As portas que Ary abriu

Nuno Gomes dos Santos

Es­crevo a a 18 de Ja­neiro de 2014, dia em que faz 30 anos que morreu José Carlos Ary dos Santos.

Es­crevo do­lo­rido. Es­crevo ad­mi­rando. Es­crevo agra­de­cido. O Zé Carlos foi o que toda a gente diz que foi e eu digo que foi tudo isso e o que ainda é. O Zé Carlos foi o “poeta do povo”, se­gundo ele afir­mava, con­victo? Foi, porque mais ne­nhum poeta soube estar, com pa­la­vras por­ven­tura menos ca­lhadas a cor­nu­có­pias de es­cul­turas de fra­se­o­logia, a re­gras mi­ni­ma­mente ad­mis­sí­veis pelos ca­te­drá­ticos das rimas es­plen­do­rosas e a ex­perts do que deve ser es­crito na ta­buada dos po­etas ino­va­dores e ir­re­du­tí­veis, ao lado do povo e a ser en­ten­dido, sem má­cula, por ele.

E eu con­tinuo a dizer que é. O Zé Carlos foi quem me en­sinou a es­crever as pa­la­vras mais claras, mais amigas, mais so­li­dá­rias? Foi. Não só a mim como a ou­tros que se atre­veram a es­crever du­rante e de­pois dele. O Zé Carlos foi quem fe­cundou as mi­nhas pri­meiras frases ri­madas e com­pro­me­tidas, e as do Jo­a­quim Pessoa, e as do “Adeus Tris­teza” do Tordo, e muitas do Zé Jorge Le­tria? Foi.

O Zé Carlos foi quem, em cima de um palco, na pe­numbra de um es­cri­tório, no guar­da­napo de um res­tau­rante fre­quen­tado por vip ou com­par­ti­lhado por ope­rá­rios ou ma­ri­nheiros, de­se­nhava pa­la­vras a que só as­cen­demos de­pois de lê-las e que, num tempo adi­ante, ten­tamos igualá-las.

Mas foi mais. Foi um homem que se com­pro­meteu com a jus­tiça de exis­tirmos e sermos pes­soas de corpo in­teiro, dignas, de ca­beça er­guida, ope­rá­rios, cam­po­neses, mi­neiros, li­cen­ci­ados ou li­vreiros, gente do povo e, qual­quer um exem­plar dessa gente, de nós, do povo que somos, me­re­ce­dora da vida que ele sentia estar a ser, por um lado, de­fen­dida e, por outro, de­frau­dada, posta de lado, mi­ni­mi­zada pela fi­lo­sofia mer­can­ti­lista de quem olha para nú­meros de dever sem ter em conta os dí­gitos de quem, desse dever, me­rece mais do que a es­mola do haver, de ser prenda das mi­ga­lhas de quem de­cide o nosso pre­sente, o nosso fu­turo, o pre­sente e o fu­turo dos que de­pois de nós virão.

Dirão que exa­gero. Porém, o Zé Carlos não con­cor­daria. Em sua casa ca­biam po­etas, es­ti­va­dores, ac­tores, jor­na­listas, es­cri­tores, pe­dreiros, ho­mens de barba rija, mu­lheres de capa de re­vista, fa­distas, sen­deiros. Todos, de uma ma­neira ou de outra, em busca da sua fe­li­ci­dade e da fe­li­ci­dade dos ou­tros, desses todos que fre­quen­tavam a Rua da Sau­dade, mo­rada do Zé Carlos Ary, homem de pa­la­vras, mesmo que na apro­xi­mação es­tu­da­da­mente se­du­toras, mas homem de pa­lavra a dizer Aqui estou!, Sou assim!, in­teiro, as­su­mido, so­li­dário, amante, terno, so­nhador dos tempos afá­veis e acon­che­gantes que hão-de vir porque virão, a dar-nos o chão que pi­samos e é nosso, a mesa que com­par­ti­lhamos e é nossa. Ou, Zé Carlos, meu amigo, o vinho que be­bemos e é nosso.

Por muitos anos que viva, por muitos amigos que tenha, nunca abra­çarei nin­guém como te abraço a ti, com­pa­nheiro, amigo, ca­ma­rada, meu irmão de pa­la­vras e de so­nhos.




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