Ai, como eu sofro!

Zillah Branco

Hoje existe muito so­fri­mento. E antes? «Eu sofro.» E os ou­tros? O há­bito de queixa reduz a re­a­li­dade dos so­fri­mentos que pre­cisam ser evi­tados. É ver­dade que hoje há um enorme so­fri­mento que se abate sobre a po­pu­lação es­ma­gada pela am­bição das ins­ti­tui­ções fi­nan­ceiras e seus la­caios.

Todos os dias se acu­mulam as no­tí­cias sobre: sui­cí­dios de quem perdeu o em­prego e os ha­veres, per­dendo também a es­pe­rança de re­cons­truir a vida; mães que matam os fi­lhos e a si mesmas, di­ante do de­sa­ba­mento da sua es­ta­bi­li­dade na vida; os jo­vens buscam em países dis­tantes um em­prego que em Por­tugal deixou de haver com a des­truição das forças pro­du­tivas; os idosos vêem sair de perto os fa­mi­li­ares mais novos pela via da emi­gração; de­sa­pa­rece a força dos jo­vens que fazia a lim­peza dos ter­renos agora ex­postos aos in­cên­dios; os re­for­mados e pen­si­o­nistas deixam de sair de casa para o con­vívio com amigos porque já não podem pagar o trans­porte e mesmo uma bica; muitos dos que com­praram a casa com cré­dito ban­cário perdem os in­ves­ti­mentos em taxas e juros, de­volvem com o imóvel os seus so­nhos de algum con­forto fa­mi­liar e voltam a viver em quartos alu­gados; os do­entes tra­tados pelo sis­tema de saúde pú­blica es­peram meses ou anos para serem aten­didos por falta de mé­dicos su­fi­ci­entes ou de re­cursos para pagar os me­di­ca­mentos ou exames cada vez mais caros; o Go­verno corta os or­ça­mentos do Es­tado So­cial, fecha es­colas, des­trói hos­pi­tais, reduz sa­lá­rios e re­formas, au­menta im­postos, de­fende o pa­ga­mento de dí­vidas para en­ri­quecer os mais ricos... E por aí vai, que a lista é in­finda.

Antes havia so­fri­mentos, mas Por­tugal no 25 de Abril de 1974 co­meçou a cor­rigi-los. A es­pe­rança flo­resceu se­cando as lá­grimas de quem so­fria. Surgiu a so­li­da­ri­e­dade no lugar da ca­ri­dade de quem tinha mais. Até o fado foi in­va­dido por novas po­e­sias que fa­lavam dos idosos com ter­nura, dos «putos» com ale­gria, de uma vida que se trans­for­mava. Sur­giram leis contra a vi­o­lência, contra os pre­con­ceitos nas­cidos da ig­no­rância, para a pro­tecção dos mais frá­geis – as cri­anças, os do­entes, os idosos, os sem re­cursos. Na­quele tempo eram poucos os que di­ziam «ai, como eu sofro!». Sempre olhá­vamos quem es­taria pior do que nós pen­sando em di­vidir com eles o pouco que tí­nhamos. Olhá­vamos mais longe, para lá das fron­teiras de Por­tugal, para ou­tros povos que ainda não ti­nham li­ber­dade, ou que eram ví­timas de ca­tás­trofes na­tu­rais.

Por­tugal foi en­ga­nado pela União Eu­ro­peia e pelos que, em seu nome, as­si­naram os tra­tados da CEE, como o Acto Único, que anu­laram a so­be­rania das na­ções. Já em 2002 o The Eco­no­mist le­van­tava a questão: «para que serve uma Eu­ropa que é cada vez mais uma cópia dos EUA?»

A glo­ba­li­zação, ao servir de ex­pan­si­o­nismo norte-ame­ri­cano, me­di­o­crizou a Eu­ropa que vestiu um mo­delo ina­de­quado co­brindo os seus va­lores tra­di­ci­o­nais. Através da mo­derna tec­no­logia o lin­guajar pro­du­zido pelos em­pre­sá­rios dos EUA tornou-se o idioma do­mi­nante no mundo. Em Lisboa os avisos no Metro são dados pri­meiro em in­glês, por gen­ti­leza com os tu­ristas. A po­pu­lação, que só com­pre­ende o por­tu­guês com as suas nu­ances co­lo­niais, que se amanhe. Sen­tindo-se re­jei­tada olha para dentro de si e pensa: «ai, como eu sofro!»

O Go­verno, de­pois de ouvir crí­ticas do FMI e da Troika sobre o ex­ces­sivo rigor com que des­truiu os meios de pro­dução, o en­sino desde o bá­sico às Uni­ver­si­dades, o sis­tema de saúde pú­blica, para sus­tentar uma classe fi­nan­ceira que ame­alha nos bancos es­tran­geiros, agora faz o dis­curso san­tarrão com «pena de quem sofre». Um vale de lá­grimas ameaça Por­tugal de afo­ga­mento.

Assim não vai. Vamos reunir as forças e mar­char para en­con­trar um ca­minho a sério. O pe­sa­delo tem de acabar.




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