Os espectros e a História da Humanidade (1)

Sérgio Ribeiro

«Anda um es­pectro pela Eu­ropa». O que não é no­vi­dade. Desde 1848, ano em que foi es­crito O Ma­ni­festo, que o es­pectro então anun­ciado – o es­pectro do co­mu­nismo as­susta os po­deres da já então velha Eu­ropa e, apesar de cercos e de ata­ques vi­o­len­tís­simos para der­rubar es­tados que os povos le­van­taram em seu nome, de exor­cismos mil e das não poucas (e pre­ci­pi­tadas) cer­ti­dões de óbito que, par­ti­cu­lar­mente nos úl­timos vinte anos, lhe foram pas­sados, con­tinua a ser… um grande susto. A tudo tem re­sis­tido, es­pa­lhou-se pelo mundo, está de boa saúde ou em di­fe­rentes es­tados de con­va­les­cença se­gundo os lu­gares, apesar da «santa ca­çada» que, in­can­sa­vel­mente se lhe faz.

Agora, neste tempo his­tó­rico, andam uns ou­tros es­pec­tros pela Eu­ropa. E pelo mundo. Es­pec­tros com sen­tido di­fe­rente mas sempre com a ca­rac­te­rís­tica comum de as­sus­tarem os in­te­resses e po­deres ins­ta­lados

Aliás, nisto destes es­pec­tros anda tudo li­gado. O es­pectro do co­mu­nismo não nasceu por obra e graça de uns pen­sa­dores ins­pi­rados. Como se mostra em O Ma­ni­festo, tomou forma pelo es­tudo e tra­balho sobre a re­a­li­dade his­tó­rica, foi ex­pressão de aná­lise e crí­tica, tudo con­ti­nuado por ou­tros do­cu­mentos em que avulta um que é chave para o co­nhe­ci­mento do pro­cesso his­tó­rico, que se chamou crí­tica da eco­nomia po­lí­tica – O Ca­pital. Neste se en­con­tram e enun­ciam as di­nâ­micas que estão na origem dos ou­tros es­pec­tros fa­mi­li­ares ao que é co­nhe­cido por ca­pi­ta­lismo.

Cri­tica da eco­nomia po­lí­tica

A crí­tica da eco­nomia po­lí­tica do ca­pi­ta­lismo, sendo o ca­pital a re­lação entre classes so­ciais, se es­que­ma­ti­zada de forma cui­dada e pro­gra­mada, foi e con­tinua a ser pedra ba­silar do mar­xismo, obra ina­ca­bada, não fe­chada como ma­nual ou algo pa­re­cido.

Es­crita por Marx, no que ainda pu­blicou em vida, e nos ma­nus­critos por cuja edição En­gels se res­pon­sa­bi­lizou, trata de o pro­cesso de pro­dução do ca­pital (Livro 1 e tomos I, II e III), de o pro­cesso de cir­cu­lação do ca­pital (Livro 2 e tomos IV e V) e de o pro­cesso total de pro­dução ca­pi­ta­lista (Livro 3 e tomos VI, VII e VIII).

Nesse tra­balho ver­da­dei­ra­mente gi­gan­tesco en­contra-se as re­gu­la­ri­dades re­sul­tantes das di­nâ­micas da eco­nomia ca­pi­ta­lista, es­co­radas no es­tudo e in­ter­pre­tação da his­tória an­te­rior e con­tem­po­rânea, de certo modo com­pondo a pré-His­tória da Hu­ma­ni­dade e vis­lum­brando pistas para o que será a His­tória da Hu­ma­ni­dade, numa so­ci­e­dade sem classes, sem ex­plo­ra­dores e sem ex­plo­rados.

Lei da queda ten­den­cial da taxa de lucro

Dessas re­gu­la­ri­dades do fun­ci­o­na­mento da eco­nomia ca­pi­ta­lista de­riva a de­fi­nição de uma lei, a lei da queda ten­den­cial da taxa de lucro. Esta lei está di­rec­ta­mente re­la­ci­o­nada com a evo­lução da com­po­sição or­gâ­nica do ca­pital (ca­pital cons­tante sobre ca­pital va­riável, só este cri­ador de mais valia, e só desta de­ri­vando o lucro total e real), fi­cando, claro, muito mais por dizer…

Para bem ilus­trar a com­ple­xi­dade do es­tudo da obra ca­pital do mar­xismo (e o seu ina­ca­ba­mento…), anote-se que, sendo a ter­ceira secção do Livro 3 de­di­cada a essa lei, se­gundo Oeu­vres choi­sies das Edi­tions Ga­li­mard, de 1966, num seu ca­pí­tulo – o XV – se enu­me­ra­riam cinco «fac­tores que se opõem à baixa da taxa de lucro» (tra­dução do francês), en­quanto na edição ita­liana da Newton Compton Ita­liana e no cap. XIV – se lhes chama «causas an­ta­gó­nicas» e são seis.

Só muito re­cen­te­mente, já em Agosto de 2012, foi pu­bli­cado o pri­meiro tomo do Livro 3 (tomo VI da obra com­pleta) em Edi­ções Avante!, com o rigor que lhe em­presta a tra­dução de Ba­rata-Moura, e nela o ca­pí­tulo das «causas con­tra­ri­antes» é também o 14.º, e são seis as enu­me­radas. No en­tanto, após o tra­ta­mento das 5 pri­meiras – I. Ele­vação do grau de ex­plo­ração do tra­balho, II. Com­pressão do sa­lário para baixo do seu valor, III. Em­ba­ra­te­ci­mento dos ele­mentos do ca­pital cons­tante, IV. A so­bre­po­pu­lação re­la­tiva, V. O co­mércio ex­terno –, essa 6.ª «causa» é in­cluída como que em acres­cento, pois (como na edição ita­liana) co­meça por se ler que «aos cinco pontos acima [re­fe­ridos] pode ainda juntar-se o se­guinte, no qual, porém por ora, não po­demos en­trar mais pro­fun­da­mente».

A es­pe­cu­lação «causa con­tra­ri­ante»?

Essa 6.ª causa – VI. Au­mento do ca­pital por ac­ções – não é apro­fun­dada em O Ca­pital por se re­ferir a juros que «apenas rendem juros», e por ra­zões que têm a ver com a «taxa geral de lucro» e a sua re­par­tição por ca­te­go­rias par­ti­cu­lares, e com a «taxa de lucro média».

Ora, como Marx es­creveu, em carta a En­gels de 27 de Abril de 1867, «o que há de me­lhor no meu livro (O Ca­pital) e aí re­pousa toda a com­pre­ensão» foi ter en­con­trado, no tra­balho, o seu ca­rácter duplo, o du­a­lismo que se ex­prime em valor de uso e em valor de troca, e ter tra­tado a mais-valia in­de­pen­den­te­mente das formas par­ti­cu­lares (lucro, rendas, juros, des­pesas) que vi­esse a tomar nas me­ta­mor­foses do ca­pital que, como re­lação so­cial, nelas se ma­te­ri­a­liza.

Por outro lado, Marx afir­mava apenas tomar em con­si­de­ração o di­nheiro como «di­nheiro me­tá­lico», e re­feria – e ex­cluía – o «di­nheiro sim­bó­lico, meros signos de valor» e também o «di­nheiro cre­di­tício» por, nessa «época da pro­dução ca­pi­ta­lista», não serem re­le­vantes. Apenas se­riam «uma es­pe­ci­a­li­dade de certos Es­tados», um, e «não estar de­sen­vol­vido», o outro.

Andam es­pec­tros pela Eu­ropa (e não só)

Na nossa «época da pro­dução ca­pi­ta­lista», não está exor­ci­zado o es­pectro do co­mu­nismo, antes se con­firmam as aná­lises que se ba­seiam nos con­ceitos e lei­turas que le­varam ao seu apa­re­ci­mento. Nessa con­fir­mação in­cluem-se leis que, apesar de des­pre­zadas, des­va­lo­ri­zadas, com­ba­tidas, re­sultam dessas aná­lises e das di­nâ­micas que aquelas pre­viam, nas con­di­ções da época his­tó­rica em que foram feitas as aná­lises e (d)enun­ci­adas as di­nâ­micas.

A mais sig­ni­fi­ca­tiva, na área da eco­nomia po­lí­tica, será a lei da queda ten­den­cial da taxa de lucro, que pro­voca o susto de um outro es­pectro, o de que o ca­pital ini­cial (na sua forma mo­ne­tária) não tenha re­torno acu­mu­lado no termo do pro­cesso de cir­cu­lação, uma vez que a com­po­sição or­gâ­nica do ca­pital des­fa­vo­rece a cri­ação de mais-valia, e é pro­vo­cada so­bre­pro­dução e não-re­a­li­zação (não se troca M’ por D’).

Pelo que, na­tu­ral­mente, a pro­cura his­tó­rica de novos lu­gares e con­di­ções para o apro­vei­ta­mento de re­cursos, e a ex­plo­ração ge­né­tica da re­lação so­cial, ter le­vado ao im­pe­ri­a­lismo, ao sis­tema co­lo­nial e neo-co­lo­nial, às des­lo­ca­li­za­ções, pos­sí­veis pela (e in­cen­ti­va­doras de) evo­lução das forças pro­du­tivas e da cha­mada mo­bi­li­dade dos fac­tores pro­du­tivos, pro­cura fau­tora de luta e de guerras por acesso a re­cursos e es­paços vi­tais (para a acu­mu­lação de ca­pi­tais).

No bojo da for­mação so­cial, além do es­pectro que a sua pró­pria na­tu­reza de classe criou ao fazer nascer o as­sa­la­ri­a­mento e a «outra classe» – o pro­le­ta­riado –, o fun­ci­o­na­mento do ca­pi­ta­lismo criou também con­tra­di­ções in­sa­ná­veis, as­si­mi­lá­veis a es­pec­tros que foi in­te­ri­o­ri­zando.



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