Ulrich superstar

Correia da Fonseca

Fer­nando Ul­rich, pre­si­dente do BPI, surgiu na pas­sada se­mana como uma es­pécie de su­per­ve­deta no palco da co­mu­ni­cação so­cial graças a uma frase que não será de mais con­si­derar he­di­onda, além de in­vo­lun­ta­ri­a­mente de­nun­ci­a­dora do pen­sa­mento per­ver­tido do ma­gote de su­jeitos que vai con­ti­nu­ando a de­portar a es­ma­ga­dora mai­oria dos por­tu­gueses para os ima­gi­ná­rios ter­ri­tó­rios da po­breza quando não da mi­séria, da an­gústia quando não do de­ses­pero que por vezes já de­sem­boca no sui­cídio. Ul­rich, cujo ape­lido de­nuncia a sua as­cen­dência ger­mâ­nica também de­sig­nável por «boche» na gíria po­lí­tica que se po­pu­la­rizou na sequência da agres­si­vi­dade alemã evi­den­ciada em duas guerras, ex­pressou-se em termos de uma re­pug­nante so­bran­ceria re­la­ti­va­mente ao so­fri­mento de muitos mi­lhares de por­tu­gueses lon­ga­mente ex­plo­rados pela classe de que ele pró­prio é um des­ta­cado or­na­mento, de onde o clamor in­dig­nado que sus­citou. Apa­ren­te­mente, aquela ar­ro­gância mal­criada e sem ver­gonha é pa­rente muito pró­xima da so­berba de facto ig­no­rante e mo­de­ra­da­mente im­becil com que os ale­mães da Merkel, mais boa parte dos ho­lan­deses e ou­tras gentes obs­ti­na­da­mente con­ven­cidas de per­ten­cerem a uma raça su­pe­rior, olham os eu­ro­peus do Sul, cul­pados de terem sol e de não terem be­ne­fi­ciado de um Plano Marshall que num ápice de­volveu à Ale­manha es­cas­sa­mente des­na­zi­fi­cada a he­ge­monia eu­ro­peia. Quanto aos Ul­rich, ban­queiros em Ham­burgo, des­ceram até Por­tugal há apenas uns três sé­culos, nú­meros re­dondos, e por cá foram ar­ran­jando ali­anças fa­mi­li­ares e fi­nan­ceiras que per­mitem agora, como vemos e ou­vimos, que o seu re­bento Fer­nando agrida os por­tu­gueses mais frá­geis ao atrever-se a des­de­nhar dos seus so­fri­mentos.

Lem­brando a voz de José Afonso

É claro que o ban­queiro Fer­nando Ul­rich nem se­quer sabe do que está a falar quando se re­fere ao afun­da­mento das con­di­ções de vida de cen­tenas de mi­lhares de por­tu­gueses: ao con­forto do seu ga­bi­nete terão che­gado no­tí­cias de le­giões de de­sem­pre­gados (al­guns dos quais do banco por ele pró­prio ge­rido não tão ir­re­pre­en­si­vel­mente quanto seria de­se­jável), de fa­mí­lias obri­gadas a aban­donar os lares a cuja ma­nu­tenção ha­viam sa­cri­fi­cado du­rante anos e anos boa parte das suas con­di­ções de vida, de mães e pais que de co­ração par­tido vêem os seus fi­lhos partir para o fu­turo in­certo da emi­gração, mas não há o mí­nimo sinal de que Ul­rich saiba ao certo o que sig­ni­ficam estas e ou­tras des­graças. Na ver­dade, o con­forto ga­ran­tido por for­tunas só­lidas e, com­ple­men­tar­mente, pela cum­pli­ci­dade pres­tada pelos que ha­bitam o mesmo seg­mento da so­ci­e­dade, age como uma es­pécie de anal­gé­sico que im­pede os Fer­nandos Ul­rich, si­mi­lares e cor­re­la­tivos, de ace­derem a um efec­tivo co­nhe­ci­mento da re­a­li­dade. O caso de Maria An­to­nieta ao acon­se­lhar os fran­ceses a co­merem bri­o­ches já que não ti­nham pão, ficou como pa­ra­dig­má­tico deste tipo de ig­no­rân­cias, mas a in­vo­cação deste pre­ce­dente é aqui com­ple­ta­mente des­lo­cada por todas as ra­zões ób­vias e so­bre­tudo porque já não es­tamos no tempo em que se usava a cru­el­dade de cortar ca­beças. Agora, como aliás acima ficou apon­tado de leve, usa-se mais e no sen­tido in­verso da hi­e­rar­quia so­cial a con­dução ao sui­cídio de ci­da­dãos em­pur­rados para o de­ses­pero, ainda que pela acção e em­pe­nha­mento de qua­dros in­ter­mé­dios ou co­la­te­rais, por ca­va­lheiros como o se­nhor ban­queiro Ul­rich que, na­tu­ral­mente e como bem se com­pre­ende, não têm ne­ces­si­dade de sujar as mãos. De qual­quer modo, para os que não se sentem atraídos pela saída sui­ci­dária, fe­liz­mente o muito maior nú­mero, há so­lu­ções al­ter­na­tivas e muito menos es­pec­ta­cu­lares: a pro­gressão de do­enças não tra­tadas por falta de di­nheiro para esse luxo, o subtil mas sempre cres­cente en­fra­que­ci­mento do corpo por efeito de dé­fices ali­men­tares (as di­fe­rentes mo­da­li­dades de «sopa dos po­bres», agora tão na moda, não chegam para todos e nem todos lhes querem chegar), o de­fi­nha­mento rá­pido dos ve­lhos ex­pulsos dos «lares» onde vi­viam porque deixou de poder ser paga a men­sa­li­dade que ali os man­tinha, coisas e gente assim. Gente que aos olhos de Ul­rich pa­recem «aguentar», para usar aqui a sua ex­pressão. Por en­quanto, é claro. Lembro o poema de Fer­nando Mi­guel Ber­nardo que a voz de José Afonso cantou: «- Qual­quer dia, qual­quer dia…»



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