Sinais de uma tragédia anunciada

Correia da Fonseca

Era uma longa fila sobre a qual, aliás, a câ­mara não se de­morou muito. De­pois, a jor­na­lista en­tre­vistou su­ma­ri­a­mente três ou quatro pes­soas, todas bem mais pró­ximas da ve­lhice do que da ju­ven­tude já dis­tante. Ti­nham-se le­van­tado a meio da noite e ido para ali, para a porta da As­so­ci­ação dos In­qui­linos Lis­bo­nenses, ainda em plena ma­dru­gada, na es­pe­rança de re­ce­berem um con­selho, uma ori­en­tação que lhes possa ame­nizar a an­gústia em que estão mer­gu­lhados desde a pu­bli­cação da nova le­gis­lação sobre o ar­ren­da­mento ur­bano. Adi­vinha-se sem di­fi­cul­dade que a As­so­ci­ação faz o que pode mas que não pode muito; que so­bre­tudo não pode parar os efeitos de­vas­ta­dores de uma lei que pa­rece ter sido posta em marcha para acabar de vez com a pos­si­bi­li­dade de mi­lhares de ci­da­dãos por­tu­gueses em plena ve­lhice ou à beira dela man­terem o lar onde vi­veram a maior parte das suas vidas. Há dias, a te­le­visão por­tu­guesa mos­trou fu­gaz­mente uma ma­ni­fes­tação em Ma­drid onde os ma­ni­fes­tantes, in­dig­nados com as con­sequên­cias ver­da­dei­ra­mente as­sas­sinas dos des­pejos acon­te­cidos em Es­panha, su­bli­nhavam que os no­ti­ci­ados sui­cí­dios de al­guns dos des­pe­jados de suas casas ha­viam sido na ver­dade as­sas­sí­nios per­pe­trados por um quadro legal ob­jec­ti­va­mente cri­mi­noso. Entre nós. a cha­mada Nova Lei do Ar­ren­da­mento Ur­bano, creio ser esta a sua pom­posa de­sig­nação ofi­cial, tem o que é pre­ciso para de­sen­ca­dear efeitos se­me­lhantes em Por­tugal, se é que não os de­sen­ca­deou já. Na ver­dade, a regra de­on­to­ló­gica que de­sa­con­selha os meios de co­mu­ni­cação so­cial de no­ti­ci­arem os sui­cí­dios a fim de não de­sen­ca­de­arem um efeito de imi­tação pode, nesta ma­téria, fun­ci­onar como factor en­co­bridor das con­sequên­cias as­sas­sinas da le­gis­lação pro­du­zida pelo ac­tual Go­verno.

Sair não só das casas

Tão abun­dante em de­bates e re­por­ta­gens, al­gumas destas aliás de muito mé­rito, a te­le­visão por­tu­guesa ainda não abordou com mí­nimo de­sen­vol­vi­mento a questão gra­vís­sima dos efeitos da nova le­gis­lação do ar­ren­da­mento ur­bano sobre a so­bre­vi­vência fi­nan­ceira de muitos mi­lhares de ve­lhos por­tu­gueses e sobre o enorme risco de serem eles ex­pulsos dos seus lares. Sobre muitos deles im­pende o risco de des­truição de toda uma vida, de al­ter­na­tivas pés­simas e even­tu­al­mente hu­mi­lhantes e, não te­nhamos a co­bardia de o omitir, a ten­tação do sui­cídio. Tanto quanto se sabe, e sabe-se pouco, a «ac­tu­a­li­zação» das rendas de casa an­tigas, isto é, o seu au­mento, está li­mi­tada por uma re­lação com os ren­di­mentos au­fe­ridos pelo ar­ren­da­tário (ou o casal ar­ren­da­tário) no ano de 2012. Porém, também tanto quanto se sabe, o valor da renda fi­xada nessas con­di­ções não será cor­ri­gida por re­dução se em ano se­guinte os ren­di­mentos dos ar­ren­da­tá­rios forem al­te­rados para menos, de­sig­na­da­mente por morte de um deles quando, como é comum, os ar­ren­da­tá­rios forem um casal. Nestas cir­cuns­tân­cias, a fa­mi­ge­rada nova le­gis­lação ameaça ser, de acordo com o que as es­ta­tís­ticas nos en­sinam em ma­téria de óbitos e de es­pe­rança de vida, uma pro­du­tora por ata­cado de viúvas ex­pulsas de suas casas por não terem meios para pagar as rendas «ac­tu­a­li­zadas». Po­derá ser uma enorme tra­gédia so­cial que se acres­cen­tará às já exis­tentes, que não são poucas nem li­geiras. E apa­ren­te­mente o Go­verno não dá por isso, antes pros­segue o iti­ne­rário que traçou com apa­rente alhe­a­mento pelas con­sequên­cias, senão com uma total falta de es­crú­pulos, o que pa­rece con­firmar-se pelo facto de ter ini­ciado em 15 de Julho a emissão de do­cu­mentos com­pro­va­tivos do já fa­mi­ge­rado RABC (Ren­di­mento Anual Bruto Cor­ri­gido) de 2012, a partir do qual o au­mento de mi­lhares rendas é fa­ci­li­tado até in­de­pen­den­te­mente de o re­fe­rido ano poder ter sido um tempo de ren­di­mentos ex­cep­ci­o­nal­mente avul­tados para o(s) ar­ren­da­tário(s). Assim, tudo in­dica que o Go­verno, tendo obrado, con­templa feliz a sua obra, sem re­morsos. Que talvez co­mecem a surgir, quem sabe?, quando co­meçar a constar que al­guns dos ve­lhos in­qui­linos ex­pulsos es­co­lheram sair não apenas de suas casas mas também da vida. 



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