Tragicomédia

Correia da Fonseca

A si­tu­ação do País, isto é, das gentes que o ha­bitam, está longe de poder ser um tema para brin­ca­deiras, se­quer para iro­nias que não en­raízem em amar­guras, mas por vezes é ine­vi­tável re­flectir que o quadro po­lí­tico que temos pe­rante nós as­sume pon­tuais di­men­sões de co­média num con­texto que, des­gra­ça­da­mente, é de tra­gédia. Esse factor de co­média está, aliás, cen­trado so­bre­tudo em certas fi­guras que in­te­gram o cha­mado Go­verno ou que gra­vitam em volta dele. Não in­sis­tamos na pre­su­mível vo­cação his­trió­nica do dr. Pedro Passos Co­elho que, como se sabe, em dada al­tura da sua vida não re­sistiu à ten­tação de ofe­recer os seus ta­lentos ao Fi­lipe La Feria que, para mal de todos nós, não o re­crutou. Mas re­pa­remos no que aliás é óbvio: na fi­gura im­pres­si­o­nante de Mi­guel Relvas, per­so­nagem de farsa, li­cen­ciado por obra e graça de uma auto-in­venção, que con­tinua a mo­vi­mentar-se na área do poder com a des­con­traída graça de um bufão apli­cado não a de­bitar pi­adas mas sim, sem pre­juízo de há muito se ter tor­nado ri­dí­culo, a pro­duzir dis­pa­rates que só não fazem rir a corte porque até a pró­pria corte de­sa­cre­ditam. E, como bem se vê, há ou­tras fi­guras tão ina­cre­di­tá­veis que mais pa­recem de faz-de-conta: um mi­nistro das Fi­nanças que, além de já ave­ri­gua­da­mente in­capaz, se ca­rac­te­riza por um ca­ri­cato es­tilo pes­soal como nunca se terá visto noutro lugar do mundo; um mi­nistro da Eco­nomia com o per­ma­nente ar de se ter en­ga­nado no ca­minho e de per­tencer a um qual­quer outro palco; uma mi­nistra su­pos­ta­mente capaz de ma­nejar tantas pastas mi­nis­te­riais quantas um «jon­gleur» de circo ma­neja os seus pratos ou as suas massas.

A sen­tença do dr. Mo­edas

É so­bre­tudo na te­le­visão que a si­nistra «troupe» que se al­can­dorou ao poder se exibe pe­rante o povão hu­mi­lhado e ofen­dido, pelo que o tris­tís­simo es­pec­tá­culo que ela dá é ob­jecto de co­men­tá­rios nestas duas co­lunas. E acon­tece que entre as ve­detas do grupo se tem ul­ti­ma­mente des­ta­cado o se­nhor se­cre­tário de Es­tado ad­junto do pri­meiro-mi­nistro, Carlos de seu nome pró­prio, Mo­edas de talvez pre­mo­ni­tório ape­lido. Numa sua re­cente apa­rição nos ecrãs dos nossos te­le­vi­sores, ou­vímo-lo de­bitar com im­pres­si­o­nante con­vicção uma frase que nem pode passar em claro nem pode ser es­que­cida, di­gamos que para me­mória fu­tura, como su­ponho dizer-se no jargão ju­rí­dico: afirmou ele que, sim, «agora é que es­tamos a viver de acordo com as nossas pos­si­bi­li­dades». Não lhe tremeu a voz nem se­quer lhe pis­caram os olhos por de­trás das lentes de se­cre­tário de Es­tado ao ditar esta sen­tença es­can­da­losa, se não as­sas­sina. Está uma im­por­tante fracção do povo por­tu­guês a passar fome apenas par­ci­al­mente mi­ti­gada pelo re­curso a es­molas ali­men­tares, estão mi­lhares de fa­mí­lias obri­gadas a aban­donar os seus lares, estão muitas cen­tenas de jo­vens a sair para o es­tran­geiro em busca de um fu­turo que aqui lhes é re­cu­sado e dei­xando os seus pais en­tre­gues ao de­ses­pero e por­ven­tura ao de­sam­paro, está a mai­oria dos por­tu­gueses com mais de cin­quenta anos pro­me­tida a uma ve­lhice de pe­núria e de­so­lação quando não de mi­séria, estão muitos do­entes sem me­di­ca­mentos e mesmo sem as­sis­tência mé­dica por obra e graça de taxas «mo­de­ra­doras» que se lhes tor­naram proi­bi­tivas, está Por­tugal en­tregue à in­fâmia do maior de­se­qui­lí­brio de ren­di­mentos no quadro eu­ropeu, está a au­mentar o nú­mero dos por­tu­gueses que es­co­lhem o sui­cídio, e o dr. Carlos Mo­edas tem a des­ver­gonha de vir à TV dizer que, fi­nal­mente, «es­tamos a viver de acordo com as nossas pos­si­bi­li­dades». Já não é a co­média, por muito ri­dí­cula que a cri­a­tura se torne, é já a tra­gédia em clima de pro­vo­cação. E, para lá de ou­tras con­si­de­ra­ções e sequên­cias, a questão que ime­di­a­ta­mente se sus­cita é a de saber se um su­jeito com tão evi­dente grau de in­di­fe­rença pela efec­tiva si­tu­ação do povo ainda pode ter lugar no es­pec­tá­culo que o Go­verno dá ao povo que devia servir. E ao for­mular-se a dú­vida, é ine­vi­tável lem­brar que Mo­edas é ad­junto de um pri­meiro-mi­nistro, o que ob­vi­a­mente quer dizer qual­quer coisa, e também que esse pri­meiro-mi­nistro é o grande se­me­ador da des­graça que as­sola o País. E, na­tu­ral­mente, de questão em questão, aceder à cer­teza de que é tempo de correr o pano e dar por ter­mi­nado o es­pec­tá­culo desta tra­gi­co­média fac­tu­al­mente cri­mi­nosa.



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