Felizmente há luar

Luta pela Soberania e pela Constituição (conclusão)

Anselmo Dias

Em­bora al­guns pro­gres­sistas ti­vessem, em 1808, aquando da 1.ª in­vasão fran­cesa, co­lo­cado a questão da ela­bo­ração de uma Cons­ti­tuição, tudo in­dica que a ten­ta­tiva re­vo­lu­ci­o­nária de 1817 teve so­bre­tudo a ver com a odiada pre­sença in­glesa e com os mé­todos di­ta­to­riais do ge­neral Be­res­ford.

De­vido a uma de­núncia, essa ten­ta­tiva foi des­co­berta e os seus mais des­ta­cados au­tores foram con­de­nados à morte.

O ge­neral Gomes Freire de An­drade foi en­for­cado em São Ju­lião da Barra e, no mesmo dia, foram en­for­cados mais onze pa­tri­otas no Campo de San­tana, local pos­te­ri­or­mente bap­ti­zado por Campo dos Már­tires da Pá­tria. Este nú­mero po­deria ter sido maior caso al­guns não ti­vessem con­se­guido fugir.

Este si­nistro acon­te­ci­mento, tendo con­sequên­cias na cri­ação de um clima de medo, não im­pediu que pas­sados uns es­cassos três meses, no início de 1818, ti­vesse sido criada uma or­ga­ni­zação clan­des­tina na ci­dade do Porto cha­mada «Si­né­drio», cujo mentor foi o des­ta­cado de­sem­bar­gador da Re­lação do Porto, Ma­nuel Fer­nandes Tomás, com o ob­jec­tivo pro­gra­má­tico de que «se rom­pesse um mo­vi­mento anár­quico, ou uma re­vo­lução, os mem­bros do Si­né­drio se com­bi­na­riam para apa­recer a con­duzi-lo para o bem do país e da sua li­ber­dade, guar­dando sempre a de­vida fi­de­li­dade à di­nastia da Casa de Bra­gança».

Essa or­ga­ni­zação, ini­ci­al­mente com­posta por doze in­di­ví­duos li­gados à bur­guesia, à jus­tiça e a ofi­ciais de ele­vada pa­tente do exér­cito, foi pro­gres­si­va­mente au­men­tada, não apenas no Norte mas também em Lisboa, isto numa al­tura em que, em certos meios, in­cluindo a in­te­lec­tu­a­li­dade, havia um de­sejo cres­cente de pôr termo à pre­sença in­glesa, sen­ti­mento bem ex­presso por Al­meida Gar­rett que, em 1819, num dos seus po­emas re­feria:

«Oh! Quando te hei-de ver, pá­tria que­rida,

Limpa de in­gleses, safa de con­ventos...

Sim, amigo; esta corja odiosa e bár­bara,

Opres­sora da lusa li­ber­dade,

Esta ca­nalha de Al­bion so­berbo

Aqui deixou seu trono,

Pousou seu génio bruto em nossos muros...».

Em 24 de Agosto de 1820 inicia-se a Re­vo­lução, a qual, do ponto de vista ri­go­roso, não é mais do que um pro­nun­ci­a­mento mi­litar re­a­li­zado no Porto, cujos co­man­dantes leram duas pro­cla­ma­ções aos sol­dados.

O co­ronel Ca­breira re­feriu, a certo passo: «...Cri­emos um go­verno pro­vi­sório em que con­fi­emos. Ele chame as Cortes que sejam o órgão da Nação, e elas pre­parem uma Cons­ti­tuição que as­se­gure os nossos di­reitos...».

Por seu lado o co­ronel Se­púl­veda acen­tuou o se­guinte: «Ca­ma­radas, vinde co­migo. Vamos com os nossos ir­mãos de armas or­ga­nizar um go­verno pro­vi­si­onal, que chame as Cortes a fa­zerem uma Cons­ti­tuição, cuja falta é a origem dos nossos males...».

Este ofi­cial, ar­mado em «es­quer­dista», tran­sitou poucos anos de­pois para o lado da re­acção a fazer lem­brar o per­curso po­lí­tico de Durão Bar­roso e de muitos ou­tros pro­vo­ca­dores.

O povo, esse, es­teve to­tal­mente ar­re­dado da di­recção do mo­vi­mento re­vo­lu­ci­o­nário, em­bora pos­te­ri­or­mente, em Lisboa, em 15 de Se­tembro, tenha ha­vido o en­vol­vi­mento de ofi­ciais de baixa pa­tente, co­man­dados por um te­nente, a que se as­so­ci­aram ma­ni­fes­ta­ções po­pu­lares, facto que não su­bal­ter­nizou a ori­en­tação bur­guesa da Re­vo­lução.

Não obs­tante tal in­fluência, dado os in­te­resses das classes do­mi­nantes de então, não há ne­nhum exa­gero em afirmar que a Re­vo­lução de 1820 con­tinha em si, no pri­meiro quartel do sé­culo XIX, um ele­mento re­vo­lu­ci­o­nário para a época: a exi­gência da ela­bo­ração de uma Cons­ti­tuição que es­ta­be­le­cesse, na óp­tica da bur­guesia, os di­reitos e de­veres de ci­da­dania, em vez de um re­gime ba­seado no poder au­to­crá­tico do rei e numa so­ci­e­dade es­tra­ti­fi­cada na no­breza, no clero e no povo.

Os re­vo­lu­ci­o­ná­rios de 1820 ela­bo­raram a 1.ª Cons­ti­tuição Por­tu­guesa, muito in­flu­en­ciada pela Cons­ti­tuição de Cádis de 1812, con­si­de­rada bas­tante pro­gres­sista.

A nossa Cons­ti­tuição foi ju­rada pelo rei no dia 1 de Ou­tubro de 1822, tendo a rainha Car­lota Jo­a­quina re­cu­sado esse ju­ra­mento, bem como o Car­deal Pa­tri­arca e ou­tros no­bres e mem­bros da Igreja, acon­te­ci­mento a fazer lem­brar o voto contra a Cons­ti­tuição de 1976, por parte do CDS.

A re­cusa da rainha pro­nun­ciou que a Lei Fun­da­mental do País iria ter uma vi­gência curta e con­fli­tuosa mercê de po­de­rosos in­te­resses a favor do re­gresso a uma go­ver­nação cen­tra­li­zada no poder ab­so­luto do rei.

Com efeito, pas­sados uns es­cassos oito meses, dá-se o golpe re­ac­ci­o­nário – a «Vi­la­fran­cada» , co­man­dada pelo ultra re­ac­ci­o­nário in­fante Dom Mi­guel, facto que põe termo à vi­gência da Cons­ti­tuição a qual só ini­ciará uma se­gunda fase, em 1836, no se­gui­mento de uma nova re­vo­lução, a cha­mada Re­vo­lução de Se­tembro, li­de­rada pela «bur­guesia in­dus­trial ur­bana, aliada à classe média dos co­mer­ci­antes».

Desta vez, em Lisboa, o povo par­ti­cipou através de «forte apoio nos clubes po­pu­lares e nas mi­lí­cias ar­se­na­listas».

Ve­jamos, a este pro­pó­sito, o que re­fere Victor de Sá no seu livro «A Re­vo­lução de Se­tembro de 1836»:

«É que em Lisboa havia… um prin­cípio de con­cen­tração pro­le­tária, cuja po­ten­ci­a­li­dade de luta foi co­ra­jo­sa­mente mo­bi­li­zada pelos di­ri­gentes re­vo­lu­ci­o­ná­rios, fa­zendo de­cidir a seu favor o re­sul­tado da su­ble­vação cui­da­do­sa­mente pla­neada. Não era ainda um pro­le­ta­riado pos­suído de cons­ci­ência de classe, e por isso mesmo não de­sem­pe­nhou uma função di­ri­gente na Re­vo­lução. Mas era a re­serva, por certo mais aguer­rida e dis­posta à luta, para o der­ru­ba­mento de um go­verno que era igual­mente odioso a todas as classes... que não eram be­ne­fi­ciá­rias do Poder».

Esta acon­te­ci­mento impôs o re­gresso da Cons­ti­tuição de 1822, cuja vi­gência ter­minou em 1838, mercê da no­me­ação de um go­verno que não re­flectia o pro­cesso re­vo­lu­ci­o­nário, a fazer lem­brar o acesso de Spí­nola à Pre­si­dência da Re­pú­blica, acto equi­va­lente a «dar o ouro ao ban­dido».

En­tre­tanto, ou­tras cons­ti­tui­ções apa­re­ceram e de­sa­pa­re­ceram, de­cor­rentes de pro­cessos de al­te­ração de poder, como seja a Cons­ti­tuição saída do 5 de Ou­tubro de 1910, seja a Cons­ti­tuição fas­cista de­cor­rente do 28 de Maio de 1926.

A Cons­ti­tuição vi­gente, pro­mul­gada em 1976, de­cor­rente da Re­vo­lução de 1974, em­bora des­ca­rac­te­ri­zada por sete re­vi­sões está, com es­teve a Cons­ti­tuição de 1822, a so­frer tratos de polé por parte de um go­verno fas­ci­zante.

Em 1836 houve força su­fi­ci­ente para repor a Cons­ti­tuição de 1822, a mais pro­gres­sista do nosso sé­culo XIX, em­bora pos­te­ri­or­mente traída.

Nos dias que correm ha­verá, se o povo quiser, forças co­e­rentes mais do que su­fi­ci­entes para as­se­gurar, no res­peito pelos va­lores de Abril, o fu­turo de Por­tugal.

 

Fontes:

- Fe­liz­mente Há Luar», de Luís Sttau Mon­teiro, Por­tu­gália Edi­tora, 4.ª edição, s/​d;

- «Ge­o­grafia e Eco­nomia da Re­vo­lução de 1820», Fer­nando Pi­teira Santos, Pu­bli­ca­ções Eu­ropa Amé­rica, 1962;

- «A Re­vo­lução de Se­tembro», Victor de Sá, Pu­bli­ca­ções Dom Qui­xote, 1969;

- «Di­ci­o­nário de His­tória de Por­tugal», di­ri­gida por Joel Serrão, Ini­ci­a­tivas Edi­to­riais, 1963/​71;

- «A do­mi­nação in­glesa em Por­tugal», Ar­mando de Castro, Afron­ta­mento, 1972;

- «His­tória de Por­tugal», A.H. De Oli­veira Mar­ques, Palas Edi­tores, 1973;

- «His­tória de Por­tugal», Vo­lume V, di­ri­gida por José Mat­toso, Cír­culo de Lei­tores, 1993.



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