A despedida

Francisco Mota

Para o Zé Ca­sa­nova, porque sim e pelos muitos anos de ca­ma­ra­dagem, res­peito e ami­zade (Couço-Lisboa)

 

Sim, Sofia, este nosso jantar é de des­pe­dida. Desde há muito tempo que esta ideia foi cres­cendo na minha ca­beça e agora está de­ci­dido. Co­nhe­cemo-nos a fugir da po­lícia numa ma­ni­fes­tação de es­tu­dantes, quando eu te puxei para dentro duma porta aberta, que fe­chámos, e su­bimos por umas es­cadas até tudo se acalmar. O medo e a so­lidão da­quela es­cada fez com que nos apro­xi­más­semos tanto que nos to­cá­vamos. Pou­saste a tua ca­beça no meu ombro e ali fi­cámos um bom bo­cado. Pas­sámos a andar sempre juntos, apesar de que eu es­tava em en­ge­nharia no Téc­nico, no 3.º ano e tu teres aca­bado de en­trar para di­reito na Ci­dade Uni­ver­si­tária. Numa tarde em que fi­cámos so­zi­nhos na casa do nosso amigo Jaime, bei­jámo-nos fu­ri­o­sa­mente e aca­bámos na cama dele. Foi a pri­meira vez que fi­zemos amor tanto eu, como tu, porque os dois éramos vir­gens. De­pois por causa da tropa em An­gola e da mu­dança dos nossos ritmos de vida, afas­támo-nos e quando voltei soube que te ti­nhas ca­sado e ti­nhas um filho. Já eras ad­vo­gada. (Es­tamos em Évora na Tasca do Oli­veira, um pe­queno e ex­tra­or­di­nário res­tau­rante. O Oli­veira, que co­nheço há mais de 30 anos traz-nos as me­lhores pa­ta­niscas do mundo, finas, es­ta­la­diças, se­qui­nhas e quentes). Dei­xámos de ver-nos, até que um dia saindo do Ci­nema São Jorge, de­pois de ver um filme do An­to­nioni ou do Ber­to­lucci, re­pa­raste em mim e apro­xi­maste-te a sorrir. Sim, é ver­dade, re­parei em ti e vi que apesar de ves­tido in­for­mal­mente con­ti­nu­avas a ser o tipo ele­gante de que eu me tinha apai­xo­nado uns anos atrás. A tua cara foi de sur­presa total, até de in­cre­du­li­dade, mas bei­jámo-nos ci­vi­li­za­da­mente. De­ci­dimos ir tomar qual­quer coisa e en­trámos na Riba D’Ouro logo abaixo do Ci­nema. Be­bemos cer­veja e fa­lámos du­rante mais de duas horas. Con­támo-nos as nossas vidas e soube que não te ti­nhas ca­sado, nem saías com nin­guém. Não me qui­seste contar por quê. Com­bi­námos que nos ve­ríamos de vez em quando e tro­cámos te­le­fones. Quando nos se­pa­rámos e aquele olhar ficou no ar, soube que ainda gos­tava muito de ti. (O Oli­veira trouxe os pe­zi­nhos de co­en­trada e a canja de pombo. Serviu-nos e re­tirou-se). Brin­demos, Sofia, com um tinto alen­te­jano bem en­cor­pado e peço-te que te lem­bres quando te obri­guei a ler o livro do Vás­quez Mon­tálban, «Re­ceitas Imo­rais», em que dá uma re­ceita e de­pois faz o co­men­tário sobre com quem se deve comer aquele prato e das con­sequên­cias pre­vi­sí­veis. Pois eu acho que era capaz de es­crever o co­men­tário dele sobre esses pe­zi­nhos que es­co­lheste: «prato mais que imoral, to­tal­mente pe­ca­mi­noso, porque a ge­la­tina de que se compõe dá voltas na boca numa união total com o pa­lato e a língua. Apa­ren­te­mente sa­bo­re­amos os pe­zi­nhos e os co­en­tros, mas na re­a­li­dade re­cor­damos os longos e pro­fundos beijos que se dão ou deram em que é im­pos­sível saber de quem é esta língua ou estes dentes. Deve ser co­mido por gente a partir dos 50 anos, com bas­tante ex­pe­ri­ência ama­tória prévia». Acho que tens toda a razão e rio-me com as tuas te­o­rias gastro-amo­rosas, mas tens razão. Nós sa­bemos que tens razão. Lembro-me que te te­le­fonei para casa e me dis­seste que ti­nhas aca­bado de chegar de uma obra. Só ti­nham pas­sado três dias, mas eu ne­ces­si­tava ver-te. Le­vaste-me a comer peixe, só gre­lhado sem ar­ti­fí­cios, e es­tava ner­vosa porque não havia ne­nhuma razão para tanta pressa. De­cidi passar-te o pro­blema para ti e per­guntei-te porque não te ti­nhas ca­sado. A tua res­posta foi clara e de­mo­li­dora. Dis­seste que ti­nhas en­con­trado al­guma moça bo­nita, sim­pá­tica e in­te­li­gente, que sa­bias que gos­tava de ti, mas que no meio da even­tual re­lação sempre te apa­recia a minha cara e dei­xavas tudo. Sim, foi assim e disse-te que te res­pei­tava, mas que con­ti­nuava a amar-te como no prin­cípio. Tu fi­caste muito ner­vosa e muito bai­xinho fa­laste: eu também te amo mas não sou capaz de romper com a minha fa­mília e com as pes­soas que me ro­deiam. Com­pre­endo e aceito, mas eu serei como o per­so­nagem do livro do Garcia Mar­quez «O amor em tempos da có­lera», que es­perou toda a vida até que a sua amada, que também sempre o amou, pu­desse reunir-se com ele. Por isso, não me ca­sarei e es­pe­rarei até que tu possas cum­prir o nosso sonho. De­pois desta con­versa pas­samos a ver-nos quase todas as se­manas, vi­vemos o nosso amor du­rante de­zenas de anos e éramos pro­vi­so­ri­a­mente fe­lizes. (en­tre­tanto o Oli­veira chegou-se à mesa e per­guntou se tudo es­tava bem e eu pude elo­giar o tenro pombo e o seu caldo su­blime e tu dis­seste-lhe que nunca ti­nhas co­mido uns pe­zi­nhos de co­en­trada tão bons). Antes de tudo isto eu, que já era do par­tido, levei-te co­migo para a luta séria, di­fícil e pe­ri­gosa. Mos­traste qua­li­dades, in­te­li­gência e ca­pa­ci­dade, pelo que te con­videi a en­trar no par­tido, com muito fas­cismo ainda pela frente. Es­tá­vamos juntos em tudo. Quer na clan­des­ti­ni­dade, quer de­pois do 25 de abril, tu ad­vo­gada de fa­mília, par­ti­ci­paste em muitas or­ga­ni­za­ções e lu­taste muito, quer nos mo­mentos maus como nos bons. Cada vez eras mais con­si­de­rada e eras in­can­sável. Eu também lutei muito, mas de ma­neira di­fe­rente, em coisas mais prá­ticas, mesmo se al­gumas eram muito im­por­tantes. Ajudei a cons­truir de­zenas de Cen­tros de Tra­balho e muitas ou­tras coisas, mas era di­fe­rente de ti. Um dos mo­mentos mais belos que tenho da nossa vida, foi num con­gresso do par­tido, em que os dois éramos de­le­gados, eu votei para que tu fosses eleita para o co­mité cen­tral. E lá estás. Chorei sen­tado no meu lugar, longe de ti, mas tu viste-me. Agora és uma re­fe­rência dentro e fora do par­tido. Eu estou can­sado. Não tenho pa­ci­ência para ouvir o anal­fa­beto do Ca­vaco, os ig­no­rantes e ven­didos tipos do go­verno, os cho­ni­nhas do PS, fi­lhos da mesma mãe que os do go­verno, o te­le­di­ri­gido desde longe Mário So­ares, a cam­bada de chupa gor­jetas, que, como as moscas ro­deiam o poder, a elite de pa­trões que mandam neste país desde o tipo do Je­ró­nimo Mar­tins até ao rapaz do Norte Bel­miro e ao rei da rolha, ban­queiro e ven­dedor de ga­so­lina Amorim e menos pa­ci­ência tenho para ver a cara dos ex, tipo Mário Lino ou Pina Moura, cuja ide­o­logia muda com um lugar de mi­nistro num go­verno in­fecto ou em vá­rios con­se­lhos de ad­mi­nis­tração. (O Oli­veira trouxe-nos uma en­char­cada e duas co­lheres). Por tudo isto amiga que­rida, meu amor, hoje des­peço-me de ti e co­meço uma vi­agem para longe onde eu não en­tenda o que dizem, não tenha te­le­visão e possa dormir em paz. Às vezes sinto-me um de­sertor da luta, um egoísta, nunca serei dos que Brecht dizia «e há os que lutam toda a vida, os im­pres­cin­dí­veis», mas re­al­mente só estou a de­fender a minha saúde. Estes tipos, que eu não sou capaz de matar, vão-me matar a mim se não fujo. A minha ca­beça re­benta. Peço-te que me en­tendas. Irei es­trada fora, até en­con­trar um sítio, onde me possa en­con­trar a mim. Não aban­dono o par­tido, uma das mi­nhas ra­zões de viver, sei e vejo que muitos jo­vens ocupam os novos cargos de res­pon­sa­bi­li­dade, e fico feliz. Nós já fi­zemos isso quando éramos da sua idade, mas eles estão mais bem pre­pa­rados. Não te deixo, nunca te po­derei deixar, és o amor de uma vida in­teira e quando tu de­cidas vol­tarei ime­di­a­ta­mente, vi­ve­remos juntos, mesmo se já formos ve­lhos. Es­ta­remos em con­tacto. Conta-me tudo. Mas para onde vais? Não sei, já pensei muitos sí­tios, al­guns que me pa­re­ciam bons estão muito longe do mar e eu sem peixe não posso viver. Talvez ex­pe­ri­mente a costa Sul da Si­cília. Se ficar aí, dir-te-ei. (ao sair disse ao Oli­veira: vou de­morar um tempo largo a voltar aqui, porque vou co­meçar uma vi­agem de anos. De­sejo-lhe fe­li­ci­dades e beije por mim as mãos da sua mu­lher e co­zi­nheira ex­ce­lente D. Ca­ro­lina. Notei-lhe um leve rasgo de emoção). Saí e Sofia es­pe­rava-me no pas­seio, ca­mi­nhámos uns me­tros com as mãos abra­çadas e na Praça do Te­atro Garcia de Re­sende pa­rámos, bei­jámo-nos e foste para o teu carro. Vi-te partir e fi­quei so­zinho na Praça.

Não havia nin­guém na rua. Só si­lêncio.

 



Mais artigos de: Argumentos

Noventa e seis anos

Como sabemos, como não esquecemos, foi há noventa e seis anos que numa Rússia feudal, despótica, semibárbara na esmagadora maioria do seu território, eclodiu uma revolução que viria condicionar decisivamente a História do mundo e o percurso dos povos....