil das ra­pa­rigas re­gista uma co­lecção de «bar­bies», horas e horas de gi­ná­sios di­versos, al­gumas ci­rur­gias plás­ticas e im­plantes de si­li­cone e «botox» em áreas di­versas do corpo, in­fân­cias trau­má­ticas e um per­curso sócio pro­fis­si­onal se­ma­lhante ao dos ra­pazes.

Entre as normas psi­co­ló­gicas e do es­pec­tá­culo não es­critas existe a de se­le­ci­onar um homem ou mu­lher comum dos pontos de vista hu­mano, psi­co­ló­gico, moral, que o de­ses­pero im­peliu para ali, o que ser­virá à pro­dução do es­pec­tá­culo para es­ta­be­lecer o con­traste e aviltar ainda mais a imagem dos res­tantes.

O local do crime, perdão, em que se per­pe­tram as fil­ma­gens, e no qual ho­mens e mu­lheres vivem du­rante os men­ci­o­nados meses, é a tal «casa mais fa­mosa do país», de­co­rada à ma­neira de um filme da Walt Disney, com um salão cen­tral, uma co­zinha, la­reira, pro­fusão de al­mo­fa­dões co­lo­ridos, ca­ma­ratas com muitas, muitas camas de casal, todas re­co­bertas a «édre­dons», édre­dons que são ar­ras­tados para toda a parte.

Faz parte da «casa mais fa­mosa» um rel­vado, de­certo igual­mente sin­té­tico, uma pis­cina com água aque­cida, tudo cer­cado por uma pa­li­çada su­fi­ci­en­te­mente alta para de­sa­nimar os do «ex­te­rior» e os do «in­te­rior». E, numa casa deste tipo, evi­den­te­mente, câ­maras es­pias de­vassam todo o pal­pitar de pes­tanas dia e noite (usam infra-ver­me­lhos), ma­ni­fes­tando uma pre­di­lecção es­pe­cial pelo on­dular dos «édre­dons». E ainda, e ainda um «con­fes­si­o­nário», versão rosa e acol­choada de uma sala de in­ter­ro­ga­tó­rios onde a apre­sen­ta­dora se en­car­rega de pôr em des­taque toda a in­di­gência hu­mana, cul­tural e moral dos... se­le­ci­o­nados.

Desde Sartre que se sabe (e a sócio-psi­co­logia pos­te­ri­or­mente es­miuçou) que os es­paços fe­chados são uma fonte ine­xau­rível de con­flitos com­por­ta­men­tais. Acaba-se a li­tigar por uma porta fe­chada ou en­tre­a­berta.

O en­tre­te­ni­mento-jogo-re­feição é ser­vido pela apre­sen­ta­dora que fun­ciona num es­paço cé­nico di­verso, fora da «casa», uma mini mi­ni­a­tura feé­rica das galas «pato bravo» hollyo­o­descas. A apre­sen­ta­dora, versão lu­si­tana de uma can­tora «country» avó­zinha, sorri com­pla­cente in con­tínuo, enfia sem des­canso umas cu­ecas vir­tuais nos di­zeres e nos neu­ró­nios dos con­cor­rentes, puxa para a luz da ri­balta a mi­séria cul­tural dos con­cor­rentes, in­cita-os a es­piar, de­latar, trair os amigos, e através de uma série de pe­quenos en­con­trões sá­bios leva-os a atra­vessar a linha de fron­teira da de­cência hu­mana. A apre­sen­ta­dora-country só des­mancha a pose, em lâm­pejos sú­bitos de ir­ri­tação, quando sente gol­peada a sua imagem de avó­zinha aco­lhe­dora, mas logo re­as­sume a más­cara se­rá­fica. O treino é de dé­cadas.

Os con­cor­rentes, com fol­gados tempos mortos do que po­deria ser «un dolce far ni­ente», tempos que acabam por ser gastos a medir a sua so­bre­vi­vência no con­curso e a tecer in­tri­ga­lhadas per­versas, são su­jeitos a ta­refas or­de­nadas por uma Voz sem rosto, que os in­ter­pela em qual­quer ins­tante (e que é o equi­va­lente so­noro das câ­maras-espia), que lhes en­co­menda ta­refas, pes­soais ou de grupo, de en­gano dos ou­tros con­cor­rentes, de se­dução, in­triga, es­pi­o­nagem, ou, no me­lhor dos casos, ri­dí­culas. As ta­refas são pagas ou des­con­tadas numa con­ta­bi­li­dade co­lo­nial entre a pro­dução e os con­cor­rentes.

Con­cluindo, que a missa já vai longa, não é fácil a em­patia com os seres hu­manos se­le­ci­o­nados. Mas eles fazem parte das ví­timas, não dos cri­mi­nosos. São eles que, no ime­diato, e sem se darem conta, são ri­di­cu­la­ri­zados, achin­ca­lhados, tra­tados como lixo. E a prin­cipal ví­tima é a Cul­tura, apre­sen­tada como di­ver­ti­mento pa­teta, atre­vi­dote, sempre a roçar o muito mau gosto na pauta afec­tiva, sen­sual, eró­tica.

De facto, o que se apre­senta como um pro­grama de en­tre­te­ni­mento, é um pro­grama ide­o­ló­gico, po­lí­tico por­tanto (e o que con­tes­tamos não é a ide­o­logia nem a po­lí­tica em abs­tracto, mas aquela ide­o­logia po­lí­tica) em que se pre­tende de­mons­trar que tudo é su­bor­di­nável ao deus di­nheiro. Os va­lores lá ins­ti­tuídos são o in­di­vi­du­a­lismo feroz, a con­cor­rência sem freios e li­mites, o ga­nhar a todo o custo. O deus Cresus compra o di­reito à pri­va­ci­dade, à so­li­da­ri­e­dade hu­mana, aos laços fa­mi­li­ares, ao amor, à ver­dade, à fi­de­li­dade às con­vic­ções e à pa­lavra dada. O que é as­sas­si­nado todos os dias na «pan­talha» pú­blica é o sen­tido de uma cul­tura e de um en­tre­te­ni­mento hu­mano e en­ri­que­cedor.

Final dos fi­nais, pro­pomos uma adi­vinha: de que pro­grama se trata? Quem é a apre­sen­ta­dora?

Se acertar, não terá prémio pe­cu­niário, mas po­derá ter o su­bido prazer de passar a ver­dade a um amigo.

 



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