Os bois e os nomes

Gustavo Carneiro

Se é certo que as pa­la­vras são ins­tru­mentos es­sen­ciais para a co­mu­ni­cação entre os ho­mens e para a com­pre­ensão do Mundo que nos ro­deia, não o é menos que elas podem servir para con­di­ci­onar, ma­ni­pular e dis­torcer essa mesma com­pre­ensão. A ma­ni­pu­lação, ar­vo­rada à ca­te­goria de «téc­nica», en­si­nada nas uni­ver­si­dades e ex­pli­cada em ma­nuais, as­sume hoje – na cha­mada era da co­mu­ni­cação – pro­por­ções inau­ditas, de­vido aos po­de­rosos meios exis­tentes.

Os que ex­ploram as po­ten­ci­a­li­dades da ma­ni­pu­lação são no es­sen­cial os mesmos a quem ela serve: a ín­fima mi­noria de­ten­tora das grandes trans­na­ci­o­nais da fi­nança, da energia, do ar­ma­mento, da in­for­mação e, por in­ter­posta pessoa, da maior parte dos go­vernos do Mundo. Já os des­ti­na­tá­rios são os ou­tros, a imensa mai­oria que, a bem do cons­tante au­mento dos lu­cros, convém manter sub­ju­gada, sub­missa, neu­tra­li­zada. Essa mesma mai­oria que de tra­ba­lha­dora passou a «co­la­bo­ra­dora», vendo do outro lado da luta de classes o pa­trão tra­ves­tido de «em­pre­gador». Que é pre­ci­sa­mente a mes­mís­sima mai­oria que deixou de ser des­pe­dida para passar a ser «dis­pen­sada», fruto de po­lí­ticas que já não são de au­mento da ex­plo­ração mas, quanto muito, de «fle­xi­bi­li­zação» e «mo­der­ni­zação».

Por cá, sa­bemo-lo bem, fomos brin­dados com uma pre­ciosa «ajuda ex­terna» dos «mer­cados» – ou, nou­tras pa­la­vras cer­ta­mente fora de moda, fomos rou­bados e em­po­bre­cidos pelos me­ga­bancos na­ci­o­nais e es­tran­geiros –, da qual te­remos, ga­rantem-nos em tom triun­fante, uma «saída limpa». Sa­bendo-se que da lim­peza desta saída consta a con­ti­nu­ação agra­vada das po­lí­ticas se­guidas até aqui e que o País fi­cará sob «vi­gi­lância» da troika dos cre­dores du­rante dé­cadas, resta per­guntar o que seria então uma saída «suja»?

Sur­giram-me estas re­fle­xões a pro­pó­sito da ac­tual si­tu­ação da Ucrânia, ou mais pre­ci­sa­mente da forma como a ela se re­fere a ge­ne­ra­li­dade das es­ta­ções de te­le­visão e de rádio e dos jor­nais, di­gi­tais ou im­pressos. Essa Ucrânia, que antes tinha um «re­gime», ainda que eleito, e que pa­rece que agora tem um «go­verno», mesmo que este re­sulte de um golpe pre­pa­rado e exe­cu­tado a partir do ex­te­rior, pelos EUA e pela União Eu­ro­peia – pelo que é «apoio» e nunca in­ge­rência – e que dele façam parte or­ga­ni­za­ções e par­tidos as­su­mi­da­mente fas­cistas e ne­o­nazis. Já os crimes por estes per­pe­trados, como o in­cêndio da Casa dos Sin­di­catos de Odessa, no qual mor­reram cerca de 40 pes­soas, são, tão só, «in­ci­dentes» ou «con­frontos».

A com­bater os «ucra­ni­anos» – como são vul­gar­mente de­sig­nados os bandos nazis par­ti­dá­rios dos gol­pistas – es­tarão, a fazer fé na lin­guagem ofi­cial, «se­pa­ra­tistas» e «pró-russos», mesmo quando se tratam de ucra­ni­anos como os ou­tros, mas que con­testam o golpe. An­ti­fas­cistas, se­gu­ra­mente uma de­sig­nação bem mais acer­tada, há muito que deixou de ter lugar no lé­xico da nova ordem co­mu­ni­ca­ci­onal.

Como em todas as ex­pres­sões da luta, também na ba­talha das pa­la­vras im­porta não ceder ter­reno ao ini­migo de classe. Da nossa parte, con­ti­nu­a­remos a chamar os bois pelos nomes.




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