Uma feira americana

Correia da Fonseca

Ou­tros, muito me­lhor que eu e dis­pen­sando o es­tí­mulo das quo­ti­di­anas im­pos­turas te­le­vi­sivas que me mo­tivam, es­cre­verão acerca da cri­mi­nosa pro­vo­cação euro-ame­ri­cana na Ucrânia. Por mim, opto por re­gistar nesta dupla co­luna a pro­moção nos di­versos ca­nais da te­le­visão por­tu­guesa da cha­mada «Festa dos Óscares», isto é, a pre­ten­sa­mente faus­tosa en­trega dos pré­mios anuais de­ci­didos pela Aca­demia de Artes e Ci­ên­cias Ci­ne­ma­to­grá­ficas norte-ame­ri­cana. Não re­sisto à ten­tação de su­bli­nhar, de pas­sagem, a pre­sunção um pouco pa­cóvia da de­sig­nação do or­ga­nismo que de­cide os pré­mios, coin­ci­dente aliás com o am­bi­ente de luxo e de su­posta «high so­ciety» em que de­corre a ce­ri­mónia da en­trega, com os «black ties» dos ca­va­lheiros e os ge­ne­rosos ves­tidos de noite das damas. É, mais uma vez, uma certa ca­mada da so­ci­e­dade es­ta­du­ni­dense a querer es­quecer (e querer fazer-nos es­quecer) as ori­gens um pou­co­chinho reles dos fun­da­dores do país, a querer de­mons­trar que também é capaz de pro­duzir eventos de ele­gância e fausto. De qual­quer modo, é claro que a atri­buição de pré­mios aos me­lhores, aliás quase sempre es­co­lhidos com cri­té­rios de­fen­sá­veis que de­sem­bocam em re­sul­tados acei­tá­veis, não jus­ti­fica even­tuais hos­ti­li­dades ou grandes re­ti­cên­cias. Ou di­zendo talvez me­lhor: as re­ti­cên­cias, se por­ven­tura ad­mis­sí­veis, jus­ti­ficar-se-ão no que se re­fere à pro­jecção me­diá­tica que a atri­buição dos Óscares tem neste can­tinho da Eu­ropa e pro­va­vel­mente nou­tros lu­gares eu­ro­peus. Porque bem per­ce­bemos, é claro, que a cha­mada «festa dos Óscares» é uma es­pécie de feira de pro­moção de vendas com fre­quen­ta­dores em trajo de gala e a in­dis­far­çada am­bição de tudo pa­recer passar-se entre gente fina.

Con­tudo, ele existe

Ora aqui é que bate o ponto, perdoe-se o ple­beísmo uti­li­zado a pro­pó­sito de um evento tão ma­ni­fes­ta­mente dis­tinto: é que a di­li­gência dos di­versos media na co­ber­tura do acon­te­ci­mento antes, du­rante e de­pois da sua ocor­rência, re­sulta em mais um factor de es­ma­ga­mento do ci­nema pro­du­zido pela Eu­ropa na per­cepção do pú­blico que pre­fe­ren­ci­al­mente de­veria ser o seu, o eu­ropeu. É, na ver­dade, uma grande ope­ração de pro­moção pu­bli­ci­tária da in­dús­tria norte-ame­ri­cana nesta área, tão eficaz que por vezes até custa a crer que haja um ci­nema eu­ropeu, o que con­subs­tancia um fe­nó­meno de es­que­ci­mento co­lec­tivo que talvez ocorra so­bre­tudo no nosso País. Pessoa es­creveu um dia que Por­tugal é o rosto com que a Eu­ropa fita a Amé­rica, «fu­turo do pas­sado», mas isso foi na já dis­tante dé­cada de 30 do sé­culo XX, e agora talvez seja mais ade­quado dizer que Por­tugal é o con­junto de olhos e ou­vidos que, aten­tís­simos, es­peram que a Amé­rica (enfim, uma certa Amé­rica si­tuada a Norte do muro que a se­para da po­breza me­xi­cana) lhes dê as suas or­dens em vá­rios do­mí­nios e dis­ci­plinas, in­cluindo o con­sumo ci­ne­ma­to­grá­fico. Con­tudo, ainda que por vezes custe a crer, ele existe, um ci­nema eu­ropeu que na­tu­ral­mente é in­for­mado por uma visão eu­ro­peia, por um es­pí­rito eu­ropeu que apesar de tudo talvez ainda so­bre­viva a uma quase in­fec­ciosa con­ta­mi­nação ame­ri­cana, que abor­dará ques­tões eu­ro­peias. Talvez os mais ve­lhos se lem­brem mais vi­va­mente de um ci­nema eu­ropeu que em tempos nos vi­si­tava, que nos en­sinou al­guma coisa da Eu­ropa que então es­tava fora do nosso al­cance mas dava si­nais de existir. Havia então filmes eu­ro­peus nas salas de pro­jecção por­tu­guesas, o que pa­rece si­tuar-se agora num pas­sado ir­re­cu­pe­rável. Con­tudo, são fre­quentes os mo­mentos em que, ou­vindo certas de­cla­ra­ções ofi­ciais ou ten­den­ci­al­mente ofi­ci­osas, fi­camos à beira de uma re­flexão pa­re­cida com «tão eu­ro­peus que nós somos!» É um en­gano, não somos assim tão eu­ro­peus ex­cepto talvez em ma­téria de emi­gração for­çada. Aliás, não será um de­sa­fo­rado dis­pa­rate, talvez antes pelo con­trário, sus­tentar a sus­peita de que mesmo a Eu­ropa está bem menos eu­ro­peia do que seria de­se­jável, e de que para essa pos­sível perda de iden­ti­dade também a pro­moção con­subs­tan­ciada pelos Óscares dão a sua con­tri­buição. O que, en­tenda-se, não é razão para que os en­ca­remos como ini­migos. Mas talvez para que eles nos sejam mo­tivo de en­ten­di­mento e de even­tual re­flexão.




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