Óscar Lopes, professor e companheiro de prisão

Fernando Miguel Bernardes

A sede da PIDE no Porto foi si­mul­ta­ne­a­mente um antro de in­ter­ro­ga­tó­rios e tor­tura, tal como a de Lisboa na An­tónio Maria Car­doso, e uma prisão feroz, di­fícil de su­portar, nada de­vendo às con­gé­neres de Ca­xias, Pe­niche ou Al­jube de Lisboa.

Basta dizer que só em 1955, en­quanto de­cor­riam os in­ter­ro­ga­tó­rios de de­zenas e de­zenas de presos (muitos deles le­vados a jul­ga­mento), dois dos sub­me­tidos a tor­tura mor­reram as­sas­si­nados du­rante a es­tátua. Os nomes deles são co­nhe­cidos, e fazem parte de tantos ou­tros que guar­damos no co­ração.

De­pois dos pe­ríodos de maior dor, ter­mi­nados os in­ter­ro­ga­tó­rios e aguar­dando jul­ga­mento nos tri­bu­nais es­pe­ciais do re­gime, o iso­la­mento e os cas­tigos em celas, al­gumas delas pi­ores do que as más, es­pe­ravam os su­pli­ci­ados.

Também ali havia «ve­lhos» con­de­nados a anos de prisão, des­vi­ados de Pe­niche ou de Ca­xias por in­te­resses po­li­ciais pi­descos; foi assim que co­nheci, de vista e de raspão a atra­vessar cor­re­dores, um Carlos Costa, um Fran­cisco Mi­guel, um Jo­a­quim Gomes.

De raspão e atra­ves­sando cor­re­dores (sempre havia que levar presos ao re­creio, à casa de banho, à en­fer­maria, às vezes à vi­sita, co­nheci também, além de ou­tros, um negro sos­se­gadão so­bra­çando al­guns li­vros; olhámo-nos à dis­tância, mas pró­ximos em afecto ima­gi­nado. O guarda que o con­duzia nada disse ao co­lega que me es­col­tava; este, fa­lando por vício mesmo sem res­posta, disse em voz baixa: é o Agos­tinho Neto que vai mudar de cela, de cas­tigo, es­creveu uma carta à fa­mília, foi con­si­de­rada ofen­siva pelos se­nhores da se­cre­taria; cha­mado ao se­nhor Di­rector, re­cusou-se a al­terar os termos da mis­siva: mas é pre­ci­sa­mente isso que eu quero es­crever, não al­tero nem uma linha, disse ele, e agora ali vai de cas­tigo de­pois de o se­nhor Di­rector lhe rasgar a carta na cara.

Ou­tros co­nhe­ci­mentos fe­lizes tive, como ope­rá­rios ou tra­ba­lha­doras do Norte que iam ar­ris­cando um aceno ou um sor­riso, assim como pela pri­meira vez vi em carne e osso fi­guras que co­nhecia de fo­to­gra­fias como Rui Luís Gomes, Vir­gínia Moura e, de outra vez, o seu ma­rido, Lobão Vital. Este, ao chegar à cela antes do guarda lhe re­lem­brar a proi­bição de falar alto, cos­tu­mava de­clamar uma pe­quena frase de sau­dação pela ja­nela. Uma vez disse: vi Coimbra em peso, de bi­gode e tudo! e assim a vi­zi­nhança soube que Coimbra já não es­tava na es­tátua, teria pas­sado a ca­minho da cela.

Coimbra, por da ci­dade do Mon­dego ter vindo preso, era eu, e ia con­du­zido a uma es­pécie de qua­dra­tura fe­chada, chão de la­dri­lhos azuis bri­lhantes, as pa­redes idem, o tecto não me lembro se também era de azu­lejo, tudo a ofuscar o em­pa­re­da­mento que cons­ti­tuía uma cela pe­quena, onde os olhos, ma­go­ados, não ti­nham ou­tras vistas além do azul bri­lhante qua­dri­cu­lado do chão e das pa­redes altas. Havia a de­cepção de uma ja­nela de vidro fosco, baixa, pre­gada, ina­mo­vível, que dei­xava en­trar cla­ri­dade mas não per­mitia ver o que ha­veria no ex­te­rior. Dava, como vim a ra­ci­o­cinar, para um pe­queno re­creio; porque ouvia passos para cá e para lá, de uma pessoa iso­lada que de­pois de uma meia hora era subs­ti­tuída.

Muito gos­taria de ver quem no re­creio an­dava, mas por mais es­forços que fi­zesse, en­cos­tando os olhos ao vidro fosco, nada con­se­guia.

Ex­pe­ri­mentei raspar a es­pécie de pin­tura da su­per­fície, mas, na­tu­ral­mente, os pides não eram parvos de todo, a opa­ci­dade fora pro­vo­cada do lado de fora; nada a fazer. Até que certa vez, ex­plo­rando al­guma falha do «ar­tista», ou quiçá pro­vo­cada pela in­tem­périe, de­tectei uns riscos es­ta­lados na massa a um canto do cai­xilho di­reito, em baixo. Es­preitei e vi um guarda pri­si­onal a uns dez me­tros, nem tanto, mas logo ali, pas­sando quase junto à ja­nela, mal pude dis­tin­guir um vulto à pai­sana que, passos an­dados, vol­tava para trás como quem pas­seia. Fiz algum ruído na vi­draça, e à nova pas­sagem um homem de meia idade e média es­ta­tura olhou, mos­trou-me o rosto; de pro­pó­sito?, seria um preso no re­creio? Ouvi os seus passos che­garem ao fim do per­curso, vol­tarem para cá, e de novo o rosto se me mos­trou, agora mais de frente. Quando tornei a ouvir as pas­sadas calmas, tive tempo de per­guntar, e per­guntei bai­xinho: como te chamas? Os passos lá foram se­guindo nor­mal­mente, res­so­ando no cas­calho, vol­taram para cá, e se­gundos de­pois ouvi dis­tin­ta­mente uma res­posta se­gre­dada: Óscar Lopes.

Olha quem ele é, falei para os meus bo­tões; o pro­fessor, que pes­so­al­mente não co­nhecia, o sempre pre­sente às se­gundas e quartas terças-feiras de cada mês com a sua crí­tica li­te­rária pas­sada à lupa no Co­mércio do Porto, o his­to­ri­ador de li­te­ra­tura, o apai­xo­nado pela lin­guís­tica e de tal modo que para me­lhor a com­pre­ender e ex­plicar se pôs a es­tudar ma­te­má­tica de­pois de tantos anos como pro­fis­si­onal que já era.

Mas nisto volto a sentir os passos para cá, prestei atenção e como con­ti­nu­ação da nossa «con­versa» ouvi a per­gunta: e tu?

Es­perei o re­gresso do com­pa­nheiro para lhe res­ponder, mas a voz do guarda falou mais alto: ter­minou o re­creio! E, assim, não voltei a lo­brigar o amigo; só mais tarde, em li­ber­dade, nos en­con­trámos e co­men­támos aquele en­contro.

Vá­rios con­ví­vios tive com Óscar Lopes, prin­ci­pal­mente quando se en­con­trava com es­tu­dantes, lei­tores seus e ou­tros amigos na Li­vraria Di­vul­gação.

Ex­punha ele sobre pro­blemas li­te­rá­rios ou lin­guís­ticos de um modo geral, ou cha­mava ali um ou outro livro re­cen­te­mente pu­bli­cado, um ou outro autor digno de crí­tica; por vezes éramos nós a ini­ciar a con­versa, de­pois a in­ter­pelá-lo, puxar por ele não seria ne­ces­sário: es­tava-lhe na massa do sangue, como se diz, a li­te­ra­tura e res­pec­tivos do­mí­nios. Mo­desto no seu expor e no seu re­la­ci­o­na­mento com os pre­sentes, muitos deles mais novos e al­guns seus alunos, certa vez in­ter­rompeu-se, olhou em volta e per­guntou: digo bem, Vítor? O Vítor não teria mais de vinte anos, mas era tão fácil di­a­logar com Óscar Lopes que nin­guém re­parou nisso, nem re­parou no à-von­tade do jovem na res­posta: acho que sim, Pro­fessor.

Era este o modo de estar na vida de Óscar Lopes. Es­tu­dioso, indo ao fundo dos pro­blemas, que­rendo sempre saber da opi­nião dos com­pa­nheiros. Assim du­rante o jul­ga­mento no Tri­bunal Ple­nário do Porto, após o tempo de prisão que re­feri acima. Nesse jul­ga­mento, que se pro­longou por meses, a acu­sação juntou ele­mentos do MUD Ju­venil (in­cluindo a sua Co­missão Cen­tral), assim como ou­tros ho­mens e mu­lheres, todos acu­sados de ac­ti­vi­dades contra a se­gu­rança do Es­tado, me­tendo no mesmo grupo al­guns pro­cessos dos par­ti­dá­rios da Paz (a Paz também seria contra a se­gu­rança do Es­tado...), onde es­tava in­te­grado Óscar Lopes. Du­rante o jul­ga­mento sempre a sua pa­lavra era ou­vida, ele não era só o Pro­fessor, o es­pe­ci­a­lista de lin­guís­tica, de his­tória da li­te­ra­tura, de crí­tica li­te­rária. Cons­ta­tá­vamos que Óscar Lopes bem co­nhecia os quês e os porquês do preso po­lí­tico, e da re­sis­tência anti-fas­cista e de­mo­crá­tica; onde, até ao fim da sua vida, es­teve in­te­grado.

Honra te seja, Óscar Lopes!



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