Três livros e um projecto editorial singular e estimulante

Domingos Lobo

Num tempo em que a fas­quia da qua­li­dade nas artes, no­me­a­da­mente na li­te­ra­tura, co­meça a co­locar-se dra­ma­ti­ca­mente baixa; do re­gresso, com trom­betas e mar­ke­ting apu­rado de uma es­crita de pi­pocas e coca cola, pro­mo­vida a acon­te­ci­mento mun­dano como se mú­sica pop; es­cri­tinha que se pa­vo­neia nos écrans das te­le­vi­sões como se de um de­ter­gente se tra­tasse; se mostra nas fa­chadas dos pré­dios de­gra­dados ao lado dos car­tazes do Tony Car­reira; num tempo assim, a tocar o fundo (quanto mais se toca no fundo, mais ele desce), olhamos o céu e o ne­grume açoita-nos im­pi­e­doso.

Ma­nuel Vas­quez Mon­talban, ao re­ferir-se há uns anos, cáus­tico como sempre, à vida cul­tural do seu país, afir­mava que a li­te­ra­tura se re­du­zirá, a breve trecho, a pouco mais que de cordel, para ler de pé no in­ter­valo das copas e das tapas.

Num país de­vas­tado pela po­lí­tica de di­reita, cul­tural e so­ci­al­mente à de­riva e a saque, ainda há es­paço para a lei­tura, ou seja, ainda é pos­sível pro­duzir li­te­ra­tura que exija do leitor tempo e con­tem­plação, como pug­nava Maria Ga­briela Llasol, ou sim­ples­mente seja a festa da sen­si­bi­li­dade, como Werner Krauss de­fendia? Li­te­ra­tura a fazer-se des­per­tando-nos para ou­tras pro­fun­dezas da vida, a urdir-se de signos efa­bu­la­tó­rios que re­con­duzam o leitor pelos ca­mi­nhos do sen­sível e do ra­ci­onal, a um tempo ar­guta, or­ga­ni­ca­mente lím­pida e en­vol­vente – li­te­ra­tura para o gozo dos sen­tidos mas a in­qui­etar-nos, a sorver-se de­vagar como vinho raro; a trazer-nos uma ideia nova que nos in­tran­qui­lize e faça sentir vivos e ac­tu­antes. Quero acre­ditar que ainda há au­tores ca­pazes de li­vros assim e de lei­tores dis­po­ní­veis para eles. Até porque existem au­tores, e edi­toras, mesmo que ac­tu­ando à margem do sis­tema, que não fa­ci­litam, que teimam sobre o novo, o di­fícil, que se deixam se­duzir por ca­mi­nhos li­sura, es­cor­reitos e in­te­lec­tu­al­mente ho­nestos, ar­re­dios às trom­betas da fama e da «li­te­ra­tura» fast food, boçal, de en­tre­te­ni­mento, vi­o­lenta, ide­o­lo­gi­ca­mente su­bor­di­nada à ló­gica da usura to­ta­li­tária do ca­pi­ta­lismo, e vão pug­nando, nas suas ameias de pa­la­vras, por uma arte as­sente sobre as com­ple­xi­dades do real, un­gida sobre a vida, li­ber­tária, di­a­lec­ti­ca­mente ques­ti­o­na­dora e po­pular; uma li­te­ra­tura que ex­presse o hu­mano, des­perte os sen­tidos, o pen­sa­mento e a acção: que tenha o Homem como centro e ob­jecto de re­flexão, de ex­pla­nação fic­ci­onal e cri­a­tiva.

Os três li­vros de que hoje vos falo, jus­ti­ficam, em pleno, essa es­pe­rança. Pri­meiro, são edi­tados por uma As­so­ci­ação (dos Jor­na­listas e Ho­mens de Le­tras do Porto); se­gundo, não é crível que ou­tras mo­ti­va­ções, para além do ser­viço es­trito da di­vul­gação Cul­tural (que não é, nos tempos que vi­vemos, coisa des­pi­ci­enda), e do plural fluxo das ideias, mova os seus au­tores, para que o pen­sa­mento único, que os arautos do ne­o­li­be­ra­lismo e os media do sis­tema teimam em impor-nos, se não trans­forme numa tra­ves­tida «po­lí­tica do es­pí­rito» e ou­tras abor­da­gens face ao real e à es­té­tica li­te­rária, possam res­pirar, ainda que li­mi­tadas, de forma livre e are­jada.

O sin­gular pro­jecto da As­so­ci­ação dos Jor­na­listas e Ho­mens de Le­tras do Porto (AJHLP), e as suas co­lec­ções Me­mória Pe­re­cível e Me­mória Fu­tura, ganha im­por­tância de­ter­mi­nante nas ac­tuais cir­cuns­tân­cias, quer pela co­ragem da ini­ci­a­tiva, quer pelo zelo e rigor que pre­side a estas edi­ções, es­ta­be­le­cendo-se como um im­por­tante con­tri­buto para a di­vul­gação de obras de au­tores que, na 2ª. ci­dade do país, teimam em pros­se­guir, com li­sura e de­nodo in­te­lec­tuais, a di­vul­gação de textos que, face às de­rivas ra­paces deste nosso tempo, di­fi­cil­mente en­con­tra­riam es­paço de di­vul­gação na ló­gica mer­cantil, de­sor­de­nada e agres­siva que tomou de as­salto o nosso meio edi­to­rial.

Ve­jamos, de forma su­cinta, três dos mais re­centes tí­tulos pu­bli­cados pela AJHLP:

A Bi­ci­cleta e Ou­tros Po­emas, de Luís Veiga LeitãoAn­to­logia breve de um dos vultos ci­meiro da poé­tica do neo-re­a­lismo, pu­bli­cada para as­si­nalar os cem anos do nas­ci­mento de Luís Veiga Leitão, que em 2012 se cum­priram, os quais, na opor­tu­ni­dade, foram igual­mente mo­tivo de re­fe­rência nas pá­ginas do Avante!. Dos textos que acom­pa­nham esta opor­tuna co­lec­tânea, sa­li­ento, com a de­vida vénia, duas breves, mas sig­ni­fi­ca­tivas, pas­sa­gens: «Nuvem negra, caro Luís, volta a es­tender mão fria por cima das nossa ca­beças. A noite. A noite an­tiga e os seus novos fei­tores, cé­leres, co­meçam a re­er­guer os muros, de pedra e in­dig­ni­dade, na ale­gria móvel da nossa terra. Mais do que nunca, as ge­ra­ções que não vi­eram dos «cár­ceres da noite» pre­cisam (re)des­co­brir o seu li­rismo fra­terno. E a bi­ci­cleta? A bi­ci­cleta vamos pre­cisar dela, «para que a be­leza e a re­beldia/​não se percam». (Fran­cisco Du­arte Mangas); «Se vocês ti­vessem co­nhe­cido, como eu co­nheci, o Luís Veiga Leitão, sa­be­riam que ao redor de uma mesa de café, quando ele lá es­ti­vesse, é pos­sível as pes­soas par­ti­ci­parem em aven­turas, al­gumas ini­ma­gi­ná­veis, e so­nhar, so­bre­tudo so­nhar com um Mundo mais fra­terno e feliz. (Ger­mano Silva).

A Ba­talha da Me­mória, de Jorge Sa­ra­bando – A me­mória deve pro­jectar-se no fu­turo, en­quanto ele­mento ful­cral e cog­ni­tivo do pen­sa­mento hu­mano. Este livro de Jorge Sa­ra­bando é, para essa pro­jecção, con­tri­buto me­ri­tório pela im­por­tância dos textos que nele vêm reu­nidos, acan­to­nados em quatro dis­tintas abor­da­gens, todas elas su­bor­di­nadas a uma ideia cen­tral, ou seja, a de que há um tempo de re­flexão, de es­tru­tu­ração do pen­sa­mento cul­tural e po­lí­tico, gi­zando os pres­su­postos ide­o­ló­gicos que ex­planam a acção, vi­sando trans­formar o so­cial e o po­lí­tico, re­ver­tendo para o dis­curso ho­di­erno a fe­no­me­no­logia dos sen­tidos que o ca­pi­ta­lismo tornou agó­nico; os factos cul­tu­rais e po­lí­ticos que a me­mória retém (de Adriano, a Vir­gínia Moura, dos Con­gressos De­mo­crá­ticos de Aveiro, à vida cul­tural no Porto), re­me­tendo esse acervo para os nossos ín­timos pro­cessos re­fle­xivos; ideias e ar­gu­mentos que não devem es­tuar no tempo breve de um dis­curso e é justo que per­ma­neçam, pela sua im­por­tância ana­lí­tica e in­ter­ven­tiva, para além dessa cir­cuns­tância. No es­casso pa­no­rama do ac­tual de­bate ide­o­ló­gico, mas, so­bre­tudo, cul­tural, este livro de Jorge Sa­ra­bando, a um tempo pro­vo­cador e as­ser­tivo, vem pre­en­cher, numa lin­guagem clara e co­ra­josa, através dos im­pe­re­cí­veis me­ca­nismos da me­mória e dos afectos, um im­por­tante es­paço. Dar Sen­tido ao Tempo – da Mai­anga ao Bonfim, de An­tónio Ca­dete Leite – Mé­dico, pro­fessor na Fa­cul­dade de Me­di­cina do Porto, o autor traça, neste livro es­crito com humor e agi­li­dade dis­cur­siva to­cantes, ca­pa­ci­dade de ca­rac­te­rizar os di­versos ex­tractos so­ciais que pol­vi­lham a prosa, o seu per­curso de vida, de me­mó­rias, de afectos, cujos vão dos tempos de bal­co­nista na loja pa­terna, si­tuada «junto à Igreja do Bonfim», no seu Porto natal, até à guerra co­lo­nial e à pas­sagem pelo Hos­pital Mi­litar, em Lu­anda.

Desse olhar pí­caro, por vezes crí­tico e amargo sobre a re­a­li­dade por­tu­ense dos anos 1940, res­pi­gamos um naco de im­pres­siva prosa: O tempo da mi­séria, da fome, da do­ença, do de­sem­prego, da ver­gonha e da de­sonra. O tempo do so­fri­mento em si­lêncio, do re­ceio de pro­testo, do inex­pli­cável res­peito pelo se­me­lhante que não aju­dava, da re­sig­nação pe­rante tão fla­grantes ad­ver­si­dades. Tudo tão perto, afinal, do tempo em que es­tamos. Um livro em busca do tempo per­dido, a dar sen­tido a este nosso tempo.



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