Unidade e luta nos Portos de Portugal

Manuel Gouveia

Desde 15 de Agosto que uma im­pres­si­o­nante luta se ergue nos portos na­ci­o­nais contra a ten­ta­tiva de re­visão do re­gime do tra­balho por­tuário. A luta tem sido con­du­zida pela Frente Sin­dical Ma­rí­timo-Por­tuária, com­posta por di­versos sin­di­catos dos es­ti­va­dores (Centro e Sul, XXI, Aveiro, Ca­niçal, Viana), pelo sin­di­cato das Ad­mi­nis­tra­ções Por­tuá­rias, pelo sin­di­cato da Ma­rinha Mer­cante (SI­MA­MEVIP, CGTP-IN), pelo STE (UGT) e pelo OFI­CI­AISMAR (CGTP-IN).

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As al­te­ra­ções ao re­gime do tra­balho por­tuário, exi­gidas pelas troika ocu­pante e con­cre­ti­zadas pela troika co­la­bo­ra­ci­o­nista (PS, PSD e CDS vo­taram-na juntos no dia 7de De­zembro) têm sido ob­jecto de tantas men­tiras que im­porta aqui tentar cla­ri­ficar o que Go­verno quer al­terar e de que forma.

As perdas de pro­du­ti­vi­dade e de se­gu­rança das ope­ra­ções por­tuá­rias e do pró­prio trans­porte ma­rí­timo que re­sul­ta­riam da apli­cação da lei são as­pectos im­por­tantes, mas a questão cen­tral e es­tru­tu­rante desta pro­posta é a pre­ca­ri­zação ex­trema das re­la­ções de tra­balho.

Im­porta ter pre­sente que his­to­ri­ca­mente, em todo o mundo, a es­tiva foi sempre uma pro­fissão exer­cida sobre uma ex­trema pre­ca­ri­e­dade, si­tu­ação que em Por­tugal durou até 1979. Não por acaso, a Con­venção 137 da OIT (ra­ti­fi­cada por Por­tugal, o que torna a ac­tual pro­posta de lei an­ti­cons­ti­tu­ci­onal) es­ta­be­lece os se­guintes pre­ceitos:

«Art. 2

1. In­cumbe à po­lí­tica na­ci­onal es­ti­mular todos os sec­tores in­te­res­sados para que as­se­gurem aos por­tuá­rios, na me­dida do pos­sível, um em­prego per­ma­nente ou re­gular.

2. Em todo caso, um mí­nimo de pe­ríodos de em­prego ou um mí­nimo de renda deve ser as­se­gu­rado aos por­tuá­rios sendo que a sua ex­tensão e na­tu­reza de­pen­derão da si­tu­ação eco­nó­mica e so­cial do país ou do porto de que se tratar.»

Na pro­posta agora apro­vada por PS, PSD e CDS, a pre­ca­ri­zação da ac­ti­vi­dade por­tuária con­cre­tizar-se-ia em três eixos fun­da­men­tais:

1. O ac­tual re­gime es­ta­be­lece que o «efec­tivo dos portos» é «o con­junto dos tra­ba­lha­dores de­ten­tores de car­teira pro­fis­si­onal ade­quada que de­sen­volvem a sua ac­ti­vi­dade pro­fis­si­onal, ao abrigo de con­trato de tra­balho sem termo, na mo­vi­men­tação de cargas». A pro­posta agora apro­vada deixa cair a car­teira pro­fis­si­onal e o con­trato sem termo. Ou seja, o efec­tivo dos Portos pas­saria a in­cluir todos os que lá tra­ba­lhem, efec­tivos ou pre­cá­rios, com ou sem for­mação – que é outra forma de dizer que dei­xaria de existir.

2. O ac­tual re­gime re­mete para o Có­digo do Tra­balho o re­gime de con­tra­tação a termo. Agora seria criado, no Ar­tigo 7.º, um re­gime novo, pior (para os tra­ba­lha­dores) que o do Có­digo do tra­balho, que pas­saria a per­mitir: con­tra­tação de muito curta du­ração sem qual­quer li­mite do nú­mero de con­tratos; sem qual­quer li­mite de re­no­va­ções; con­tra­tação em re­gime in­ter­mi­tente.

3. As Em­presas de Tra­balho Por­tuário são o me­ca­nismo hoje exis­tente para co­locar a mai­oria do efec­tivo por­tuário, ce­dendo de­pois os tra­ba­lha­dores para a ac­ti­vi­dade de mo­vi­men­tação de cargas dos di­fe­rentes ope­ra­dores. Agora essas Em­presas de Tra­balho Por­tuário pas­sa­riam a poder con­tratar com «re­curso a re­la­ções con­tra­tuais ce­le­bradas com em­presas de tra­balho tem­po­rário».

Por estas três vias, as troikas (in­cluindo, como sempre, a UGT e o PS) cri­a­riam um re­gime com­ple­ta­mente pre­ca­ri­zado, «pi­o­neiro» no quadro eu­ropeu por­tuário e na re­a­li­dade la­boral na­ci­onal. Um quadro que as troikas de­pois tra­ta­riam de tentar fazer es­tender para os res­tantes portos eu­ro­peus e para os res­tantes tra­ba­lha­dores por­tu­gueses.

Três em­bustes

Mas re­gres­sando à pro­posta de lei, im­porta ainda tentar cla­ri­ficar três em­bustes.

Diz o Go­verno que a pro­posta se des­tina a au­mentar a com­pe­ti­ti­vi­dade dos Portos – mas não ex­plica como é que os res­tantes portos eu­ro­peus, pa­gando muito mais à força de tra­balho, são mais «com­pe­ti­tivos» do que os Portos por­tu­gueses. Mas os Sin­di­catos e o Par­tido ex­plicam-no: as causas ra­dicam na carga fiscal, na de­sor­ga­ni­zação, nas mar­gens de lucro exa­ge­radas, etc!

Diz o Go­verno que a pro­posta não mexe com o ac­tual efec­tivo por­tuário, o que é falso. Se esta fosse posta em prá­tica, dois terços dos ac­tuais es­ti­va­dores se­riam des­pe­didos e subs­ti­tuídos por mão-de-obra pre­cária, no quadro da des­truição das ac­tuais ETP.

Co­meçou o Go­verno por dizer, com pompa e cir­cuns­tância, que a pro­posta tinha sido acor­dada com «os sin­di­catos». Afinal tinha sido só com a UGT e o «Sin­di­cato» de Lei­xões – 95% do Sector es­tava contra e lançou-se na luta.

Breves apon­ta­mentos sobre a luta

Na luta que está a ser tra­vada contra a in­tro­dução deste novo re­gime do tra­balho por­tuário, im­porta des­tacar al­gumas ques­tões, ver­da­dei­ra­mente exem­plares.

O Go­verno já propôs que o re­gime sal­va­guar­dasse os di­reitos do ac­tual efec­tivo desde que os sin­di­catos acei­tassem a pre­ca­ri­zação total do tra­balho para os fu­turos tra­ba­lha­dores. Pen­sava que es­tava a ne­go­ciar com in­ver­te­brados da fa­mília do João Pro­ença. Os Sin­di­catos re­cu­saram vender os di­reitos das fu­turas ge­ra­ções e as­su­miram antes que era sua res­pon­sa­bi­li­dade lutar por eles.

Apesar do nome, o re­gime de tra­balho por­tuário atinge di­rec­ta­mente apenas os tra­ba­lha­dores afectos à mo­vi­men­tação de cargas – os es­ti­va­dores. Mas a luta tem sido tra­vada pelo con­junto dos tra­ba­lha­dores por­tuá­rios, com di­versas greves de so­li­da­ri­e­dade tra­vadas pelos pi­lotos da barra, pelo con­trolo cos­teiro, pelas ad­mi­nis­tra­ções por­tuá­rias, etc. Há cerca de dois meses, o Go­verno, pen­sando no­va­mente estar a falar com gente da sua laia, propôs aos res­tantes sin­di­catos uma aber­tura ex­cep­ci­onal para a ne­go­ci­ação dos ca­dernos rei­vin­di­ca­tivos pró­prios, desde que dei­xassem cair os es­ti­va­dores. Era um em­buste, mas a res­posta foi a que se im­punha – o pro­blema de um é o pro­blema de todos.

A luta tem evi­den­te­mente pro­vo­cado efeitos eco­nó­micos. Mas os nú­meros do Go­verno são com­ple­ta­mente dis­pa­ra­tados. Quando o mi­nistro dos pas­téis de nata afirma que três meses de luta cau­saram pre­juízos de 1500 mi­lhões de euros nem se aper­cebe da con­tra­dição em que entra. Afinal, se 800 tra­ba­lha­dores são di­rec­ta­mente res­pon­sá­veis por uma tão grande cri­ação de ri­queza, para quê a ânsia de lhes re­duzir os sa­lá­rios e os di­reitos? Mesmo sem ter em conta que nesses três meses os Portos apenas es­ti­veram en­cer­rados cerca de 15 dias, já que as formas de luta foram muito va­ri­adas, se apli­carmos a estes nú­meros uma regra de três sim­ples che­ga­ríamos à con­clusão de que cada tra­ba­lhador con­tri­buiria com 500 mil euros/​mês para a cri­ação de ri­queza em Por­tugal!

Gente muito «emi­nente» ali­mentou a ca­lúnia, lan­çada pelo Go­verno, de que os es­ti­va­dores ga­nhavam sa­lá­rios de 5000 euros. No «Prós e Con­tras» de dia 10 de De­zembro, olhos nos olhos com o di­ri­gente sin­dical, já nin­guém as­sumiu a pa­ter­ni­dade da men­tira! In­tri­guista e co­barde, esta classe do­mi­nante que só sabe falar so­zinha!

Os ob­jec­tivos da troika

No ca­pi­ta­lismo, a força de tra­balho é uma mer­ca­doria na con­cor­rência. A razão prin­cipal porque a troika ocu­pante quer impôr a pre­ca­ri­zação das re­la­ções la­bo­rais nos portos por­tu­gueses é porque o seu pro­jecto é es­tender essa pre­ca­ri­dade a todos os portos eu­ro­peus. Sa­bendo do grau de or­ga­ni­zação e uni­dade destes tra­ba­lha­dores, in­clu­si­va­mente no plano in­ter­na­ci­onal, e dos custos eco­nó­micos a su­portar até os der­rotar, pre­fere travar essas «guerras» pri­meiro nas co­ló­nias para que de­pois as ne­ces­si­dades da «con­cor­rência» pres­si­onem os tra­ba­lha­dores dos res­tantes portos a ceder mais fa­cil­mente.

É a este papel que o Go­verno e o torpe pa­tro­nato luso se estão a prestar.

E é a cons­ci­ência plena desta re­a­li­dade que está a servir de motor para as lutas de so­li­da­ri­e­dade nos res­tantes portos eu­ro­peus.

Re­sistir é já vencer, mas é pre­ciso uma po­lí­tica pa­trió­tica e de es­querda

Re­cor­damos que a ac­ti­vi­dade por­tuária, com ex­cepção da ad­mi­nis­tração dos Portos, está no es­sen­cial pri­va­ti­zada e, no­me­a­da­mente, são pri­vadas as em­presas de Es­tiva e as Em­presas de Tra­balho Por­tuário.

E aí re­side a con­tra­dição. O ac­tual Re­gime de Tra­balho ainda pro­move que o es­sen­cial da ac­ti­vi­dade por­tuária seja re­a­li­zada por tra­ba­lha­dores efec­tivos, or­ga­ni­zados e com di­reitos, e tem sido com­pa­tível com lu­cros sig­ni­fi­ca­tivos. Mas o cres­ci­mento desses lu­cros im­plica uma maior ex­plo­ração da força de tra­balho. A es­ta­bi­li­dade do ac­tual Re­gime sempre foi uma ilusão, de­pen­dente de uma cor­re­lação de forças entre ca­pital e tra­balho que está al­te­rada.

É por isso que o PCP, es­tando ac­ti­va­mente so­li­dário com a luta de re­sis­tência dos tra­ba­lha­dores por­tuá­rios à des­truição do ac­tual Re­gime de Tra­balho Por­tuário, tem como pro­jecto seu uma trans­for­mação mais ra­dical da ac­ti­vi­dade por­tuária, as­sente em Ad­mi­nis­tra­ções Por­tuá­rias Pú­blicas que as­sumam a ple­ni­tude da ac­ti­vi­dade por­tuária, in­cluindo a mo­vi­men­tação de cargas, li­ber­tando o sector de ca­pi­ta­listas, as­se­gu­rando ple­na­mente os di­reitos dos tra­ba­lha­dores por­tuá­rios – pela pro­pri­e­dade so­cial dos meios de pro­dução es­tra­té­gicos e pelo vín­culo la­boral ao Porto – e per­mi­tindo que o sector dê o con­tri­buto que se impõe ao de­sen­vol­vi­mento eco­nó­mico de que o País ne­ces­sita.



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