- Nº 2093 (2014/01/9)

A Hora das Gaivotas

Em Foco

de João Monge


Em todas as casas há um coração suspenso

e uma janela sobre o mar

As crianças recolheram a casa

e o mar, sempre o mar, estende as longas crinas

de cavalo azul nas paredes de pedra

 

É noite

É a espada líquida da noite

 

Chicharro com pão dormido, camarada

pão dormido

 

As gaivotas ensaiam o voo tresloucado

dos papagaios de papel

Parecem ter medo de poisar,

de dar descanso ao seu coração suspenso:

O medo de calar por dentro

 

– … e rabanadas com três dias

Tudo nos serve para medir o tempo

Eles não sonham

 

É a mais líquida de todas as noites

Nada se conforma no seu próprio destino:

As casas,

O mar,

As gaivotas,

Os homens…

 

Tudo parece convergir para o ninho inevitável

onde todas as coisas regressam à sua razão de ser:

A Liberdade

(A Patética de Tchaikovsky escorre de um velho gira-discos para as paredes do

refeitório)

É tão louco este mundo, camarada

1893, 1893. O ano da Patética, o ano do Grito de Edvard Munch

O maior grito da humanidade

O inexplicável grito de todos nós

Em todas as casas há um coração suspenso

e uma janela sobre o mar

As crianças recolheram a casa

e, protegidas pelos pais,

adivinham por detrás das cortinas

um sinal que dê sentido a tudo

Ninguém sabe o que espera

mas toda a gente espera em silêncio

É como se a terra soubesse

que há dias em que o mundo tem de ser redondo

3 de Janeiro de 1960

Às sete em ponto da tarde

Adagio–Allegro non troppo

Nada me passa na garganta, só um grito mudo…

A estrada ainda está deserta, nem uma luz…

Mas ele há-de vir!

Somos 10, estamos contados

Contemo-nos de novo:

Álvaro,

Jaime,

Joaquim,

Carlos,

Francisco,

José,

Guilherme,

Pedro,

Rogério,

Francisco.

E eu, e tu, e quem atrás de nós vier

E todos os que hão-de nascer

Com uma côdea no céu-da-boca

É por isso que o mar espalha a sua toalha bordada

na praia, aos nossos pés

para, da sua eterna sabedoria, nos prendar com a nossa igualdade

Allegro com grazia

Pai, olha aquele carro, olha aquele carro

Apaga a luz, apaga a luz…

Vem com a mala aberta, devagarinho, devagarinho…

Vem do lado das docas…

Pai, repara, as gaivotas pousaram todas…

– … e parou em frente ao forte

É a hora das gaivotas

É a hora das gaivotas

O homem está a sair do carro, pai…

Sim. Vai fechar a mala, certamente…

Olha, as gaivotas, com o som da mala a fechar, levantaram voo novamente

São misteriosas as campainhas do destino

Allegro molto vivace

Em todas as casas há um coração suspenso

pelo medo e pela saudade

e uma boca amarrada às paredes cegas

Francisco, rasga esses lençóis

que nos fizeram para sudários.

Todas as palavras são medidas

como as sardinhas

e quase nunca é domingo

Vá, tu sabes dar os nós de pescador

Une as tiras e dá-lhes um nó no meio

para que as mãos encontrem mais firmeza

A terrina ocupa o centro da mesa

as crianças são servidas primeiro

Apenas o tilintar das colheres

abre feridas no silêncio das casas

E as côdeas de pão dormido

quando estalam no céu-da-boca

Somos 10, estamos contados

A corda tem de servir 10 vezes, camarada

O jantar é em silêncio

Mas quando o cavalo azul galopa pelas muralhas

ouve-se a sua pulsação

a estalar o coração das gentes

Pai, posso ir à janela?

O carro já se foi embora. Não há nada para ver. Acaba a sopa

Há, pai! As gaivotas não se calam

E as ondas batem sem conta certa

Deixa-me apagar a luz…

Pai, passaram dois carros grandes mesmo agora. Um seguiu em frente e o

outro está parado à porta da vizinha com as luzes apagadas

Esperam alguém. É gente de bem

Finale — Adagio lamentoso

Não olhes para baixo, camarada

E o mar, sempre o mar, estende as longas crinas

de cavalo azul nas paredes de pedra

Pai, há uma corda a baloiçar na parede do forte…

Em todas as casas há um coração suspenso

e um lugar vazio à mesa

Isso, conta os nós… tu sabes a conta certa

Não olhes para baixo

Pai, o homem pôs o carro a trabalhar…

Os gritos das gaivotas cobrem com um véu de tule

os ruídos dos ossos contra as pedras

É a natureza do lado certo

Pai, outro homem… e outro… e outro…

É o medo contaminado pela esperança

e a espada líquida da noite virada de feição

Pai, ajuda-me… não entendo, não entendo…

É a hora das gaivotas, meu amor!

Poema (magistralmente) lido pela actriz Maria João Luís na recriação da fuga de 3 de Janeiro de 1960, realizada junto ao Forte de Peniche precisamente 54 anos depois.