Notícias do meu país

Correia da Fonseca

Já lá vão os tempos em que se pe­diam no­tí­cias do país ao vento que então pas­sava. Agora há duas enormes di­fe­renças em re­lação a essa al­tura: há de­mo­cracia e há uma te­le­visão mui­tís­simo de­mo­crá­tica, pelo que é a ela, à te­le­visão, que di­ri­gimos as nossas per­guntas. Me­lhor ainda, nem é pre­ciso per­guntar: ela pró­pria, a te­le­visão, toma a ini­ci­a­tiva de nos vir dando as tais no­tí­cias pra­ti­ca­mente a toda a hora, e é pre­ciso dizer que nos úl­timos tempos as no­tí­cias, ainda há bem pouco tempo de­pri­mentes, me­lho­raram muito. Convém pre­cisar, para me­lhor en­ten­di­mento dos factos, que no­tí­cias não são apenas as que chegam in­cluídas nos te­le­no­ti­ciá­rios de ro­tina mas também as que vêm por via in­di­recta, di­gamos assim. Por exemplo: ocorrem umas coisas de­sa­gra­dá­veis num grande banco e daí pode advir al­guma pre­o­cu­pação para o ci­dadão te­les­pec­tador e cró­nico pa­gador, mas logo nos ecrãs dos te­le­vi­sores surge o se­nhor pri­meiro-mi­nistro em trajo des­por­tivo, me­lho­rado pelo bronze al­garvio, com o ar de não estar nada ra­lado com o que se passa, e todos fi­camos sos­se­gados porque aquele bom as­pecto é uma boa no­tícia. Porém, este é apenas um exemplo re­cente, pois há muitos mais. Bem nos dizia um se­nhor de­pu­tado do PSD, há se­manas atrás, que o país está me­lhor, afir­mação aliás cor­ro­bo­rada por ín­dices de me­lhoria, de con­fi­ança e de re­toma, da ordem dos zero vír­gula não sei quantos, coisa ob­vi­a­mente subs­tan­cial. Mas não é apenas a pa­lavra do de­pu­tado pêès­se­daico a in­formar-nos do facto: é também a te­le­visão a dizer-no-lo à sua es­pe­cí­fica ma­neira. Pois, como para sempre nos foi lem­brado por Edu­ardo Guerra Car­neiro, isto anda tudo li­gado.

Ao virar da uma es­quina

A questão é que, tanto quanto me pa­rece, a te­le­visão mudou en­quanto do­cu­mento quo­ti­diano da re­a­li­dade por­tu­guesa. Houve um tempo nada dis­tante em que os te­le­no­ti­ciá­rios vi­nham in­formar-nos quase dia após dia de novos en­cer­ra­mentos de em­presas, de mais de­sem­pre­gados, de filas de do­entes for­ça­da­mente ma­dru­ga­dores às portas dos cen­tros de saúde, de novos lu­gares onde mãos ge­ne­rosas davam co­mida aos cha­mados ca­ren­ci­ados, de mais des­pejos, de mais de­ses­peros. Era uma diária dose de tris­tezas e por ela se via que o país não ia nada bem, sendo certo que por ali cla­ra­mente se per­cebia que o país não é um con­junto de bo­nitas pai­sa­gens mas sim de gente viva e, na­quelas cir­cuns­tân­cias, so­fre­dora. Porém, se não me en­gano ou, di­zendo-o de outro modo, se o te­le­visor não me en­gana, esse tempo já passou ou os re­fe­ridos mo­tivos de tris­teza se ate­nu­aram subs­tan­ci­al­mente. Na ver­dade, não me tenho aper­ce­bido de que a TV nos haja fa­lado re­cen­te­mente de por­tu­gueses com fome ou sem tecto, de ma­gotes de de­sem­pre­gados à porta dos cen­tros in­ven­tados para os en­tre­terem, de pais idosos a dor­mirem em co­zi­nhas porque ce­deram o quarto aos fi­lhos sem em­prego e sem quarto. É certo que con­ti­nuam a surgir des­graças: de­sa­venças duras, de­sas­tres, até cri­anças a mor­rerem em em água a ferver. Mas são casos pon­tuais, meros des­cuidos, num quadro te­le­vi­sivo que su­gere in­versão de ca­minho: menos de­sem­prego, muitos por­tu­gueses nas praias, o tu­rismo tão ani­mado que até grupos de sau­dá­veis tu­ristas se aplicam a agredir ho­mens da GNR. E o mais sin­to­má­tico: festas «po­pu­lares» por todo o lado com acor­deões, mú­sica da área pimba e me­ninas de cal­ções muito cur­ti­nhos, es­pe­remos que bem pagas. À noite temos con­cursos de dança ou de canto em caldo de «gente bo­nita». São, estas e ou­tras, ima­gens de um país feliz que não é o que vemos quando saímos à rua mas que a te­le­visão pa­rece ter des­co­berto para be­ne­fício da nossa tran­qui­li­dade. Até que, indo nós pelo pas­seio afora, ao virar de uma es­quina de­pa­ramos com uma mão es­ten­dida, um ves­tuário em far­rapos e um monte de car­tões que hão-de servir de abrigo du­rante a noite. Aper­ce­bemo-nos então de como é im­por­tante con­ti­nuar do lado certo. De como são en­ga­nosas as boas no­tí­cias que a te­le­visão nos traz por for­mu­lação ou por omissão. Talvez porque esta não é apenas a «silly se­ason», ex­pressão eu­ro­a­tlân­tica que está na moda, mas também e prin­ci­pal­mente uma «liar se­ason». Que aliás se alonga por todo o ano.




Mais artigos de: Argumentos

Derrota por falta de comparência

Num jogo, por mais inócuo ou mais sério que seja, não há que fugir de três hipóteses definitivas e finais: ou se ganha, ou se perde, ou se empata. Num jogo há, sempre, quem defenda a sua camisola, no lado oposto de quem defende a dele, ou deles. Em alguns...