Comentário

O «estado da União»

Inês Zuber

1. Na se­mana pas­sada, Durão Bar­roso pro­feriu o seu úl­timo dis­curso sobre o «Es­tado da União», en­quanto pre­si­dente da Co­missão Eu­ro­peia. Tentou mi­ti­ficar o pro­jecto da União Eu­ro­peia, em tom de ode pouco triunfal, pro­cla­mando o pro­jecto e os va­lores da União, a forma he­róica como re­sistiu às ad­ver­si­dades e a ne­ces­si­dade de ser de­fen­dida. Mas porque temos que a de­fender? Porque a UE é um veí­culo para ga­rantir às pes­soas os seus di­reitos e uma vida digna? Não, o con­trário. Temos que a de­fender porque é a União Eu­ro­peia. Um «pro­jecto comum» na re­tó­rica de Bar­roso; um pro­jecto de cri­ação de de­si­gual­dade, na re­a­li­dade quo­ti­diana dos tra­ba­lha­dores. O dis­curso de Bar­roso foi, assim, vazio de con­teúdo con­creto e forte em mis­ti­fi­ca­ções abs­tractas que estão longe, bem longe, do mundo real. Bar­roso apostou também no ar­gu­mento de que a mu­dança está aí, os si­nais da re­toma eco­nó­mica estão fi­nal­mente a apa­recer de­pois dos «nossos es­forços»(?). Por­tugal serviu de exemplo – «o cres­ci­mento re­gressou ao país após uma série de tri­mes­tres ne­ga­tivos». A eco­nomia por­tu­guesa, bem sa­bemos, não cresceu, o que acon­teceu foi que o ritmo da re­cessão abrandou li­gei­ra­mente e cir­cuns­tan­ci­al­mente. Os por­tu­gueses vivem um drama so­cial real, com pers­pec­tivas de se agravar através das me­didas já anun­ci­adas de des­pe­di­mentos e cortes nas pen­sões. A taxa de de­sem­prego voltou a subir um por cento em Agosto, em re­lação ao mês de Julho. Mas a de­ma­gogia re­tó­rica de Bar­roso ig­nora o con­creto.

No dis­curso, Bar­roso pre­veniu também todos os que ousem pensar em al­ter­na­tivas ao ca­minho tra­çado e rumar em ca­mi­nhos di­fe­rentes. Os go­vernos devem ter es­ta­bi­li­dade e de­ter­mi­nação – «nesta fase de crise, o papel dos go­vernos é pro­por­ci­onar a se­gu­rança e a pre­vi­si­bi­li­dade de que os mer­cados pre­cisam». Que nin­guém se atreva a deixar de servir os mer­cados, que ne­nhum povo ouse es­co­lher outro rumo po­lí­tico para o seu país. Que ne­nhum povo se aven­ture na prá­tica de­mo­crá­tica de es­co­lher so­be­ra­na­mente sobre os seus des­tinos. Para Bar­roso, a vi­tória foi ter-se con­se­guido de­fender o mer­cado único e o euro. Não ex­plica como é que esses me­ca­nismos con­tri­buem para o bem comum. Mas o que im­porta é de­fendê-los. Mesmo que para tal as pes­soas sejam rou­badas de todos os seus di­reitos e vejam as suas vidas des­truídas. Foi, de facto, uma «res­posta firme» como o pre­si­dente da Co­missão Eu­ro­peia re­feriu – uma res­posta firme contra as po­pu­la­ções, contra quem tra­balha e quem vive do seu tra­balho. Foi esta a vi­tória da «União».

2. A UE ex­plora cada vez mais di­fe­rentes sec­tores de ne­gócio, ali­e­nando aquilo que de­ve­riam ser di­reitos das po­pu­la­ções. A cul­tura não es­capa a esta sanha pre­da­dora. Na Carta dos Di­reitos Fun­da­men­tais da União Eu­ro­peia está es­ta­be­le­cido que as «artes e a in­ves­ti­gação ci­en­tí­fica são li­vres». Este con­ceito am­bíguo não en­cerra cer­ta­mente o sen­tido de que todos devem ter a li­ber­dade de cri­ação cul­tural. Que todos devem ter a li­ber­dade de fruição cul­tural. Na se­mana pas­sada foi vo­tado no Par­la­mento Eu­ropeu um re­la­tório sobre os cha­mados «sec­tores cul­tu­rais e cri­a­tivos». Re­su­mi­da­mente, o re­la­tório de­fende que estes sec­tores são cons­ti­tuídos, so­bre­tudo por PME, mas também por as­so­ci­a­ções e ins­ti­tui­ções, equi­pa­rando-os como se estes pros­se­guissem os mesmos ob­jec­tivos. Quem votou fa­vo­ra­vel­mente este re­la­tório está de acordo que os pro­jectos cul­tu­rais sejam apoi­ados, so­bre­tudo, tendo em conta a sua vi­a­bi­li­dade eco­nó­mica e os im­pactos que pro­duzem na eco­nomia; con­si­dera que a cul­tura é tão mais im­por­tante quanto tiver opor­tu­ni­dades em novos mer­cados, seja mais «com­pe­ti­tiva» e com maior «es­pí­rito em­pre­sa­rial». O mais ina­cre­di­tável é que o mo­delo de fi­nan­ci­a­mento pro­posto para a área cul­tural segue o exemplo do novo Pro­grama «Eu­ropa Cri­a­tiva» – a con­cessão de cré­dito, ou seja, o en­di­vi­da­mento das en­ti­dades cul­tu­rais. O acesso a fontes de fi­nan­ci­a­mento pri­vadas e a cri­ação de sis­temas de ga­rantia de em­prés­timos é o que este re­la­tório pre­co­niza. A mer­can­ti­li­zação da cul­tura no seu me­lhor. Os de­pu­tados do PS, PSD e CDS-PP vo­taram fa­vo­ra­vel­mente. Nós vo­támos contra. A cul­tura não é para lu­crar, nem para ser aces­sível só para al­guns. É um di­reito con­sa­grado na nossa Cons­ti­tuição. Que urge de­fender. 




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