O regresso de José Afonso

Correia da Fonseca

«Grân­dola, Vila Mo­rena», a canção que José Afonso es­creveu, que Abril adoptou quase como seu hino e que o povo por­tu­guês entoa agora como canto de re­sis­tência e afir­mação de fi­de­li­dade a um pro­jecto, voltou na pas­sada se­mana a ser ve­deta nos di­versos ca­nais da te­le­visão por­tu­guesa. Porque Relvas, o mi­nistro que acu­mula a sua ac­tu­ação mi­nis­te­rial com fun­ções com­ple­men­tares equi­pa­rá­veis às de bobo da corte, perdeu o uso da pa­lavra quando en­ca­lhou nas vozes de um pe­queno grupo de ci­da­dãos que en­toava as pa­la­vras com que José Afonso, um dia, pre­dis­sera que o povo tem de ser quem mais or­dena. Porque já uns dias antes o pri­meiro-mi­nistro havia sido obri­gado a fazer uma pausa na AR porque os sons de «Grân­dola» se der­ra­mavam da ga­leria re­ser­vada ao pú­blico sobre todo o he­mi­ciclo. Porque o mesmo en­contro per­turbou em maior ou menor grau os se­nhores mi­nis­tros da Saúde e da Eco­nomia quando numa es­pécie de di­gres­sões pelo País. Acon­teceu mesmo que, pe­rante a ir­rupção da canção em lu­gares para onde não havia sido con­vi­dada, almas de ele­vada sen­si­bi­li­dade de­mo­crá­tica sur­giram na te­le­visão a car­pirem a agressão que o bre­vís­simo canto teria in­fli­gido à li­ber­dade de ex­pressão dos se­nhores mi­nis­tros, como se suas ex­ce­lên­cias não ti­vessem po­dido dizer quanto qui­sessem apenas uns mi­nutos de­pois da sur­presa que tanto, pelos vistos, os per­turbou. É cu­rioso que numa terra e num tempo em que quo­ti­di­a­na­mente o di­reito à li­ber­dade de ex­pressão é co­ar­tado a quem de facto está im­pe­dido de se ex­primir na im­prensa, na TV e na Rádio, graças às novas formas de efec­tiva cen­sura que subs­ti­tuíram o ob­so­leto «lápis azul», te­nham sur­gido tantas santas cri­a­turas a pin­garem re­pro­va­ções mais ou menos in­dig­nadas porque uns mi­nis­tros não re­sis­tiram à pro­vação de ou­virem a «Grân­dola» e re­cu­aram pe­rante a canção como, diz-se, Bel­zebu de­banda quando de­para com a cruz. E, con­tudo, do con­junto de can­ções que José Afonso nos deixou, bem po­diam os que vi­eram agora cantar «Grân­dola» ter es­co­lhido outra canção mais dura de ser ou­vida por certos ou­vidos. Al­guém, não re­cordo quem, lem­brou na te­le­visão que muito ade­quada teria sido a es­colha de «Os Vam­piros». Também não teria es­tado mal aquela canção em que Afonso afirmou que numa certa ronda «não há lugar para os fi­lhos» de pai in­certo. «Grân­dola, Vila Mo­rena» é, pois, no quadro da obra de José Afonso, uma canção re­la­ti­va­mente mo­de­rada e con­sen­su­a­li­zante, mas nem essa cir­cuns­tância evitou o choque sen­tido pelas sen­si­bi­li­dades hi­per­frá­geis. Hi­per­frá­geis pe­rante estes casos con­cretos, en­tenda-se, não como regra geral.

Prova de vida

A questão, é claro, é que este re­novo da uti­li­zação de «Grân­dola» como canção de pro­testo e re­sis­tência não cor­res­ponde apenas a uma es­pécie de re­gresso de José Afonso ao ter­reno do com­bate po­lí­tico, mas também ao re­gresso da imagem so­nora do pró­prio 25 de Abril. Ora, como bem en­tende quem o queira en­tender, o grande ini­migo da clique que go­verna Por­tugal não é Sua Ma­jes­tade a Crise, em nome de quem vem sendo feita a gi­gan­tesca pi­lhagem de um povo, mas sim o 25 de Abril, essa es­pécie de fan­tasma ame­a­çador que ainda povoa os pe­sa­delos da classe do­mi­nante e in­sa­ci­a­vel­mente ex­plo­ra­dora. Para essa gente, é um pouco como se o as­sas­si­nado Por­tugal de Abril, que so­nhavam de­fi­ni­ti­va­mente morto e se­pul­tado, man­dasse um re­cado a dizer que con­tinua vivo e que mais tarde o mais cedo re­gres­sará porque o povo assim o quer. E, para mais in­tenso susto, acon­tece que «Grân­dola» é en­toada agora não apenas pelos que há quase qua­renta anos fi­zeram a re­vo­lução, mais os que antes dela re­sis­tiram e a pre­pa­raram, mais os jo­vens que de algum modo a her­daram, mas também que a canção é aco­lhida com ale­gria e até com uma es­pécie de or­gulho por muitos mi­lhares de por­tu­gueses que não a cantam pe­rante mi­nis­tros e cri­a­turas equi­pa­radas, porque para tanto não estão no lugar certo mas apenas di­ante dos te­le­vi­sores, e se aper­cebem de que aquela canção também é sua, e é ac­tual, e é também a afir­mação de que Abril está vivo nos seus co­ra­ções tal como o canto nunca es­que­cido de José Afonso. O que não es­panta porque, como es­creveu um outro poeta, nesta luta «até os mortos vão ao nosso lado».



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