Neste dia, há 40 anos...

Álvaro Cunhal regressa a Portugal

O dia 30 de Abril de 1974, faz hoje pre­ci­sa­mente 40 anos, foi uma data mar­cante do pro­cesso re­vo­lu­ci­o­nário por­tu­guês: ao início da tarde, vindo de Paris, re­gres­sava a Por­tugal o Se­cre­tário-geral do PCP, Álvaro Cu­nhal. A es­perá-lo no ae­ro­porto de Lisboa es­tava uma mul­tidão, mo­bi­li­zada em poucas horas.

A classe ope­rária, o povo tra­ba­lhador, todos os de­mo­cratas, os mi­li­tares, a Nação por­tu­guesa in­teira, estão fir­me­mente de­ci­didos a ins­taurar em Por­tugal um re­gime de­mo­crá­tico

Pela pri­meira vez na sua já então longa vida de com­ba­tente re­vo­lu­ci­o­nário (ini­ciada nos al­vores da dé­cada de 30 e mar­cada por largos anos de clan­des­ti­ni­dade e mais de uma dé­cada na prisão), Álvaro Cu­nhal di­rigia-se li­vre­mente aos tra­ba­lha­dores e ao povo do seu País. De cima de um carro blin­dado do Exér­cito, tendo ao seu lado ca­ma­radas de par­tido, mi­li­tares e an­ti­fas­cistas de vá­rias ten­dên­cias, o Se­cre­tário-geral do PCP ga­rantia que os co­mu­nistas con­ti­nu­a­riam, nas novas con­di­ções cri­adas pelo der­ru­ba­mento da di­ta­dura, a «dar todas as suas ener­gias, e a vida se ne­ces­sário, na luta pela li­ber­dade, pela paz, pela ver­da­deira in­de­pen­dência na­ci­onal, pelas pro­fundas re­formas de­mo­crá­ticas que estão ao nosso al­cance».

Pe­rante mi­lhares de pes­soas, o di­ri­gente co­mu­nista aponta aquelas que eram, para o PCP, as ta­refas es­sen­ciais do mo­mento: con­so­lidar e tornar ir­re­ver­sí­veis os re­sul­tados en­tre­tanto al­can­çados pelo MFA; al­cançar todas as li­ber­dades de­mo­crá­ticas e as­se­gurar o seu exer­cício; pôr fim ime­diato à guerra co­lo­nial; ga­rantir a sa­tis­fação das rei­vin­di­ca­ções mais ime­di­atas das massas tra­ba­lha­doras; e as­se­gurar a re­a­li­zação de elei­ções ver­da­dei­ra­mente li­vres para a As­sem­bleia Cons­ti­tuinte.

Para ga­rantir que as elei­ções se re­a­li­zassem e fossem de facto li­vres, Álvaro Cu­nhal propôs a cons­ti­tuição de um «go­verno pro­vi­sório com a re­pre­sen­tação de todas as forças e sec­tores po­lí­ticos de­mo­crá­ticos e li­be­rais». Da parte dos co­mu­nistas, acres­centou, havia toda a dis­po­ni­bi­li­dade para as­sumir as res­pec­tivas res­pon­sa­bi­li­dades.

Um en­contro re­ve­lador

Do ae­ro­porto, o Se­cre­tário-geral do PCP se­guiu ime­di­a­ta­mente para um en­contro com o ge­neral Spí­nola, que pre­sidia então à Junta de Sal­vação Na­ci­onal (a quem o MFA en­tregou o poder). Nesse en­contro, o ge­neral volta a ex­pli­citar a sua visão para o fu­turo do País, cla­ra­mente re­ac­ci­o­nária e em con­tra­dição com o mo­vi­mento geral de de­mo­cra­ti­zação pro­funda que então se vivia.

Na ver­dade, de­pois de no pró­prio dia 25 ter ten­tado forçar a re­visão do Pro­grama do MFA, Spí­nola faz, na ma­dru­gada de 26, uma re­ve­la­dora pro­cla­mação ao País, na qual deixa claro que pre­tendia manter a PIDE em fun­ci­o­na­mento, ao mesmo tempo que pro­cura travar a li­ber­tação in­con­di­ci­onal dos presos po­lí­ticos – num e noutro caso, foi der­ro­tado pelos mi­li­tares re­vo­lu­ci­o­ná­rios e pelo povo por­tu­guês que, lado a lado, ex­tin­guiram a PIDE e pren­deram os seus agentes e li­ber­taram todos e cada um dos an­ti­fas­cistas presos.

No en­contro com Álvaro Cu­nhal, bem como na reu­nião que na vés­pera man­teve com uma de­le­gação do PCP (com­posta por Jaime Serra, Jo­a­quim Gomes e Oc­távio Pato), o ge­neral foi mais longe, afir­mando que era «cedo» para o sur­gi­mento dos par­tidos po­lí­ticos e que o sím­bolo his­tó­rico do PCP, com a foice e mar­telo, não de­veria ser usado nem o Avante! pu­bli­cado. Queria, der­ru­bado o fas­cismo, o que o fas­cismo nunca lo­grou al­cançar, o que era ina­cei­tável – re­cebeu como res­posta.

Em jeito de ameça, Spí­nola avisou que a ma­ni­fes­tação do 1.º de Maio re­ve­laria a real in­fluência do PCP entre as massas e, em úl­tima aná­lise, mos­traria se o PCP me­recia a le­ga­li­dade que re­cla­mava. O resto da his­tória é co­nhe­cido: no 1.º de Maio, mi­lhões de pes­soas saíram às ruas de todo o País, con­fir­mando a vi­tória de Abril e o papel cen­tral e de­ter­mi­nante do mo­vi­mento ope­rário e po­pular no pro­cesso re­vo­lu­ci­o­nário.

Pa­la­vras cer­teiras

In­ter­vindo no co­mício que cul­minou as ce­le­bra­ções do Dia do Tra­ba­lhador, no es­tádio que seria de­pois bap­ti­zado «1.º de Maio», Álvaro Cu­nhal afirmou que «esta imensa ma­ni­fes­tação, pela pos­si­bi­li­dade da sua re­a­li­zação e por si mesma, é a afir­mação ir­re­fu­tável de que a classe ope­rária, o povo tra­ba­lhador, todos os de­mo­cratas, os mi­li­tares, a Nação por­tu­guesa in­teira, estão fir­me­mente de­ci­didos a levar até ao cabo a li­qui­dação do fas­cismo e dos seus restos, a con­so­lidar e alargar as li­ber­dades, em pôr fim à guerra, em ins­taurar em Por­tugal um re­gime de­mo­crá­tico».

A uni­dade, am­pli­ação e re­forço da or­ga­ni­zação da classe ope­rária, das massas po­pu­lares, das forças de­mo­crá­ticas e a ali­ança do povo com as Forças Ar­madas, acres­centou, eram as duas con­di­ções es­sen­ciais e ime­di­atas para que a Re­vo­lução ven­cesse de­fi­ni­ti­va­mente. O pro­cesso re­vo­lu­ci­o­nário – bem como, in­ver­sa­mente, a contra-re­vo­lução – mos­traram o acerto das suas pa­la­vras.

Gus­tavo Car­neiro

 

No fas­cismo era assim

O ra­bisco

Pas­sados que são 40 anos de­pois do 25 de Abril e com isto a andar para trás, convém lem­brar às po­ten­ciais ví­timas da pro­pa­ganda dos sau­do­sistas do 24 e do poder po­lí­tico vi­gente seu imi­tador como era então a vida deste povo. Aqui vai um exemplo: de­pois das co­lheitas nos la­ti­fún­dios do Alen­tejo, sempre fi­cava qual­quer coisa. Uns restos. Como as jornas eram mi­se­rá­veis e só se ga­nhavam quando havia tra­balho, e re­formas ou qual­quer apoio so­cial eram uto­pias apenas para os mais es­cla­re­cidos, os ve­lhos, as cri­anças e os de­sem­pre­gados iam então, ao que se cha­mava, o ra­bisco.

Um dia, an­dava a minha mãe com o meu irmão mais velho ao ra­bisco da azei­tona, fi­nava-se a tarde, o imenso olival não tar­dava ficar en­volto na es­cu­ridão, e os sa­quitos longe de es­tarem cheios. Até que a minha mãe disse ao meu irmão para ir de­pressa acabar de en­cher o dele a uma oli­veira das que ainda não ti­nham sido apa­nhadas, que ali es­tava, de per­nadas baixas, car­re­ga­dinha de azei­tona.

Em má hora o fez. O guarda que es­tava es­con­dido, à coca, logo apa­receu. A minha mãe seria mul­tada. Como nem pouco mais ou menos tinha di­nheiro para pagar a multa, iria para a prisão. Com quatro fi­lhos me­nores, ima­gine-se o drama. De­pois de ra­lhar com o meu irmão e de mentir ao guarda di­zendo que não o tinha man­dado «roubar» e de lhe im­plorar que não fosse fazer queixa à GNR , o guarda man­tinha-se in­fle­xível. A minha mãe de­cidiu então ser mais con­vin­cente. Agarrou numa vara e pôs-se a zurzir o filho. Este, em­bora uma cri­ança mas já com a du­rís­sima ex­pe­ri­ência da vida, não des­mentiu a mãe, cerrou os dentes, e co­la­borou. Pas­sado um bom bo­cado, o guarda lá disse: «bem, deixe lá já o moço, mas para a pró­xima não se safa!»

Eu era um me­nino, mas ficou-me gra­vado na me­mória, de­pois, em casa, a minha mãe la­vada em lá­grimas a es­fregar com ál­cool as roxas ná­degas do meu irmão, bei­jando-o e so­lu­çando: meu rico fi­lhinho! Meu rico fi­lhinho!


Fran­cisco Ra­malho

 



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