Ucrânia na curva da História

Hugo Janeiro

O desenvolvimento da crise ucraniana confirma a análise e advertências do nosso partido sobre o carácter do poder instalado pelo imperialismo em Kiev, o propósito de saque e de instrumentalização da Ucrânia no cerco à Rússia e, simultaneamente, o ensaio da instalação de regimes dirigidos a reprimir o movimento operário e popular que resiste à ofensiva em curso no contexto da crise capitalista.

O processo de ilegalização movido contra o Partido Comunista da Ucrânia (ver entrevista nesta edição) evidencia «um quadro de constante e crescente repressão e violação das liberdades e direitos civis fundamentais», como assinalou o PCP em comunicado divulgado a 26 de Julho. Neste contexto, o PCU tem sido particularmente visado – destruição de sedes, ataques, assassinato e tortura de militantes e dirigentes –, mas outras forças sociais e políticas incapazes de se manterem impávidas perante a junta fascista e as suas consequências são igualmente alvo da sanha persecutória.

A elaboração de listas de pessoas e empresas (russas, sobretudo) consideradas non gratas e a recente aprovação de legislação sancionatória; a proliferação de acusações de traição nacional, visando inclusivamente a área das artes e espectáculos; a criação de estruturas oficiais encarregues de levar à condenação indivíduos vinculados ao «antigo regime» e a russofobia elevada a doutrina estatal, são elementos que sublinham aquele aspecto.

A campanha punitiva contra o Leste da Ucrânia e o seu agravamento – de acordo com a ONU, que adverte para o conservadorismo dos cálculos, o número de mortos duplicou nas últimas semanas aproximando-se já dos 2100, e os feridos rondam os cinco mil –, incluindo o cerco e bombardeamento de grandes cidades (Donetsk e Lugansk têm sido constantemente fustigadas e neste última o fornecimento de electricidade, água potável e víveres já não se efectua), para além de atestar a natureza violenta, antidemocrática e xenófoba dos golpistas e de comportar graves perigos de alastramento do conflito e crescente provocação à Rússia, demonstra, ainda, que o poder em Kiev e aqueles a quem este serve não olham a meios para cumprir os objectivos traçados.

Que o grande capital financeiro aliado à classe dominante ucraniana está dispostos a tudo, é um facto indesmentível. O nebuloso derrube do avião da Malasyan Airlines, em Julho, o assalto à casa dos sindicatos em Odessa, em Maio, as fotos e vídeos (disponíveis na Internet) de grupos armados a executarem antifascistas do Leste da Ucrânia, ou a proliferação dos modernos condottieri (o homem mais rico da Ucrânia, Rinat Akhmetov, dispõe de um corpo paramilitar privado que combate ao lado de mercenários da ex-Blackwater e dos nazi-fascistas da Guarda Nacional contra os antigolpistas do Baixo Don), são exemplos de um caminho criminoso aberto pelo golpe que culminou no derrube de Viktor Iánukovitch.

 

Ingerência criminosa

 

A espiral autoritária que hoje se impõe fazendo temer a repetição de capítulos da história que julgávamos irrepetíveis no rescaldo da segunda grande guerra mundial, enquadra-se no guião da intentona ocorrida entre Novembro de 2013 e Fevereiro de 2014, apoiada abertamente pelo imperialismo. Importa reter que para a UE e para os EUA, Viktor Iánukovitch até poderia ter servido os seus interesses estratégicos. Pese embora a posterior campanha mediática de diabolização da figura e do figurino, a verdade é que o bloco imperialista europeu esteve preste a subscrever um acordo de associação com o então presidente ucraniano.

Foi a recusa de Iánukovitch, no final de Novembro de 2013, em assinar, na Cimeira de Vilnius, um documento draconiano de subjugação semelhante ao subscrito pela Geórgia e Moldávia, que enfureceu os líderes da UE e fez regressar os protestos à Euromaidan, que estranhamente perdiam gás, por assim dizer.

O chefe de Estado democraticamente eleito ousou mesmo dirigir-se a Moscovo, no início de Dezembro, e estabelecer com a Rússia um compromisso que garantiu 10 mil milhões de euros aos depauperados cofres ucranianos, bem como uma bonificação de 30 por cento no preço do gás.

Bruxelas e Washington não podiam aceitar a afronta e até à consumação do derrube do governo da Ucrânia, altas figuras do aparato imperialista – a responsável da política externa da UE, a baronesa britânica Catherine Ashton, a subsecretária de Estado dos EUA para os Assuntos Euro-Asiáticos, Victoria Nuland, ou o caudilho das conspirações e convicto nazi-fascista John McCain –, foram a Kiev manifestar empenho no derrube violento de Viktor Iánukovitch.

Nuland, soube-se depois de divulgada uma conversa com o embaixador dos EUA em Kiev, distribuiu aos ocupantes da euromaidan bem mais que as bolachas que fizeram notícia em Dezembro (confessou que os norte-americanos já haviam investido cinco mil milhões de dólares na subversão). Ashton, revelou-se também através de uma conversa telefónica tornada pública, ignorou as informações do ministro estónio dos Negócios Estrangeiros sobre a matança de 22-23 de Fevereiro no centro de Kiev, atribuída prontamente ao «regime de Iánukovitch», e que hoje ninguém duvida que tenha sido da responsabilidade do Sector de Direita, organização nazi-fascista que dispunha de atiradores furtivos nos telhados dos edifícios adjacentes à euromaidan.

A barbárie foi pois orquestrada directamente pelas potências do eixo transatlântico. È lapidar que os líderes do levantamento e dos partidos nazi-fascista Svoboda e nacionalista Udar foram a Munique, no início de Fevereiro, receber instruções para o assalto final. À narrativa golpista não faltou sequer um episódio de traição cínica. Nas vésperas da matança de 22-23 de Fevereiro, os ministros dos Negócios Estrangeiros da Polónia, Alemanha e um representante das Relações Externas da França, patrocinaram um acordo da chamada «oposição» com Iánukovitch. Como se viu, para não ser cumprido.

 

Velha receita

 

O desenlace é o conhecido mas os desenvolvimentos diários deixam antever novos e mais graves episódios. A Ucrânia é hoje um território em guerra, a saque e cuja soberania é uma caricatura que faz lembrar as trágicas pilhagens e os poderes vende-pátrias que se apossaram das riquezas e do progresso dos territórios da URSS na sequência das derrotas do socialismo.

A promessa da adesão da Ucrânia à UE com a pompa de um estado-membro de pleno direito está por calendarizar, mas a política de rapina não esperou por formalidades e instalou-se em Kiev. Traz consigo uma gula insaciável que o povo e os trabalhadores ucranianos vão pagar com a destruição dos serviços públicos e do que resta do sector empresarial do Estado, com a alienação dos recursos naturais e do aparelho produtivo nacional, com cortes em direitos sociais e laborais e nos seus rendimentos. É previsível que a corda de miséria e desigualdades, estendida por Iánukovitch e onde o imperialismo e os nazi-fascistas encontraram terreno fértil para manipular as legítimas aspirações dos trabalhadores e do povo ucranianos, como aliás tem assinalado o PCP, se estique até ao limite desencadeando tumultos sociais com raízes naa subalternização dos interesses populares.

O esbulho, note-se, é feito a pretexto de reformas estruturais e empréstimos do FMI e da UE. O futuro é tanto mais preocupante quanto se sabe que a Ucrânia está falida e o sistema financeiro à beira da bancarrota. Paradoxalmente, as reservas de ouro do país foram transportadas para solo norte-americano, a título de penhor.

Na subalternização da Ucrânia é de salientar, ainda, a crescente provocação da Rússia pela NATO e a militarização das fronteiras de Moscovo, dando razão aos que, como os comunistas portugueses, advertiram para o significado da capitulação de mais um país face à cavalgada imperialista para Leste. Desde o desaparecimento da URSS, este é um processo constante que se salda já na adesão de 12 países da Europa Central e Oriental à Aliança Atlântica, estrutura que sob a batuta dos EUA encara a Rússia como o obstáculo militar a ultrapassar na perpetuação da hegemonia mundial norte-americana.

Hegemonia que se encontra ameaçada por uma crise capitalista que o imperialismo procura superar através da repartilha do mundo e do aumento da exploração do trabalho. Não se espere que a burguesia transnacional peça licença para empurrar os povos para um conflito de escala planetária. A Ucrânia é um passo perigoso e pode vir a ser uma aventura belicista de efeitos incalculáveis. O regime instalado é um ensaio e um aviso de que o grande capital financeiro não hesitará em voltar a recorrer ao fascismo para esmagar os trabalhadores e as camadas sociais antimonopolistas que ousarem resistir.

 
 

 

 

Falsificação, branqueamento e anticomunismo

Analisando a promoção da primeira grande guerra mundial e a traição da social-democracia, Lénine salientou a deturpação do orgulho nacional pela burguesia para conduzir os povos ao chauvinismo e às armas. Duas décadas depois, Georgi Dimitrov frisou que o advento do fascismo na antecâmara da segunda grande guerra, para além de travestir-se de um falso patriotismo, aproveitou a debilidade do combate ideológico travado face à exposição das massas desesperadas aos detritos ideológicos do capitalismo putrefacto. Estes são ensinamentos que conservam validade e acutilância, não apenas para os comunistas, mas para os democratas e defensores da paz.

A «grande Ucrânia» com quilómetros a perder de vista a Oeste e a Este de Kiev, habitados por ucranianos de longa linhagem forjada em solo pátrio, é um mito. Parte integrante, aliás, da falsificação e branqueamento da história que acompanham a escalada nazi-fascista no país.

Semelhante argumentação repetiu Stepan Bandera, colaboracionista com o ocupante nazi e implicado no extermínio de milhares de pessoas pelas hordas fascistas alemãs. Nos últimos dez anos, Bandera tem sido glorificado com monumentos (cerca de 20 em todo o território), museus (cinco) e toponímia (14 ruas e avenidas). Iniciativas similares de promoção de alegados símbolos da identidade nacional são, por exemplo, a recriação laudatória das marchas da divisão ucraniana das Waffen SS.

É curioso que o líder da Revolução Laranja de 2004, Viktor Iúchenko, atribuiu a Bandera, em 2010,o título de Herói Nacional, e que Viktor Iánukovitch e o Partido das Regiões, posteriormente, tentaram implementar uma lei que criminalizava a celebração e revisão dos crimes e implicados na ocupação hitleriana.

A reabilitação do nazi-fascismo na Ucrânia tem sedimento, portanto, mas a sua ascenção corresponde a condições concretas e à necessidade do imperialismo acelerar a tomada da Ucrânia.

O tempo era escasso para recuperar revoluções coloridas, que na Ucrânia, ao contrário do ocorrido na Sérvia ou na Geórgia, revelou-se um processo com avanços e recuos, atrasando os propósitos de Washington e Bruxelas. Recorde-se que além do permanente perigo de lhe ver escapar o poder «laranja», em 2006 o imperialismo assistiu a vigorosas manifestações contra a presença da NATO no país.

Eram por isso precisas organizações capazes de abrir caminho ao arrebatamento do poder pela força. O Svoboda, criado em 1991 com o nome de Partido Social-Nacional Ucraniano, histórico apoiante das manobras «laranja» e incansável pregador antissemita e antibolchevique, foi, com o Sector de Direita – resultante da convergência de vários grupos paramilitares financiados e treinados de antevéspera –, escolhido para servir de batalhão de choque do imperialismo.

Como prémio pelos serviços, dirigentes de ambos os partidos partilham responsabilidades governativas com polidos euro-entusiastas, detendo lugares como um vice-primeiro-ministro, um ministro da Defesa, titulares no Ambiente, Agricultura, Educação e Juventude, a procuradoria-geral, os serviços secretos e a Comissão de Defesa Nacional.

Semelhante historial tem o anticomunismo, do qual a tentativa de ilegalização do PCU em desenvolvimento é apenas uma expressão. A destruição de estátuas de Lénine, aos heróis soviéticos e à Grande Guerra Pátria levadas a cabo em paralelo com a ocupação do centro de Kiev (e só não foram mais porque os comunistas e o povo organizaram elucidativas concentrações e vigílias em sua defesa), entre o final de 2013 e a consumação do golpe, são a sobremesa de um repasto cozinhado no caldeirão do antisovietismo e da criminalização do comunismo.

Neste âmbito, a intoxicação das massas é feita com falsidades acerca da vontade secular dos ucranianos em abandonarem a URSS, ocultando que, mesmo em 1991, 70,2 por cento de um total de 31,5 milhões de ucranianos votantes (83,5 por cento do total) pronunciou-se pela manutenção da União Soviética e da Ucrânia no espaço federal das repúblicas socialistas. É servida, também através da propagação de mentiras acerca das causas e responsáveis da fome dos anos 30 do século passado na Ucrânia, as quais, apesar de não resistirem à confirmação dos factos, vão-se estabelecendo como verdades na memória colectiva formatada.

Criminalização, aliás, que não é inédita e reforçou-se no dobrar do século XX justamente na «Europa da democracia» a que a junta fascista ucraniana quer pertencer, com resoluções equiparando o comunismo e o nazismo, a ilegalização de partidos e juventudes partidárias, a proibição de símbolos comunistas e a revisão da história.

O PCP tem frisado que o anticomunismo é sempre antidemocrático. Os acontecimentos na Ucrânia acompanhando o crescimento eleitoral de organizações de extrema-direita e nazi-fascistas na Europa, colocam aos comunistas e aos seus aliados a necessidade de reforçarem o combate político e ideológico no momento em que a curva da história parece conduzir os povos para o precipício. Mas toda a História é a da luta de classes e, como insiste o nosso Partido, grandes perigos coexistem com grandes potencialidades revolucionárias.





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