URSS um novo olhar sobre a sua história

Drama no seio da Revolução de Outubro

Manoel de Lencastre

Trotsky pe­dira a de­missão do seu cargo de Co­mis­sário para os Ne­gó­cios Es­tran­geiros. O Co­mité Cen­tral pa­recia ago­nizar numa luta ter­rível para con­se­guir con­senso du­rante o de­bate que le­varia à de­sig­nação dos ca­ma­radas que ha­viam de se­guir para Brest-Li­tovsk e pro­ceder, fi­nal­mente, à as­si­na­tura do Tra­tado com o go­verno alemão.

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«Esta se­mana», disse Lé­nine, «a se­mana de 18 a 24 de Fe­ve­reiro de 1918 em que vimos a cap­tura de Dvinsk e de Pskov, a se­mana em que se deu a ofen­siva mi­litar dos im­pe­ri­a­listas ale­mães contra a Re­pú­blica So­ci­a­lista So­vié­tica, foi afli­tiva, re­vol­tante, uma do­lo­rosa lição, mas uma lição ne­ces­sária, útil e be­né­fica!».

A as­si­na­tura do Tra­tado, essa pun­gente ex­pe­ri­ência, essa ca­pi­tu­lação pe­rante o im­pe­ri­a­lismo, re­a­lizou-se a 3 de Março. Mas então, tropas alemãs es­tavam já perto de Pe­tro­grado, a Ve­neza do Norte, a ci­dade ca­pital, prin­cesa, filha e mãe da Re­vo­lução de Ou­tubro. Já ti­nham en­trado em Minsk e a ca­pital da Ucrânia, Kiev, que os na­ci­o­na­listas da Rada ti­nham atin­gido a 1 de Março veria a che­gada dos ale­mães no dia se­guinte. Quando o Tra­tado foi as­si­nado, a linha de ocu­pação alemã tra­çava-se de Narva, no Bál­tico, até aos li­mites da fron­teira Norte da Ucrânia. A de­sin­te­gração entre as or­ga­ni­za­ções e os go­vernos lo­cais que apoi­avam a Re­pú­blica So­vié­tica era evi­dente. Pe­quenas re­vo­lu­ções em pe­quenas pro­vín­cias per­se­guiam e as­sas­si­navam os par­ti­dá­rios do go­verno le­ni­nista de Pe­tro­grado. A re­sis­tência não criava raízes. Nas­cida na alma de re­vo­lu­ci­o­ná­rios, logo se des­fazia. Os ale­mães ti­nham pressa na eli­mi­nação da­quilo a que cha­mavam ‘a in­fluência ver­me­lha’. A seu favor ti­nham des­ta­ca­mentos de cos­sacos e de na­ci­o­na­listas de di­versas ca­te­go­rias, todos unidos pelo ódio às novas pers­pec­tivas que o poder so­vié­tico anun­ciava e pelo medo de que as massas de ig­no­rantes e de ex­plo­rados enfim com­pre­en­dessem o que es­tava em jogo e que­brassem as gri­lhetas que, apesar da Re­vo­lução de Ou­tubro, ainda as man­ti­nham ca­tivas. Ca­tivas, sim, de sé­culos de opressão e de so­fri­mentos, de sé­culos de obs­cu­ran­tismo!

O go­verno so­vié­tico tinha pre­pa­rado a sua pró­pria eva­cu­ação para Mos­covo. Mas, aí, o Co­mité Re­gi­onal par­ti­dário apres­sava-se em ex­plicar que não es­tava de acordo com a po­lí­tica ou com a com­po­sição do CC a que pre­sidia Lé­nine e que tra­ba­lharia para que este órgão su­premo do par­tido fosse subs­ti­tuído. E con­fir­mava, também, que os co­mu­nistas de Mos­covo não se con­si­de­ravam obri­gados a obe­decer às de­ci­sões re­la­ci­o­nadas com a im­ple­men­tação do Tra­tado de Brest-Li­tovsk. Pre­fe­riam, como se ve­ri­fica na sua «es­tranha e mons­truosa» de­cla­ração con­si­derar que o poder so­vié­tico era, na ver­dade, apenas formal, e achavam que a der­rota os li­ber­tava para a ta­refa de agi­tarem pela re­vo­lução em todos os países. Foi o pró­prio Lé­nine, evi­den­te­mente, quem con­si­derou esta de­cla­ração como es­tranha e mons­truosa.

A 8 de Março o Con­gresso do Par­tido con­fir­mava que hou­vera ne­ces­si­dade de as­sinar o do­lo­roso e hu­mi­lhante tra­tado de paz. E que tal ti­vera de fazer-se de­vido à falta de um exér­cito digno desse nome e para que se ob­ti­vesse um pe­ríodo de re­la­tiva acalmia antes de os im­pe­ri­a­listas lan­çarem uma ofen­siva geral contra a Re­pú­blica dos So­vi­etes. E sa­li­entou-se: «Ata­ques mi­li­tares contra a Rússia So­vié­tica, vindos de Leste como do Oci­dente, são ine­vi­tá­veis. O Con­gresso, por­tanto, de­clara que a mais fun­da­mental de todas as ta­refas do Par­tido está em que toda a van­guarda do pro­le­ta­riado com cons­ci­ência de classe se una ao poder so­vié­tico para que se adoptem as mais enér­gicas, de­ci­didas, drás­ticas me­didas com vista a me­lhorar a dis­ci­plina dos ope­rá­rios e dos cam­po­neses, para ex­plicar a ine­vi­ta­bi­li­dade deste his­tó­rico ca­mi­nhar da Rússia em di­recção à guerra pa­trió­tica e so­ci­a­lista de li­ber­tação e para que sejam cri­adas em todo o país novas or­ga­ni­za­ções de massas que se man­te­nham unidas por uma von­tade de ferro, ca­pazes dos mai­ores es­forços no dia a dia da guerra e nos mais crí­ticos mo­mentos na vida de um povo. E para que toda a po­pu­lação adulta co­mece a fa­mi­li­a­rizar-se com os vá­rios as­suntos mi­li­tares e ganhe co­nhe­ci­mentos de ope­ra­ções pró­prias de si­tu­a­ções de com­bate. O Con­gresso está certo de que os passos já dados pelo poder so­vié­tico, tendo em conta o ac­tual ali­nha­mento de forças na arena mun­dial, se ve­ri­fi­caram em clara har­monia com os in­te­resses da re­vo­lução, ine­vi­tá­veis e ne­ces­sá­rios».

A ra­ti­fi­cação do Tra­tado

Um dia sem guerra, mesmo na apo­dre­cida paz de Brest-Li­tovsk, era um pre­cioso tempo na pre­pa­ração para o con­flito geral que, sem dú­vida, se apro­xi­mava. Cinco dias se­riam es­paço para res­pirar, uma eter­ni­dade em que os povos da Rússia imensa se pre­pa­ra­riam para a de­fesa do poder sur­gido da Re­vo­lução de Ou­tubro. Os fran­ceses e os in­gleses, posto que os ale­mães já co­lo­ni­zavam a Ucrânia, pre­pa­ravam-se para a to­mada e a ocu­pação de Ar­changel, os ja­po­neses apro­xi­mavam-se de Vla­di­vostok, como já sa­bemos. Na ordem do dia: a mu­dança de nome do Par­tido, al­te­ra­ções ao res­pec­tivo pro­grama. Mas acima de tudo era o 4.º Con­gresso Ex­tra­or­di­nário dos So­vi­etes de toda a Rússia, em sessão de 14 a 16 de Março de 1918, que do­mi­nava as aten­ções. O ponto prin­cipal da ordem de tra­ba­lhos era a ra­ti­fi­cação do Tra­tado de Brest-Li­tovsk cuja as­si­na­tura o grupo co­mu­nista do Con­gresso, de que também fa­ziam parte ou­tros par­tidos, apro­vara por 453 votos contra 36. O Con­gresso com­punha-se de 1232 de­le­gados e os par­tidos dis­pu­nham-se se­gundo os nú­meros se­guintes: Co­mu­nistas ou Bol­che­vi­ques: 795; So­ci­a­listas Re­vo­lu­ci­o­ná­rios de Es­querda: 283; So­ci­a­listas Re­vo­lu­ci­o­ná­rios cen­tristas: 25; Men­che­vi­ques: 21; Men­che­vi­ques In­ter­na­ci­o­na­listas: 11. O re­la­tório res­pei­tante à questão es­sen­cial, que era a do Tra­tado, foi lido pelo novo Co­mis­sário para os Ne­gó­cios Es­tran­geiros, G. V. Chi­cherin, que subs­ti­tuíra Trotsky.

Numa at­mos­fera em que os par­ti­dá­rios da não as­si­na­tura do Tra­tado também fa­ziam ouvir a sua voz e a ar­gu­men­tação do ‘trotskyismo’ crescia as­sente em bases du­vi­dosas e in­de­fi­ní­veis como a re­cusa da guerra e a re­cusa da paz, o ir­re­a­lismo da es­pe­rada re­vo­lução nos países im­pe­ri­a­listas, dú­vidas quanto à elec­tri­fi­cação, sempre que se men­ci­o­nava o pro­jecto da paz como es­sen­cial, Lé­nine afir­mava, a 14: «Ca­ma­radas: es­tamos hoje aqui para de­cidir a questão que mar­cará uma vi­ragem no de­sen­vol­vi­mento da Re­vo­lução russa e não só, mas também o da re­vo­lução in­ter­na­ci­onal, para de­cidir, enfim, cor­rec­ta­mente, quanto aos termos se­veros que os re­pre­sen­tantes so­vié­ticos nos trazem de Brest-Li­tovsk».

Pros­se­guiria: «O ca­minho aberto pela nossa re­vo­lução desde o fim de Fe­ve­reiro de 1917 até ao 11 de Fe­ve­reiro deste ano, quando a ofen­siva ger­mâ­nica co­meçou pe­rante a re­cusa de Leon Trotsky em con­cluir a paz nos termos que, nessa al­tura, os im­pe­ri­a­listas ale­mães apre­sen­tavam, foi um ca­minho de êxitos ainda que tem­pes­tu­osos e curtos. Mas a partir de Ou­tubro de 1917, a re­vo­lução co­lo­caria o poder nas mãos do pro­le­ta­riado re­vo­lu­ci­o­nário, es­ta­be­le­ceria um poder novo com o apoio da vasta mai­oria dos tra­ba­lha­dores da in­dús­tria e dos cam­po­neses po­bres – de­pois de Ou­tubro, a nossa re­vo­lução avançou, triunfal. Porém, através do vasto país, a guerra civil co­me­çaria, ateada pelas forças ini­migas do poder so­vié­tico, pelos ini­migos da classe tra­ba­lha­dora e das massas ex­plo­radas, sempre apoi­adas pela bur­guesia im­pe­ri­a­lista».

E, em se­guida, ex­pli­caria: «Nessa guerra, esses ini­migos pro­varam a sua in­sig­ni­fi­cância. A guerra civil, nos seus pri­meiros dias, foi um triunfo cons­tante do poder so­vié­tico porque os seus opo­nentes, os ex­plo­ra­dores, os grandes pro­pri­e­tá­rios ru­rais, a bur­guesia em geral, não pos­suíam apoios po­lí­ticos ou eco­nó­micos e os seus ata­ques ao poder so­vié­tico en­traram em co­lapso. Então, todas as sec­ções do povo tra­ba­lhador, até os pró­prios cos­sacos, aban­do­naram os ex­plo­ra­dores que ten­tavam desviá-los da nova era re­vo­lu­ci­o­nária». E con­ti­nuou: «Com efeito, a re­vo­lução que li­quidou a mo­nar­quia em poucos dias, apenas, pro­grediu eli­mi­nando a re­sis­tência das classes opostas numa guerra civil de só al­gumas se­manas. Esta re­vo­lução, a re­vo­lução da Re­pú­blica so­vié­tica, en­tre­tanto, só po­deria viver lado a lado com os ani­mais sel­va­gens das po­tên­cias do im­pe­ri­a­lismo e da pi­ra­taria in­ter­na­ci­onal en­quanto estes, en­vol­vidos numa luta mortal entre si, se mos­trassem pa­ra­li­sados na ofen­siva contra a Rússia. E assim co­meçou o pe­ríodo que se apre­senta, agora, di­ante dos nossos olhos».

A guerra de novo

O Con­gresso, fi­nal­mente, ra­ti­ficou o Tra­tado de Paz já as­si­nado em Brest-Li­tovsk, como vimos, e re­co­nheceu como cor­rectos os actos do Co­mité Cen­tral Exe­cu­tivo e do Con­selho dos Co­mis­sá­rios do Povo con­si­de­rando im­pe­ra­tivo que se or­ga­ni­zassem todas as forças do povo tra­ba­lhador para que o po­ten­cial de­fen­sivo do país fosse res­ta­be­le­cido. E con­cluiu por apontar a ne­ces­si­dade ab­so­luta de que o po­derio mi­litar russo fosse re­cu­pe­rado na base de uma mi­lícia so­ci­a­lista e do ser­viço mi­litar obri­ga­tório para todos os jo­vens de ambos os sexos. As cir­cuns­tân­cias, como era evi­dente, cri­avam con­di­ções di­fí­ceis para aqueles que não con­cor­davam com Brest-Li­tovsk. Bu­ka­rine, assim, re­cusou o lugar no CC do Par­tido para que fora eleito pelo Con­gresso e os Co­mis­sá­rios do Povo Smirnov, Obo­lensky e Ya­ko­vleva de­mi­tiam-se dos im­por­tantes cargos que de­sem­pe­nhavam como mem­bros do go­verno so­vié­tico e do Con­selho Su­premo para os As­suntos Eco­nó­micos. Eram os ‘co­mu­nistas de es­querda’ a quem Lé­nine ca­ta­lo­garia como des­leais, de «ca­ma­radas que pre­pa­ravam a di­visão do Par­tido». O poder so­vié­tico, em fins de Março de 1918, não podia mais manter a na­tu­reza re­la­ti­va­mente de­mo­crá­tica que o ca­rac­te­ri­zara desde os pri­meiros tempos. Tinha uma guerra civil a gerar-se no in­te­rior do país, uma in­vasão es­tran­geira às portas, uma crise eco­nó­mica ge­ne­ra­li­zada e, agora, a di­la­ce­rante ameaça de uma pro­funda rup­tura entre os pró­prios bol­che­vi­ques en­quanto a tão es­pe­rada re­vo­lução do pro­le­ta­riado dos países im­pe­ri­a­listas co­me­çava a não pa­recer mais do que uma ilusão pe­rante in­con­tor­ná­veis re­a­li­dades.

No CC do Par­tido, reu­nido em exaus­tivas ses­sões cons­tantes, as opi­niões di­vi­diam-se, do­lo­ro­sa­mente. Com Lé­nine quase sempre mi­no­ri­tário mas cons­tan­te­mente per­su­a­sivo dado servir-se da con­vin­cente arma da re­a­li­dade, vo­tavam, nor­mal­mente, Sver­dlov, Zi­no­viev, Smilga, Sta­line e, ainda que nem sempre, Dzer­zinski e Trotsky. Mas este, atin­gido pelos ventos da con­tra­dição, re­petia-se: «Quando me abs­tenho, faço-o como forma de apoio às re­so­lu­ções em causa. Não de­sejo agir de forma que a uni­dade do Par­tido seja pre­ju­di­cada». O im­pru­dente Ni­kolai Iva­no­vitch Bu­ka­rine, ainda que teó­rico bri­lhante, vo­tava, in­va­ri­a­vel­mente, contra Lé­nine. Co­me­çamos a co­nhecê-lo: co­mu­nista ‘de es­querda’, sur­girá mais tarde como co­mu­nista ‘de di­reita’.

A guerra batia à porta da jovem Re­pú­blica fun­dada pelo pro­le­ta­riado de Pe­tro­grado. Quando o ataque ja­ponês a Vla­di­vostok se tor­nava óbvio, Lé­nine, a 7 de Abril de 1918, en­viava o te­le­grama se­guinte aos ca­ma­radas de­fen­sores do poder so­vié­tico no Ex­tremo Ori­ente: «Con­si­de­ramos a si­tu­ação como ex­tre­ma­mente séria e en­ten­demos avisar-vos, ca­te­go­ri­ca­mente. Não te­nhais ilu­sões. Ine­vi­ta­vel­mente, os ja­po­neses vão atacar. Sem ex­cepção, todos os países do im­pe­ri­a­lismo os au­xi­li­arão. E, de aí, a ne­ces­si­dade de vos pre­pa­rardes sem qual­quer de­mora para todos os es­forços. Deve prestar-se a maior atenção à forma como a vossa pos­sível re­ti­rada venha a ser efec­tuada, assim como à re­moção de tudo o que exista de valor em ar­ma­zéns e, par­ti­cu­lar­mente, ma­te­rial cir­cu­lante fer­ro­viário, lo­co­mo­tivas, car­ru­a­gens e ou­tros. Não es­ta­be­leçam ob­jec­tivos ir­re­a­li­zá­veis. Pre­parem-se para sa­botar e fazer ex­plodir as li­nhas dos ca­mi­nhos-de-ferro. Es­ta­be­leçam campos de minas à volta de Ir­kutsk e por toda a zona do Trans­baikal».