A liberdade da terra das prisões

António Santos

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O te­le­fone toca de­mo­ra­da­mente. Estou já con­ven­cido de que nin­guém aten­derá. Talvez seja de­ma­siado cedo… lá são menos cinco horas. De­pois cai o voi­ce­mail. Uma voz rouca e agas­tada apre­senta-se: «Ligou para o nú­mero de Ro­bert King. Se não puder atender estou pro­va­vel­mente preso ou morto. Em qual­quer dos casos, não faz muito sen­tido deixar men­sagem». Até que fi­nal­mente o aus­cul­tador se le­vanta do outro lado do Atlân­tico numa res­pi­ração pe­sada. É o pró­prio King que atende, ex-preso po­lí­tico do Par­tido Pan­tera Negra e um dos «3 de An­gola». Aos 18 anos, Ro­bert, hoje com 72, foi con­de­nado por ho­mi­cídio. Passou 32 anos preso, 29 dos quais sob ri­go­roso re­gime de so­li­tária. Em 2001 foi de­cla­rado ino­cente. Os ou­tros dois presos po­lí­ticos ti­veram menos sorte: Herman Wal­lace passou 42 anos em so­li­tária até ser li­ber­tado, com um cancro ter­minal, a 1 de Ou­tubro de 2013. Dois dias de­pois, um juiz de­cidiu anular a sua li­ber­tação. Herman não chegou a ser preso porque morreu no dia se­guinte. Ro­bert es­tava com ele. Conta-me que as suas úl­timas pa­la­vras foram «estou livre». O ter­ceiro, Al­bert Wo­odfox, está em so­li­tária há 41 anos. Ro­bert de­dica a vida a lutar pela sua li­ber­dade: «Eu vi-me livre de An­gola. Mas An­gola não se viu livre de mim». A Pe­ni­ten­ciária Es­ta­dual do Lui­siana é co­nhe­cida por An­gola porque até à Guerra Civil foi uma plan­tação tra­ba­lhada por es­cravos an­go­lanos. Hoje, An­gola pa­rece pa­rada no tempo: são 130km² de cana-de-açúcar, tra­ba­lhados 12 horas por dia por mais de 6500 presos, sob a vi­gi­lância de brancos a ca­valo e ca­ça­deira ao colo. 70% dos re­clusos são ne­gros.

Ro­bert é pe­remp­tório: nos EUA o sis­tema pri­si­onal é o su­ce­dâneo da es­cra­va­tura e An­gola não é nem mais nem menos do que uma plan­tação de es­cravos. É a pró­pria Cons­ti­tuição dos EUA que, na sua 13.ª emenda, lembra que a es­cra­va­tura é ilegal «ex­cepto como pu­nição por um crime». An­gola não é apenas o fan­tasma ver­go­nhoso da Amé­rica an­te­bellum, é a co­fragem pro­ver­bial de um sis­tema es­tru­tu­ral­mente ra­cista. Os ne­gros cons­ti­tuem apenas 13% da po­pu­lação es­tado-uni­dense, mas com­põem 40% da po­pu­lação pri­si­onal do país. No Lui­siana, um em cada sete ne­gros está preso. Os exem­plos gro­tescos estão por todo o lado: Em 2006, na Vir­gínia, Tra­vion Blount, com 15 anos, roubou te­le­mó­veis e di­nheiro numa festa. Não ma­goou nin­guém, mas foi jul­gado como um adulto e con­de­nado a seis pri­sões per­pé­tuas acres­cidas de 118 anos de prisão. Em 2014, no De­laware, o mul­ti­mi­li­o­nário Ro­bert Ri­chards IV con­fessou ter abu­sado se­xu­al­mente dos seus dois fi­lhos. Os tri­bu­nais con­si­de­raram que «um homem como ele não se daria bem na prisão» [sic!] e foi li­ber­tado.

O es­goto da es­cola à prisão

Como Tra­vion, todos os anos 200 000 cri­anças são jul­gadas como adultos nos EUA. Trata-se do eixo fun­da­mental do sis­tema co­nhe­cido como «cor­redor es­cola-prisão». Este cor­redor co­meça na de­si­gual­dade es­tru­tural do sis­tema edu­ca­tivo, al­ta­mente des­cen­tra­li­zado e lo­cal­mente fi­nan­ciado. Nos bairros po­bres, as es­colas são in­va­ri­a­vel­mente pi­ores e os es­tu­dantes obtêm pi­ores notas nos exames na­ci­o­nais. Quanto pi­ores as notas, pior é o fi­nan­ci­a­mento da es­cola e mais co­muns são os pro­blemas de com­por­ta­mento.

Desde 1999 que a res­posta na­ci­onal a estes pro­blemas é a cri­mi­na­li­zação da sala de aula. Quase todas as es­colas pas­saram a contar com po­lícia e al­gumas chegam a con­tratar guardas pri­si­o­nais. Onde faltam li­vros e com­pu­ta­dores não faltam de­tec­tores de me­tais, câ­maras de vi­de­o­vi­gi­lância e cães para de­tectar droga. A po­lí­tica dis­ci­plinar de «to­le­rância zero» de­nota que é mais ba­rato ex­pulsar um es­tu­dante do que ajudá-lo. Os alunos ex­pulsos e de­tidos são de­vol­vidos às con­di­ções so­ciais que ori­gi­naram o pro­blema de com­por­ta­mento, pri­vados do acesso à edu­cação ou en­ca­mi­nhados di­rec­ta­mente para o sis­tema car­ce­rário. Trans­formar o sis­tema edu­ca­tivo numa ex­tensão do sis­tema pri­si­onal foi o veí­culo en­con­trado pelo ca­pi­ta­lismo para con­trolar uma parte da po­pu­lação que ele pró­prio ex­clui e de­serda, afi­an­çando mão-de-obra gra­tuita ao ca­pital. Assim, o or­ça­mento para as es­colas baixa na pro­porção do in­cre­mento do or­ça­mento para as pri­sões.

Ro­bert fala-me de um quadro de Norman Rockwell de que gosta muito. Pin­tado logo após a his­tó­rica sen­tença Brown, mostra uma me­nina negra a en­trar na es­cola pro­te­gida pela po­lícia. Se o mesmo quadro fosse pin­tado hoje mos­traria o con­trário: um po­lícia a re­tirar uma me­nina negra da es­cola. O «cor­redor es­cola-prisão» é uma lem­brança cruel de que para o ca­pi­ta­lismo a edu­cação não tem valor per se: é apa­relho de con­trolo so­cial no es­pí­rito do «Vi­giar e Punir» de Fou­cault. Ro­bert emo­ciona-se sempre que fala de Al­bert Wo­odfox, que foi preso pela pri­meira vez quando tinha 14 anos. Per­gunto-lhe o que quer fazer quando Al­bert for li­ber­tado. «Lem­bras-te de como acaba aquele filme, os Con­de­nados de Shawshank?» De­volve Ro­bert «Gos­tava que fosse assim: Um longo abraço ao pé do mar. Só que na praia de um país livre».



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