Obras

CHOPIN
Po­lo­naise, op.40, nº1, “Mi­litar”, em Lá Maior.

A forma mu­sical de­sig­nada por po­lo­naise (termo francês que de­signa o ser “po­laco”) tem ime­diata e pro­funda co­no­tação pa­trió­tica, pelo que não será de es­tra­nhar a es­colha desta obra para ini­ciar um con­certo evo­ca­tivo de um dos actos mais pa­trió­ticos da nossa his­tória: a Re­vo­lução dos Cravos. Na sua origem, bem re­cuada no tempo, a po­lo­naise é uma dança pro­ces­si­onal po­laca que tra­di­ci­o­nal­mente acom­pa­nhava ce­ri­mó­nias pú­blicas ou ca­sa­mentos, tendo muitas vezes uma com­po­nente vocal e po­dendo ser também uma peça ins­tru­mental. Com­posta por mú­sico po­laco com ape­lido tão afran­ce­sado como a pró­pria de­no­mi­nação da obra, esta peça es­pelha bem um mo­mento de par­ti­cular en­tu­si­asmo pa­trió­tico, sendo uma re­pre­sen­tação mu­sical da va­lentia da ca­va­laria da Po­lónia e da sua de­ter­mi­nação na de­fesa do solo pá­trio. Daí o facto de também ser cha­mada e co­nhe­cida por “Mi­litar”. É, por isso mesmo, uma cons­trução so­nora enér­gica, de grande pu­jança e bri­lhan­tismo, em que cada nota trans­mite um claro sen­ti­mento de op­ti­mismo.

Foram mui­tís­simos os com­po­si­tores que se de­di­caram à com­po­sição de po­lacas, desde Bach e Te­le­mann até Scri­abin. No en­tanto, ne­nhum outro con­tri­buiu tanto para a sua fama como Fre­deric Chopin, o que desde logo se com­pre­ende pelo facto de ser ele o mais no­ta­bi­li­zado com­po­sitor po­laco. Mas foi através do seu ins­tru­mento pre­di­lecto, o piano, que Chopin deu esse re­levo à po­lo­naise. Nem mesmo no caso ver­tente, em que o pro­pó­sito de enal­te­ci­mento pa­trió­tico e a di­mensão mar­cial pa­recia acon­se­lhar o re­curso a um vasto con­junto de ins­tru­mentos, a uma or­questra sin­fó­nica, nem mesmo isso de­moveu o com­po­sitor de se manter fiel ao seu ado­rado piano. Es­cu­tado o re­sul­tado es­té­tico com­pre­ende-se a opção. Mas o que ou­vi­remos no con­certo inau­gural da 38ª edição da Festa do Avante não é essa versão ori­ginal para piano solo, que Chopin criou pouco tempo antes da sua par­tida para Mai­orca na com­pa­nhia de Sand, local onde irá viver um mo­mento cru­cial da sua vida: aquele em que os mé­dicos da ilha lhe di­ag­nos­ti­caram tu­ber­cu­lose. É im­pres­si­o­nante o con­traste entre as duas po­lacas com­postas nessa época; o con­traste entre o já re­fe­rido op­ti­mismo trans­bor­dante da op.40, nº1 e o es­tado de es­pí­rito mu­si­cal­mente tra­du­zido na par­ti­tura da nº2 (há duas po­lo­naises com o mesmo nú­mero de opus), com­posta já de­pois do sur­gi­mento dos pri­meiros sin­tomas da do­ença fatal. A pas­sagem do modo maior para o modo menor  (to­na­li­dade de Dó menor, na nº2) é, só por si, um in­di­ca­tivo da pro­funda al­te­ração do es­tado de es­pí­rito do mú­sico. Acon­selho aos que de­sejem ser es­pec­ta­dores do con­certo da Festa do Avante que es­cutem antes a com­po­sição ori­ginal, re­cor­rendo a um re­gisto dis­co­grá­fico (uma edição em CD) ou então uti­li­zando mo­dernos meios in­for­má­ticos agora postos ao nosso dispor, como o You­Tube ou ou­tros sí­tios da In­ternet.

No início do sé­culo XX, 60 anos de­pois da morte de Chopin, coube ao com­po­sitor russo Gla­zunov a ta­refa de or­ques­trar a peça para piano. É essa versão para or­questra que será exe­cu­tada no con­certo. Isso aju­dará a me­lhor fruir o es­pec­tá­culo ao vivo.

Se a po­lo­naise tem, como vimos, uma li­gação um­bi­lical com a dança, foi também a dança que es­teve na origem do tra­balho de or­ques­tração de Gla­zunov. Tudo terá co­me­çado com o bai­la­rino e co­reó­grafo Mikhail Fo­kine, fi­gura mar­cante na re­no­vação do re­por­tório de bai­lado, que em 1907 tomou a ini­ci­a­tiva de co­re­o­grafar uma peça de Chopin (a Valsa, op.64, nº2), ofe­re­cendo-a ao ta­lento da ce­le­bér­rima bai­la­rina Anna Pa­vlova. In­cen­ti­vado pelo su­cesso ob­tido, Fo­kine uti­lizou ou­tras duas peças para piano do com­po­sitor po­laco, apre­sen­tando-as sob o tí­tulo Danses sur la mu­sique de Chopin (Danças ba­se­adas na mú­sica de Chopin) e des­ti­nadas agora a um corpo de ballet. Foi a partir destas ex­pe­ri­ên­cias que nasceu o bai­lado “Cho­pi­niana”, com 5 peças de Chopin or­ques­tradas por A. Gla­zunov. Teve es­treia em S. Pe­ters­burgo, no con­cei­tuado Te­atro Ma­ri­inski, a 19 de Fe­ve­reiro de 1909. Entre o pú­blico pre­sente es­tava Ser­guei Di­aghilev que logo de­cidiu levar o es­pec­tá­culo para Paris, para ser apre­sen­tado nos seus “Bal­lets Russes”. Foram acres­cen­tadas mais três or­ques­tra­ções de Gla­zunov e o es­pec­tá­culo es­treou no Te­atro do Châ­telet no dia 2 de Junho desse mesmo ano. Só que o tí­tulo “Cho­pi­niana” foi aban­do­nado, aca­bando por cair no es­que­ci­mento. Razão pela qual essa pro­dução de Di­aghilev, com mú­sica de Chopin or­ques­trada por Gla­zunov, co­re­o­grafia de Fo­kine e guarda-roupa e ce­no­grafia de Ale­xe­andre Be­nois é hoje mun­di­al­mente co­nhe­cida pelo nome com que então foi bap­ti­zada, na Ci­dade Luz: Les Sylphides.

A or­ques­tração da po­lo­naise op.40, nº1, cor­res­ponde à pri­meira parte do bai­lado em um acto Les Sylphides, mas em al­gumas pro­du­ções mais re­centes tem vindo a ser subs­ti­tuída por outra peça da au­toria de Chopin – o Pre­lúdio em Lá maior.

 

BE­ETHOVEN
Sin­fonia nº3, op.55 – 1º An­da­mento

Como tem sido as­si­na­lado pela ge­ne­ra­li­dade dos his­to­ri­a­dores e mu­si­có­logos, a ter­ceira das nove sin­fo­nias com­postas por Be­ethoven re­pre­senta um ponto de par­tida; ou seja, o mesmo será dizer que pro­ta­go­niza uma pro­funda rup­tura com o pas­sado. Nas suas duas pri­meiras cri­a­ções deste gé­nero o com­po­sitor mantém-se fiel ao mo­delo clás­sico re­pre­sen­tado por Haydn, li­mi­tando-se a pro­curar de­sen­volver essa forma sin­fó­nica pre­e­xis­tente. Mas quando em 1803 se lança no tra­balho de com­po­sição desta sua 3ª sin­fonia, a ati­tude as­su­mida é ra­di­cal­mente di­fe­rente. Nesse sen­tido, po­demos dizer ser esta a pri­meira sin­fonia au­ten­ti­ca­mente be­etho­ve­niana. A di­mensão dos seus quatro an­da­mentos, bem como a gran­deza e a pu­jança da sua ar­qui­tec­tura so­nora não têm pre­ce­dentes na his­tória da mú­sica. Nunca antes se tinha com­posto uma sin­fonia tão longa. O facto de ter co­me­çado por ser de­di­cada a Na­po­leão, fi­gura que co­meçou por des­pertar no mú­sico uma enorme ad­mi­ração, não pode ser olhado como algo se­pa­rado da in­tenção do gesto cri­a­tivo. Bem pelo con­trário. A de­di­ca­tória ini­cial – de­pois apa­gada – faz parte de uma to­ta­li­dade es­té­tica es­sen­cial. É ele­mento cons­ti­tu­tivo da es­sência da arte be­etho­ve­niana. Porque, talvez como ne­nhum outro, este ar­qui­tecto de sons tinha a pro­funda con­vicção de que a mú­sica podia e devia ce­le­brar um con­junto de va­lores e ideais hu­manos, as­su­mindo-se dessa forma como re­le­vante factor de con­so­li­dação do cres­ci­mento ci­vi­li­za­ci­onal e do hu­ma­nismo. A alma desta par­ti­tura sin­fó­nica só pode ser com­ple­ta­mente as­si­mi­lada, com­pre­en­dida, à luz desta con­vicção pes­soal do autor. A gran­di­o­si­dade so­nora que nos é pre­sente é um hino à co­ragem e ao poder imenso do es­pí­rito hu­mano. Va­lores que, na época em que es­creve esta pá­gina sin­fó­nica, Be­ethoven vê per­so­ni­fi­cados na fi­gura em­ble­má­tica do po­lí­tico re­vo­lu­ci­o­nário, do es­ta­dista, do chefe mi­litar que é Na­po­leão, por si re­co­nhe­cido como “li­ber­tador da Eu­ropa”, trans­por­tando com a força da es­pada os ideais eman­ci­pa­dores da Re­vo­lução Fran­cesa. Fácil en­tender, por­tanto, a de­sig­nação de “He­róica”, “Sin­fonia He­róica”. Aliás o com­po­sitor terá che­gado a pensar uti­lizar o nome Bo­na­parte num sub­tí­tulo. Se o ti­vesse feito, pro­va­vel­mente hoje es­ta­ríamos a falar da «Sin­fonia Bo­na­parte». Re­corde-se que Be­ethoven e Na­po­leão eram exac­ta­mente da mesma ge­ração; quase nas­ceram no mesmo ano.

A partir de um es­boço re­a­li­zado em 1802, a com­po­sição da obra es­tendeu-se por mais de um ano, entre a Pri­ma­vera de 1803 e o mês de Maio de 1804. Supõe-se que tenha sido exe­cu­tada pela pri­meira vez em am­bi­ente pri­vado, em casa do prín­cipe Lob­kowitz, digno pa­trono das artes e grande ad­mi­rador/​pro­tector de Be­ethoven, a quem, por fim, a obra seria de­di­cada, de­pois de rai­vo­sa­mente apa­gado o nome de Na­po­leão por efeito da de­cepção cau­sada pelo facto his­tó­rico – imor­ta­li­zado em uma cé­lebre tela de David (de gran­di­o­si­dade cu­ri­o­sa­mente se­me­lhante à da sin­fonia be­etho­ve­niana) – de o seu herói se ter feito co­roar im­pe­rador, es­pe­zi­nhando, na óp­tica do mú­sico, os ideais da Re­vo­lução Fran­cesa e pas­sando de herói li­ber­tador a vulgar ti­rano.

A es­treia pú­blica ocorreu no dia 7 de Abril de 1805, em Viena, no The­ater an der Wien, sob a ba­tuta do com­po­sitor. Data mar­cante na his­tória da arte dos sons. A ci­dade de Viena, já tão as­so­ciada à his­tória da forma sin­fonia, re­for­çava assim esse elo.

O 1º an­da­mento (o único que será es­cu­tado no con­certo de aber­tura da Festa do Avante!), um Al­legro com brio, inicia-se com dois acordes de mag­ní­fico efeito a que se segue o pri­meiro tema, ini­ci­al­mente apre­sen­tado pelos vi­o­lon­celos e logo de­pois ex­posto também pelos vi­o­linos e pelas vi­olas. De­li­cioso o diá­logo, com cur­tís­simas frases mu­si­cais de apenas 3 notas, entre o oboé, o cla­ri­nete, a flauta e os vi­o­linos, su­ce­dendo-se de­pois o pri­meiro tutti de grande pu­jança em que sen­timos a im­po­nência dos so­pros de metal (trompas e trom­petes), em nú­mero su­pe­rior ao que era regra até então. Re­pare-se nos largos acordes sin­co­pados, muito vi­go­rosos, de modo a trans­mitir a pre­ten­dida imagem de he­roísmo. O de­sen­vol­vi­mento é de uma ri­queza, va­ri­e­dade e ex­tensão ab­so­lu­ta­mente sur­pre­en­dentes para a época. Be­ethoven não teme o in­ves­ti­mento na com­ple­xi­dade da es­tru­tu­ração do dis­curso mu­sical, o que só por si con­voca uma exe­gese que em muito ex­tra­vasa o es­copo do pre­sente texto. De notar, no final, o re­a­pa­re­ci­mento do mo­tivo ini­cial, nas trompas, cul­mi­nando de­pois no vi­go­roso bri­lhan­tismo do som do co­lec­tivo da or­questra. Uma au­tên­tica obra-prima. Um exemplo de ge­ni­a­li­dade. Se bem que no mo­mento da es­treia os crí­ticos não se te­nham aper­ce­bido disso e ti­vessem feito juízos de­pre­ci­a­tivos. A no­vi­dade que rompe, pro­voca ce­gueiras. Hoje, essa força do génio faz-nos acre­ditar no poder que o autor de «Fi­délio» atri­buía à Mú­sica, mesmo quando de­sa­com­pa­nhada da pa­lavra.

Não quero deixar de chamar a atenção para algo que, a meu ver, la­men­ta­vel­mente sempre vejo ser ig­no­rado. Re­firo-me ao facto de a di­mensão re­vo­lu­ci­o­nária da es­crita mu­sical be­etho­ve­niana só poder ser ca­bal­mente en­ten­dida, fun­da­men­tada e jus­ti­fi­cada se ti­vermos em conta fac­tores de na­tu­reza não mu­sical nem mesmo ar­tís­tica que de modo ra­dical afec­taram a so­no­ri­dade da vida quo­ti­diana, prin­ci­pal­mente a ur­bana, por efeito di­recto ou in­di­recto do sur­gi­mento da má­quina a vapor, re­pre­sen­tando um novo pa­ra­digma da téc­nica, bem como do ex­tra­or­di­nário de­sen­vol­vi­mento da ci­ência e das suas vá­rias apli­ca­ções téc­nicas. Nessa me­dida, a meu ver, im­porta acen­tuar, mesmo cor­rendo o risco de al­guma sim­pli­fi­cação ex­ces­siva, que a sin­fonia be­etho­ve­niana, ao romper com o quadro da sin­fonia clás­sica que teve em Haydn e Mo­zart os seus cumes es­té­ticos, essa sin­fonia de novo tipo que nasce com os pri­meiros acordes da «He­róica», é a ex­pressão ar­tís­tica da pri­meira fase da Re­vo­lução In­dus­trial, um equi­va­lente es­té­tico da am­bi­ência so­nora se­meada pela ci­ência e pela téc­nica no seio das so­ci­e­dades hu­manas mais de­sen­vol­vidas no de­albar dos anos Oi­to­centos.

 

SCHU­MANN
Con­certo para quatro trompas e or­questra, op. 86

Ver in­se­rido no pro­grama de um es­pec­tá­culo uma peça or­ques­tral em que à trompa seja atri­buído prin­cipal pro­ta­go­nismo, apa­re­cendo o trom­pista como so­lista, já é algo raro; mas peça para quatro trompas e or­questra é coisa ra­rís­sima, cau­sando es­tra­nheza até mesmo a me­ló­manos ex­pe­ri­entes. O de­se­qui­lí­brio entre o aco­lhi­mento dado pelos cri­a­dores mu­si­cais ao vi­o­lino ou ao piano e o aco­lhi­mento dado à trompa é enorme. Daí que este opus 86, mesmo tendo a as­si­na­tura de um Schu­mann, seja par­ti­tura pouco co­nhe­cida, ra­ra­mente exe­cu­tada e até exó­tica – sendo que há fun­da­mento ob­jec­tivo para o re­fe­rido de­se­qui­lí­brio. Mas se es­ti­vermos a falar com um trom­pista, bas­tará pro­nun­ciar a pa­lavra «Kon­zertstück» (peça de con­certo, pri­meira pa­lavra que compõe o tí­tulo ori­ginal, em alemão) para que ele de ime­diato saiba de que obra se trata e quem é o com­po­sitor. Essa fa­mi­li­a­ri­dade re­sulta do facto de esta com­po­sição re­pre­sentar um mo­mento muito re­le­vante na afir­mação do ins­tru­mento trompa, cha­mando a atenção para as ino­va­ções téc­nicas in­tro­du­zidas no início dos anos Oi­to­centos.

Em lin­guagem ac­tual, di­ríamos que esta obra é a con­cre­ti­zação de uma acção de mar­ke­ting em de­fesa da trompa. Pondo em evi­dência a evo­lução téc­nica ge­ra­dora de novas ca­pa­ci­dades de exe­cução, per­mi­tindo que fossem to­cadas notas da es­cala antes im­pos­sí­veis para esse velho ins­tru­mento. Nesse sen­tido, é uma obra de pro­pa­ganda. O seu perfil alegre, op­ti­mista, afir­ma­tivo sa­tisfaz esse pro­pó­sito. Uma ma­ni­fes­tação de fé no prós­pero fu­turo do ins­tru­mento.

Para me­lhor com­pre­en­dermos a gé­nese desta obra rara afi­gura-se-me útil um breve olhar sobre o pas­sado, re­cu­ando ao sé­culo que an­te­cedeu o de Schu­mann. Vamos en­con­trar aí nobre ex­cepção à regra de fraco aco­lhi­mento, a que co­mecei por fazer re­fe­rência: nas obras para trompa com­postas por Mo­zart e Fran­cesco Ros­setti na se­gunda me­tade do sé­culo XVIII. Se as deste cedo caíram no es­que­ci­mento, as da­quele de­fi­niram um pa­drão para o ins­tru­mento. Mas nesse tempo – e eis aqui o mais im­por­tante – o ins­tru­mento não podia pro­duzir todas as notas da es­cala, es­tando li­mi­tado apenas a al­gumas. Tra­tava-se de uma im­pos­si­bi­li­dade fí­sica, e também de uma li­mi­tação téc­nica que os me­lhores exe­cu­tantes desse tempo ten­tavam su­perar, sem grande su­cesso, através do modo pe­cu­liar e es­tranho como o ins­tru­mento é se­gu­rado nas mãos (com a in­tro­dução da mão na cam­pâ­nula ou pa­vi­lhão). Ainda não ti­nham sido in­ven­tadas as vál­vulas. Só nos anos de 1810 sur­giram as pri­meiras trompas de vál­vulas, mas por vá­rios mo­tivos foram mal re­ce­bidas tanto pelos com­po­si­tores como pelos in­tér­pretes.

As­su­mindo-se como es­pí­rito mo­derno, ino­vador, e re­pre­sen­tante das novas ten­dên­cias mu­si­cais, Schu­mann aceitou com en­tu­si­asmo o de­safio, pro­cu­rando criar uma peça que ex­plo­rasse ao má­ximo todos os re­cursos do ins­tru­mento re­no­vado. Em con­sequência disso, também os in­tér­pretes são aqui postos à prova, em vir­tude das di­fi­cul­dades de exe­cução que lhes são co­lo­cadas. Há mo­mentos de grande vir­tu­o­sismo e bra­vura em que Schu­mann quis tirar todo o par­tido das novas vál­vulas, “es­ti­cando” em todas as di­rec­ções, le­vando o ins­tru­mento a fazer o que antes era im­pos­sível fazer

Este con­certo foi es­crito em 1849, que foi, no plano com­po­si­ci­onal, o ano mais pro­du­tivo da vida de Ro­bert Schu­mann. Criou nesse pe­ríodo mais de três de­zenas de obras im­por­tantes, se bem que o seu es­tado de saúde mental se es­ti­vesse a de­te­ri­orar ra­pi­da­mente.

O pri­meiro e o úl­timo an­da­mentos são os mais vir­tu­o­sís­ticos e, por isso, também os mais vis­tosos. Exemplo disso é a vi­brante e enér­gica fan­farra ini­cial com que as 4 trompas sobem à ri­balta, após dois curtos acordes da or­questra. Fica dado o mote. No en­tanto, e talvez con­tra­ri­ando a re­acção mais ha­bi­tual dos pú­blicos, pa­rece-me a mim que o me­lhor da par­ti­tura está no an­da­mento menos vir­tu­o­sís­tico: o 2º, Ro­mança. Sente-se aí o au­tên­tico Schu­mann, o da sen­su­a­li­dade lí­rica do uni­verso do Lied ro­mân­tico.

 

MO­ZART
 Sin­fonia nº 40, em Sol menor, K. 550

O pro­grama do con­certo a que estas notas se re­ferem in­troduz uma in­versão his­tó­rica, fa­zendo es­cutar pri­meiro o que na sequência cro­no­ló­gica da his­tória da sin­fonia só surgiu de­pois. Isso deve-se à cir­cuns­tância de a par­ti­tura mo­zar­tiana, ao con­trário da be­etho­ve­niana, ir ser es­cu­tada na ín­tegra, ad­qui­rindo assim o di­reito de ocupar o lugar de honra, en­cer­rando o es­pec­tá­culo. Mas essa in­versão não vai re­tirar ao es­pec­tador a pos­si­bi­li­dade de apro­veitar este con­certo para poder dele re­tirar al­guns en­si­na­mentos sobre a his­tória da forma mu­sical co­nhe­cida sob a de­sig­nação de sin­fonia. De­sejo acre­ditar que esta breve nota possa cons­ti­tuir um mo­desto con­tri­buto para essa aqui­sição cog­ni­tiva.

A sin­fonia (termo de origem grega que sig­ni­fica li­te­ral­mente “com som”) nasceu no sé­culo XVII e ca­rac­te­riza-se por ser uma peça com­posta ex­clu­si­va­mente para or­questra (norma que muito mais tarde, já no sé­culo XIX, irá ser vi­o­lada), sendo ha­bi­tu­al­mente or­ga­ni­zada em 3 ou 4 an­da­mentos.

De um modo geral, a sin­fonia foi con­si­de­rada a forma nu­clear, e nesse sen­tido a mais im­por­tante, da cha­mada com­po­sição or­ques­tral. No sé­culo XVII o de­sig­na­tivo foi uti­li­zado com al­guma falta de rigor, aca­bando por se ver apli­cado a obras de tipo muito di­fe­rente. Dei­xemos de parte essas di­fi­cul­dades ter­mi­no­ló­gicas que as pes­soas de ex­pressão in­glesa re­solvem com mais fa­ci­li­dade jo­gando com uma nuance or­to­grá­fica que pos­si­bi­lita o uso di­fe­ren­ciado de duas pa­la­vras gé­meas: “sin­fonia” e “symphony”. A partir das aber­turas de ópera ita­liana da úl­tima me­tade dos anos Seis­centos, prin­ci­pal­mente nas ci­dades de Viena e Man­nheim (dois grandes cen­tros da cul­tura mu­sical desse tempo), mas também em ou­tras ci­dades (Lon­dres, Paris, etc.), vá­rios com­po­si­tores co­me­çaram a de­sen­volver a “nova sin­fonia”, também de­sig­nada por sin­fonia vi­e­nense. Estas com­po­si­ções inau­guram um novo rumo que vai con­ferir au­to­nomia à forma sin­fonia, li­ber­tando-a da es­fera do te­atro mu­sical, assim como da mú­sica de câ­mara. Com o con­curso de mú­sicos hoje, para o cha­mado grande pú­blico, quase to­tal­mente caídos no es­que­ci­mento, só co­nhe­cidos dos es­pe­ci­a­listas, como Va­nhal, Dit­ters­dorf, Mi­chael Haydn (irmão mais novo de Jo­seph Haydn) ou Hof­mann, surge a sin­fonia clás­sica ou sin­fonia clás­sica vi­e­nense, em que pre­va­lece a or­ga­ni­zação em 4 an­da­mentos. Haydn (o Jo­seph) e Mo­zart vão ser os ex­po­entes má­ximos dessa forma. A n.º 40 que ou­vi­remos é mo­delar exemplo de sin­fonia clás­sica.

De­pois de ter es­tado na pre­sença da «He­róica» até o es­pec­tador to­tal­mente não ini­ciado po­derá per­cep­ci­onar al­gumas di­fe­renças es­sen­ciais. Su­giro que co­mecem por contar o nú­mero de ins­tru­men­tistas em palco. De­pois contem, p. e., o nú­mero de trom­petes. Terão a sur­presa de ve­ri­ficar que na obra de Mo­zart não há ne­nhum para contar, tal como também não há tim­bales. E trompas são só duas. Atenção: es­crevo isto des­co­nhe­cendo as op­ções do ma­estro que, con­si­de­rando as par­ti­cu­la­ri­dades do local em que o con­certo se vai re­a­lizar, pode de­cidir, le­gi­ti­ma­mente, acres­centar ins­tru­mentos de modo a con­se­guir obter maior vo­lume de som. É claro que nunca passou pela ca­beça do Sr.Mo­zart a hi­pó­tese de qual­quer das suas sin­fo­nias ser exe­cu­tada ao ar livre com a pre­sença de mais de 20 mil es­pec­ta­dores! Isto le­vanta um pro­blema. Mas antes de o abordar, su­giro uma úl­tima con­tagem: a da du­ração da obra em com­pa­ração com a an­te­rior sin­fonia be­etho­ve­niana. En­quanto a nº40 dura pouco mais de meia hora, a «He­róica» (com­pleta) an­dará pelos 50 mi­nutos. Por­tanto, quase o dobro.

Não se julgue, porém, que por uti­lizar uma or­questra subs­tan­ci­al­mente mais pe­quena Mo­zart fica atrás de Be­ethoven no plano dos efeitos es­té­tico-emo­ci­o­nais ob­tidos. A sin­fonia em Sol menor, a pe­núl­tima da lavra do Mú­sico de Salz­burg, é aquilo a que cos­tumo chamar um cume es­té­tico. É, desde logo pela sua pro­fun­di­dade dra­má­tica e emo­ci­onal, uma das obras mais ad­mi­rá­veis ja­mais com­postas. Se, no geral, os psi­qui­a­tras e psi­có­logos no ac­tivo ti­vessem maior cul­tura mu­sical, estou em crer que seria ha­bi­tual vê-los uti­lizar esta par­ti­tura como forma de abordar com os seus pa­ci­entes o com­plexo pro­blema da vi­vência/​gestão das emo­ções nas pro­fun­dezas do eu sin­gular, assim como no quadro das re­la­ções in­ter­sub­jec­tivas. Pelo meu lado, como fi­ló­sofo, tenho pro­cu­rado uti­lizar esta obra como factor de me­lho­ra­mento da vida con­creta dos seres hu­manos, pois é essa a prin­cipal função da fi­lo­sofia: pro­por­ci­onar bem-estar; gerar aquilo a que os fran­ceses, go­zando do charme do seu idioma, chamam le bo­nheur.

Es­cutem com a má­xima atenção e sintam como a an­gústia hu­mana é mu­si­cal­mente tra­du­zida, como é es­pe­lhada em subtil har­monia mu­sical logo a partir dos pri­meiros com­passos. O tema do An­dante (2º an­da­mento) não é menos in­tenso. É mais uma pá­gina pun­gente. E não se deixem iludir pela energia do alegro assai final que pode pa­recer anular as ten­sões num mo­vi­mento de li­ber­tação, de aban­dono da an­si­e­dade, da an­gústia, do medo lan­ci­nantes. No de­sen­vol­vi­mento, neste an­da­mento final, Mo­zart cria ex­tra­or­di­ná­rios efeitos de tensão dra­má­tica que nos des­lum­bram ao mesmo tempo que nos co­movem pro­fun­da­mente.

Que teria feito este tão ex­tra­or­di­nário Wolf­gang se ti­vesse po­dido es­cutar a “He­róica”? Uma ex­ci­tante du­bi­ta­tiva que de modo re­cor­rente me as­salta a alma.




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