A teoria utilizador-pagador

A. Melo de Carvalho

O uti­li­zador-pa­gador: eis a base se­gura que dá plena razão a quem de­seja voltar atrás, a uma an­tiga his­tória de de­fesa de pri­vi­légio e se­gre­gação, li­qui­dando con­quistas que cus­taram muito sangue, suor, lá­grimas e dor, como o re­sul­tado de um pro­cesso his­tó­rico de lutas dos tra­ba­lha­dores, que levou, quase dois sé­culos e que, como é muito con­ve­ni­ente, bem poucos co­nhecem porque é cui­da­do­sa­mente es­ca­mo­teada. No fundo a te­oria é esta e é es­sen­cial (!) para o «de­sen­vol­vi­mento» do País (na­tu­ral­mente pelo es­forço de quem tra­balha e é mul­ti­pla­mente ta­xado por todo o lado, en­quanto uma mul­tidão de pri­vi­le­gi­ados con­tinua a não pagar im­postos!).

O Es­tado não pode pagar tudo – é uma en­ti­dade cujos ren­di­mentos têm origem nos im­postos e como se «sabe», estes devem di­mi­nuir, em lugar de se montar um me­ca­nismo que obrigue a parte da po­pu­lação que os não paga (des­confia-se que são pre­ci­sa­mente aqueles que me­lhor ga­nham) a fazê-lo. Mas, como é ló­gico, todos os ser­viços têm um valor e um custo que deve ser pago por quem os uti­liza. Quem, por qual­quer mo­tivo o não o pode fazer... não tem nada que os uti­lizar (mesmo que seja um seu di­reito cons­ti­tu­ci­onal e sejam es­sen­ciais para a sua saúde, edu­cação, ma­nu­tenção da força de tra­balho, etc.).

Eis, re­su­mi­da­mente, a te­oria (que cada vez mais está a ser posta em prá­tica).

Mas deixem-nos co­locar al­gumas ques­tões: se assim é então por que é que o fosso que se­para os que podem pagar e os que não podem, se está a apro­fundar cada vez mais (por todo o mundo de­sen­vol­vido, não só no 3.º ou 4.º mundos...)? Então, se assim é, por que é que os mais po­de­rosos clamam cons­tan­te­mente pela di­mi­nuição dos im­postos? Se assim é para onde vai a tão apre­goada so­li­da­ri­e­dade, valor fun­da­mental e es­tru­tu­rante de uma co­mu­ni­dade na­ci­onal?

Bem. As ques­tões po­de­riam con­ti­nuar, como se sabe. Ve­jamos: os im­postos cons­ti­tuem os «ren­di­mentos» do Es­tado. Mas se todos pagam os ser­viços que uti­lizam, para que servem os im­postos? Na sua versão mo­derna, os im­postos não cons­ti­tuíram uma forma de ga­rantir a equi­dade? E o que fazer com esta ver­dade (só por al­guns ainda des­co­berta), de que só uma parte da po­pu­lação paga im­postos (de tal forma a si­tu­ação é es­can­da­losa que até a pró­pria Igreja Ca­tó­lica afirma que a si­tu­ação é um es­cân­dalo ético que não deve manter-se)?

E, por outro lado, pensam os se­nhores bem pen­santes que o preço que um tra­ba­lhador paga por um de­ter­mi­nado ser­viço lhe «custa» o mesmo que a um ci­dadão da bur­guesia que re­cebe um or­de­nado bem mais ele­vado.

Que tem a ver o clube com tudo isto? Tem tudo a ver: os ser­viços que presta (e que cons­ti­tuem uma con­tri­buição es­sen­cial de subs­ti­tuição da acção do Es­tado – e não o con­trário como al­guns nos querem fazer en­golir) tem um custo. E se quem já paga im­postos (e com que sa­cri­fício!) tem de o pagar, está bem ex­pli­cado por que é que o clube vive em crise cró­nica (vão ver, por ex., se os clubes de golfe ou de hi­pismo, vivem tal crise).

A te­oria do uti­li­zador-pa­gador é um dos mais iní­quos e in­justos as­pectos da te­oria ne­o­con­ser­va­dora (ou ul­tra­li­beral, como queiram).

Os ser­viços pres­tados pelo clube con­tri­buem eco­no­mi­ca­mente, sob vá­rios as­pectos (saúde, edu­cação, pre­venção da do­ença, gastos com a to­xi­co­de­pen­dência, in­te­gração so­cial, etc.) para im­por­tantes pou­panças da co­mu­ni­dade no seu todo.

O seu pa­ga­mento deve ser as­se­gu­rado por um justo e equi­li­brado sis­tema de im­postos pagos equi­ta­ti­va­mente por todos – e não só pela parte da po­pu­lação que tra­balha mais du­ra­mente.

Os te­o­ri­za­dores do con­ceito «uti­li­zador-pa­gador» não re­ferem, em mo­mento algum, aqueles que dentro da co­mu­ni­dade não pagam, ou pouco pagam im­postos. Como aquele cé­lebre mi­li­o­nário e pre­si­dente de um clube pro­fis­si­onal que só pa­gava de im­posto o cor­res­pon­dente ao or­de­nado mí­nimo na­ci­onal!

Também fazem tudo por es­quecer a cé­lebre frase de um mi­nistro da Saúde: «quem quer saúde paga-a». Ou seja, quem tem di­nheiro pode pagar a sua saúde, quem não tem... que morra. Esta visão é também muito se­me­lhante à te­oria de um an­tigo mi­nistro da Edu­cação que pen­sava re­solver o pro­blema do anal­fa­be­tismo... dei­xando morrer os ve­lhos (entre os quais o anal­fa­be­tismo era maior).

Com os clubes é o mesmo: quem não tem di­nheiro para pagar os ser­viços que eles prestam... não os uti­liza. E se não os uti­liza porque não os podem pagar, o clube não faz re­ceitas... e morre! E muito bem, essa agora! Que mania a dos tra­ba­lha­dores de que­rerem uti­lizar ser­viços se não têm os meios para tal mesmo que te­nham di­reito a eles!

Só que se es­quecem de uma coisa: é que estes ser­viços são de uti­li­dade pú­blica e não se des­tinam so­mente aos pri­vi­le­gi­ados. A não ser que nos en­con­tremos num país do 3.º mundo (os tais em «vias de sub­de­sen­vol­vi­mento»). Será assim?



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