Diferenças

Correia da Fonseca

Foi, na RTP1, uma re­por­tagem acerca de duas es­colas pú­blicas. A ava­liar pelos re­sul­tados de exames na­ci­o­nais do 12.º ano, aceites aliás como in­di­ca­dores se­guros ou pelo menos aten­dí­veis, uma dessas es­colas seria a me­lhor do País ao passo que a outra seria a pior. A re­por­tagem foi ver de perto e tanto quanto pos­sível por dentro o que po­deria ex­plicar tão abissal di­fe­rença entre duas es­colas por­tu­guesas, ambas fre­quen­tadas por jo­vens por­tu­gueses e re­gu­ladas por normas ema­nadas do mesmo Mi­nis­tério. Co­meçou por nos in­formar dos lu­gares onde se si­tuam uma e outra: fi­cámos a saber que a me­lhor das es­colas é de Coimbra e a pior é do Bar­reiro, lo­ca­li­za­ções di­fe­rentes que talvez possam su­gerir uma pri­meira in­di­ci­ação de causas, pelo menos a um nível quase sim­bó­lico, pois bem se sabe que Coimbra é «ci­dade de dou­tores», e ainda bem, ao passo que Bar­reiro tem a re­pu­tação de ser so­bre­tudo terra de gente de tra­balho duro e mal pago, e ainda mal. É claro que esta ca­rac­te­ri­zação é es­que­má­tica e con­ven­ci­onal, que «vale o que vale», como é uso dizer-se das son­da­gens de opi­nião, e que se terá tor­nado ob­so­leta no de­curso de dé­cadas trans­cor­ridas, mas ainda assim é capaz de conter al­guma ver­dade. De­pois, a re­por­tagem in­formou-nos das de­sig­na­ções das duas es­colas, sendo que a de Coimbra, a me­lhor do País, é a Es­cola In­fanta D. Te­resa, e a do Bar­reiro, a pior, é a Es­cola de Santo An­tónio, sendo le­gí­timo pre­sumir que a In­fanta foi se­nhora de teres, ha­veres e sangue azul, ao passo que o santo foi um po­bre­tanas, frade fran­cis­cano com muitas vir­tudes, sim, mas tão es­casso êxito so­cial que um dia se viu re­du­zido à ne­ces­si­dade de pregar aos peixes por au­sência de mais qua­li­fi­cada au­di­ência. Dir-se-ia que até em ma­té­rias do en­sino pú­blico há de­sig­na­ções que in­dicam ca­mi­nhos para que en­ten­damos por dentro o que as coisas são.

A lição omissa

Pas­semos, porém, para dados mais con­cretos. Se­gundo a re­por­tagem, uma grande parte das alunas e dos alunos da Es­cola In­fanta D. Te­resa chega aos por­tões da es­cola em au­to­mó­veis con­du­zidos por pais ou mães, e em grande parte au­to­mó­veis de bom preço. Logo a se­guir, disse-nos que os tais pais e mães são mai­o­ri­ta­ri­a­mente se­nhoras e ca­va­lheiros com for­mação su­pe­rior e pro­fis­sões a con­dizer: mé­dicos, ad­vo­gados, eco­no­mistas, ges­tores de boas em­presas. Dos pais e mães dos alunos da Es­cola de Santo An­tónio não nos disse muita coisa, re­cordo a in­for­mação de boa parte deles serem de etnia ci­gana de­certo com ní­veis de vida a con­dizer ou de origem afri­cana. Desta di­fe­rença de­correm con­sequên­cias im­por­tantes para o de­sem­penho es­colar dos fi­lhos: os pais com es­co­la­ri­dade su­pe­rior acom­pa­nham a tra­jec­tória es­colar dos ga­rotos, apoiam-nos no es­tudo em casa, pagam-lhes ex­pli­ca­dores, ao passo que os fi­lhos de gente sem es­tudos nem posses ficam en­tre­gues a si pró­prios, o que muitas vezes sig­ni­fica que não ficam bem en­tre­gues. A re­por­tagem abordou ainda ou­tros as­pectos, de­sig­na­da­mente a di­fe­rença entre os es­ta­be­le­ci­mentos co­mer­ciais fre­quen­tados pelos alunos da «In­fanta D. Te­resa», gé­nero ca­te­drais de con­sumo, e pelos alunos da «Santo An­tónio», mais do tipo lo­jeca da es­quina em bairro pobre. En­tenda-se que nada disto sig­ni­fica que todos os alunos da es­cola dita «me­lhor» te­nham as­se­gu­rado êxito es­colar e que todos os da es­cola «pior» es­tejam de an­temão con­de­nados ao fra­casso: a re­por­tagem até des­tacou o caso de um aluno da Santo An­tónio, jovem de as­cen­dência afri­cana, que não apenas tem bom apro­vei­ta­mento como até mantém o sonho de vir a ser mé­dico neu­ro­ci­rur­gião. Mas é claro que mesmo uma even­tual ex­cepção não in­va­li­daria a regra geral: os me­ninos de fa­mí­lias po­bres estão ten­den­ci­al­mente con­de­nados a pior apro­vei­ta­mento, os me­ninos de fa­mí­lias bem ins­ta­ladas na so­ci­e­dade têm con­di­ções de êxito es­colar, uns e ou­tros «fa­zendo» a di­fe­rença entre «a me­lhor» e «a pior» das es­colas pú­blicas do País. En­tre­tanto os anos irão passar e, se nada de subs­tan­cial se al­terar, os me­ninos da Es­cola In­fanta D. Te­resa e de ou­tras es­colas que pela frequência se lhe as­se­me­lham irão in­te­grar a re­no­vada ge­ração da classe não apenas do­mi­nante, mas também de facto be­ne­fi­ciária da ex­plo­ração dos ac­tuais me­ninos po­bres. Sendo essa, ainda que omissa, a grande lição da re­por­tagem.




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