A ciência deve ser totalmente independente de outros interesses. É uma premissa comum e aceite como natural dentro da comunidade científica. Os poderes políticos e económicos das sociedades cumpriram diferentes papéis ao longo dos tempos na manipulação da ciência de acordo com determinados interesses. Recordemos o papel do fascismo em Portugal ao empolar os pseudo-estudos sobre as comunidades das ex-colónias com o objectivo de legitimar a sua dominação. Hoje, a crise estrutural do capitalismo está a dar espaço para o retrocesso ao nível dos direitos económicos, políticos, sociais e culturais. A ciência e a sua independência criativa e livre está hoje a ser posta em causa pelos poderes político-económicos dominantes, ao tentar-se instituir um paradigma de ciência mercantil, vendável e lucrativa.
Na semana passada tivemos a notícia da redução das bolsas de doutoramento da FCT em 50% e em 70% das bolsas de pós-doutoramento. Dos 3416 candidatos para bolsas de doutoramento, só 298 receberam a bolsa. Só 233 de 2305 cientistas candidatos receberam bolsa de pós-doutoramento. Falamos de milhares de candidatos que não têm agora qualquer forma de sustento. Milhares de projectos individuais e projectos colectivos que não irão ser realizados. Muitos centros de investigação ficarão esvaziados do enorme potencial de massa crítica e de trabalhadores que, em muitos casos, garantiam o funcionamento destes centros. Alguns emigrarão para países onde serão bem acolhidos. Outros mudarão de área, desperdiçando todo o investimento que fizeram e que o País fez na sua qualificada formação. Como foi dito esta semana pelo vice-reitor da Universidade de Aveiro, José Fernando Mendes, é muito provável que o País acabe por perder cerca de 80% dos investigadores que formou e financiou durante todos estes anos. E em nome de quê?
Em nome da promoção da ideia do «investigador excepcional» e da «competitividade internacional». Miguel Seabra, o presidente da FCT disse, em entrevista ao Público, que a ciência entra agora na fase da «competitividade internacional» e que «as pessoas estavam habituadas a uma taxa de sucesso da ordem dos 40% e agora têm taxas de 15% de aprovação dos projectos científicos e de 10% nas candidaturas a bolsas individuais». É, portanto, o Governo da aposta no mérito e na excelência e da depuração de milhares de investigadores que, segundo o Governo, não apresentam projectos de qualidade de acordo com os seus objectivos e prioridades. Prioridades que, aliás, o presidente da FCT também definiu – o lançamento de programas doutorais em ambiente empresarial e as parcerias americanas com instituições como o MIT «que juntam universidades e empresas para resolver problemas concretos» (portanto, as parcerias público-privadas, tendo em conta o «interesse supremo» das segundas, na concepção dos nossos governantes). A ciência que não se enquadre no âmbito empresarial (e, provavelmente, lucrativo) não tem utilidade para este Governo. É um governo ignorante que se arroga ao direito de decidir o que deve ser investigado. E já avisou: «há centros que não são competitivos e vão deixar de ter financiamento significativo». E, pronto, ditou o fim de dezenas de centros de investigação que são muitas vezes fundamentais para desenvolver regiões mais deprimidas. Assim, sem mais.
Não se pense que este conceito «depurador» e anti-democrático do que a ciência deve ser é originalidade do governo português. O Horizonte 2020 – o Programa-Quadro de Investigação e Inovação da UE para 2014-2020 – centra a decisão da atribuição dos fundos, sobretudo, nos critérios da «Excelência Científica» (32% do total de 77 mil milhões de euros) e da «Liderança Industrial» (22% do total do financiamento) que premeia os projectos que «perfilhem uma melhor exploração do potencial económico e industrial das políticas de inovação, investigação e desenvolvimento tecnológico» (a grande indústria europeia, lucrativa, será aqui obviamente beneficiada). O PCP votou, em Dezembro passado, no Parlamento Europeu, contra este Programa. Não porque não queiramos que os fundos comunitários possam ser canalizados para a ciência e investigação, mas porque, como bem dissemos em Declaração de Voto, discordamos dos «objectivos e critérios de financiamento, orientados de acordo com os interesses económicos, do mercado e da indústria, em detrimento de uma investigação em prol do progresso da ciência pela ciência, de apoio às políticas públicas e para o desenvolvimento da sociedade». Ora aí está o nosso Governo a seguir submissamente as directrizes europeias, aquelas que certamente não servirão o nosso País. É preciso que toda a comunidade científica se una contra este assassinato da ciência, que é também uma afronta directa à criação e liberdade de todos nós.