Mais um ataque ao SNS

Saúde cada vez mais privada

Jorge Pires

O Ser­viço Na­ci­onal de Saúde, lu­mi­nosa con­quista da Re­vo­lução de Abril, está de há anos a esta parte sob o ataque de po­de­rosos grupos eco­nó­micos pri­vados, que vêem neste sector vital uma par­ti­cu­lar­mente ren­tável opor­tu­ni­dade de ne­gócio. É pre­ci­sa­mente para estes in­te­resses que têm go­ver­nado PS, PSD e CDS, que lei após lei, me­dida após me­dida, mais não têm feito do que servir os ape­tites destes grupos, que con­trolam já parte con­si­de­rável do sector da Saúde em Por­tugal.
Na se­mana pas­sada, em con­fe­rência de im­prensa em que par­ti­cipou Jorge Pires, da Co­missão Po­lí­tica, o PCP re­agiu a mais uma peça desta ofen­siva. Trans­cre­vemos, em se­guida, o texto apre­sen­tado pelo di­ri­gente co­mu­nista.

Pas­sados 40 anos da Re­vo­lução de Abril e 35 anos da con­sa­gração ins­ti­tu­ci­onal do SNS, aqui está mais um ajuste de contas contra esta im­por­tante con­quista de Abril, por parte da­queles que sempre olharam, não para a saúde mas para a do­ença, como uma grande

A por­taria n.º 82/​2014 pu­bli­cada no pas­sado dia 10 de Abril, e o re­la­tório sobre Cen­tros de Re­fe­rência, pu­bli­cado re­cen­te­mente (mais um dos muitos es­tudos en­co­men­dados pelo Mi­nis­tério da Saúde, com con­clusão pré-de­fi­nida), são dois do­cu­mentos que, não sendo coin­ci­dentes, são con­cor­dantes e têm os mesmos ob­jec­tivos, pois con­si­deram um con­junto de ori­en­ta­ções que são parte de uma es­tra­tégia que visa des­re­gular o Ser­viço Na­ci­onal de Saúde (SNS) da qual be­ne­fi­ciam di­rec­ta­mente os in­te­resses do grande ca­pital neste sector, pelo que devem ser lidos de forma in­te­grada.

Es­tamos pe­rante um ataque sem pre­ce­dentes ao SNS.

Por mais que o Go­verno pro­cure ma­ni­pular a re­a­li­dade, a ver­dade in­con­tor­nável é que a ge­ne­ra­li­dade das de­ci­sões que tem to­mado são parte do ob­jec­tivo de criar em Por­tugal um sis­tema de Saúde a duas ve­lo­ci­dades: um ser­viço pú­blico des­va­lo­ri­zado, cen­trado num con­junto mí­nimo de pres­ta­ções ga­ran­tidas, e outro, con­tro­lado pelo grande ca­pital, sus­ten­tado numa rede de se­guros de Saúde e da pres­tação de cui­dados pelo sector pri­vado, em parte fi­nan­ci­ados com di­nheiros pú­blicos, como vem acon­te­cendo com o Re­gime Con­ven­ci­o­nado onde se in­tegra a ADSE e os ou­tros sub­sis­temas pú­blicos.

Tal como foi con­fir­mado re­cen­te­mente pela As­so­ci­ação Por­tu­guesa de Hos­pi­ta­li­zação Pri­vada, a ADSE e os ou­tros sub­sis­temas pú­blicos pagam mais de 500 mi­lhões de euros/​ano a pri­vados pela pres­tação de cui­dados de Saúde aos seus be­ne­fi­ciá­rios.

Não está em causa a exis­tência de cen­tros de re­fe­rência cons­ti­tuídos de forma equi­li­brada, nem a ne­ces­si­dade de de­finir a ti­po­logia dos ser­viços e es­ta­be­le­ci­mentos do SNS, sempre com a pre­o­cu­pação de me­lhorar a pres­tação de cui­dados. Mas o que o con­teúdo destes dois do­cu­mentos visam, ao con­trário do que é afir­mado pelos res­pon­sá­veis do Mi­nis­tério da Saúde, não é a in­tenção de «au­mentar a efi­ci­ência e re­duzir custos, as­se­gu­rando a me­lhoria da qua­li­dade da pres­tação de cui­dados e re­sul­tados al­can­çados, de forma a ga­rantir o seu cres­ci­mento e su­cesso sus­ten­tados». O que pro­curam con­cre­tizar com o plano em de­sen­vol­vi­mento, é muito claro: des­truir o SNS tal como ele está con­sa­grado na Cons­ti­tuição da Re­pú­blica Por­tu­guesa (CRP).

Ajuste de contas com Abril

Pas­sados 40 anos da Re­vo­lução de Abril e 35 anos da con­sa­gração ins­ti­tu­ci­onal do SNS, aqui está mais um ajuste de contas contra esta im­por­tante con­quista de Abril, por parte da­queles que sempre olharam, não para a saúde mas para a do­ença, como uma grande opor­tu­ni­dade de ne­gócio. No início ti­veram ampla di­vul­gação pú­blica os dados que con­firmam uma trans­fe­rência sig­ni­fi­ca­tiva do pú­blico para o con­trolo dos grupos eco­nó­micos e fi­nan­ceiros, na pres­tação de cui­dados de Saúde. Se­gundo o INE, e com­pa­ra­ti­va­mente com 2003, são mais 14 as uni­dades hos­pi­ta­lares pri­vadas e menos três as do sector pú­blico.

Mas não é esta a única, nem a prin­cipal razão, para esta trans­fe­rência de cui­dados de Saúde do pú­blico para o grande ca­pital. A res­posta para esta al­te­ração en­contra-se na opção ide­o­ló­gica deste Go­verno que se tem tra­du­zido, entre ou­tras de­ci­sões: no sub­fi­nan­ci­a­mento das ins­ti­tui­ções pú­blicas (menos 1,4 mil mi­lhões de euros nos úl­timos cinco anos) no en­cer­ra­mento e de­sar­ti­cu­lação de muitos ser­viços, no não apro­vei­ta­mento da ca­pa­ci­dade ins­ta­lada nos hos­pi­tais do SNS (os úl­timos dados in­dicam que os hos­pi­tais pri­vados já fazem cerca de 28% das con­sultas ex­ternas e 27% dos actos com­ple­men­tares de di­ag­nós­tico).

De­sin­vestir, en­cerrar, li­mitar

A por­taria n.º 82/​2014, agora pu­bli­cada, en­cerra entre ou­tros, quatro grandes ob­jec­tivos:

- de­sin­vestir nos cui­dados hos­pi­ta­lares através da des­clas­si­fi­cação de uni­dades hos­pi­ta­lares, o que le­vará ao fecho de ser­viços (al­guns deles de grande qua­li­dade téc­nica e ex­pe­ri­ência pro­fis­si­onal) e do seu sub­fi­nan­ci­a­mento – mais um corte de 120 mi­lhões de euros em 2014 nas en­ti­dades EPE;

- des­pedir mi­lhares de pro­fis­si­o­nais de Saúde e impor a mo­bi­li­dade for­çada a muitos dos que fi­carem;

- li­mitar o acesso dos do­entes à pres­tação de cui­dados hos­pi­ta­lares, afas­tando os ser­viços das áreas de re­si­dência dos utentes, obri­gando-os a des­lo­ca­ções de de­zenas e mesmo cen­tenas de qui­ló­me­tros com custos in­com­por­tá­veis para a grande mai­oria;

- con­tri­buir para vi­a­bi­lizar as uni­dades de ele­vada tec­no­logia dos grupos eco­nó­micos e fi­nan­ceiros que ainda não pu­deram ser ren­ta­bi­li­zadas, porque a ca­pa­ci­dade ins­ta­lada e a com­pe­tência do SNS o não tem per­mi­tido.

No con­creto, o que a por­taria aponta até De­zembro de 2015, é a in­tenção do Go­verno de en­cerrar 24 ma­ter­ni­dades de­vido ao facto de os hos­pi­tais onde estão ins­ta­ladas fi­carem clas­si­fi­cados no Grupo I e, por isso, per­derem a es­pe­ci­a­li­dade de Obs­te­trícia; eli­minar da re­lação de hos­pi­tais pú­blicos as es­pe­ci­a­li­dades mé­dicas de en­do­cri­no­logia e de es­to­ma­to­logia; eli­minar os hos­pi­tais pe­diá­tricos, o mesmo acon­te­cendo ao Ins­ti­tuto Of­tal­mo­ló­gico Dr. Gama Pinto e a dois dos seis ser­viços de ci­rurgia car­di­o­to­rá­cica (Hos­pital de Gaia e Hos­pital de Santa Cruz). Por exemplo, no caso do Hos­pital de Santa Cruz, uni­dade que in­tegra o Centro Hos­pi­talar Lisboa Oci­dental EPE, foi clas­si­fi­cado no grupo II, per­dendo assim as va­lên­cias de ci­rurgia car­di­o­to­rá­cica, car­di­o­logia pe­diá­trica, va­lên­cias em que é uma re­fe­rência no plano na­ci­onal, tal como o Hos­pital Gaia/​Es­pinho.

Tal como já vinha sendo ven­ti­lado, os Hos­pi­tais de Anadia, Can­ta­nhede e Ovar, de­sa­pa­recem da rede de hos­pi­tais pú­blicos. O seu des­tino será a en­trega às mi­se­ri­cór­dias, nal­guns casos para serem trans­for­mados em Uni­dades de Cui­dados Con­ti­nu­ados, ou mesmo a sua pri­va­ti­zação.

Cer­ta­mente vamos as­sistir nas pró­ximas se­manas a su­ces­sivas de­cla­ra­ções de res­pon­sá­veis do Mi­nis­tério da Saúde, no sen­tido de ilu­direm as suas in­ten­ções, afir­mando que são so­lu­ções que visam a ra­ci­o­na­li­dade dos meios e dos ser­viços, que não estão fe­chadas, exac­ta­mente o que têm feito nou­tras oca­siões com os re­sul­tados que todos co­nhe­cemos. Ou seja, o ob­jec­tivo ini­cial mais cedo ou mais tarde é con­cre­ti­zado.

O PCP, que tudo fará para im­pedir a con­cre­ti­zação de mais este es­bulho, apela aos pro­fis­si­o­nais de saúde e aos por­tu­gueses em geral, que res­pondam a mais esta ofen­siva contra o SNS, lu­tando de forma ar­ti­cu­lada em de­fesa do acesso aos cui­dados de saúde e do ins­tru­mento con­sa­grado cons­ti­tu­ci­o­nal­mente para a sua con­cre­ti­zação, o Ser­viço Na­ci­onal de Saúde.

Os sub­tí­tulos são da res­pon­sa­bi­li­dade da re­dacção.

 



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