Em defesa da Escola Pública
e do regime democrático

Uma luta de todos

Rita Rato

Este artigo pretende ser um contributo para a análise e caracterização da actual ofensiva contra a Escola Pública, as suas múltiplas dimensões e medidas concretas, as suas consequências e os seus responsáveis. A luta que hoje travamos pela valorização da Escola Pública exige que apelemos a todos os democratas e patriotas para que se juntem ao PCP neste objectivo de defesa do regime democrático.

Os cortes no investimento público à educação tiram a responsabilidade ao Estado e degradam a escola pública

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Devido à necessidade de aprofundamento de algumas matérias e da sua vastidão, optou-se por analisar apenas o ensino não Superior, embora importe acompanhar também a situação actual do Ensino Superior Público e do sistema científico e tecnológico nacional.

Quase dois meses depois do início do ano lectivo, muitos podem pensar que a razão pela qual milhares de alunos ainda não têm professor é «o erro» do ministro da Educação, mas na verdade, os problemas na colocação de professores são apenas a «ponta do icebergue».

A instabilidade, a ausência de respostas efectivas, os problemas e atrasos na colocação de professores, funcionários, psicólogos e outros técnicos são inseparáveis da política mais geral de desinvestimento e degradação da Escola Pública e do seu papel emancipador.

O desespero com que milhares de famílias foram (e estão) confrontadas neste início do ano lectivo sem resposta para os seus filhos é o resultado directo da política de direita desenvolvida por sucessivos governos PS, PSD e CDS e de forma particularmente grave pelo actual Governo.

A opção por não integrar nos quadros das escolas todos os professores, funcionários, psicólogos que respondem a necessidades permanentes e a aposta no recurso ilegal à precariedade é a política da degradação das condições de funcionamento das escolas, da destruição das funções do Estado, do agravamento da exploração e da desvalorização do trabalho.

Muitas vezes, a intensidade da ofensiva e a velocidade dos dias leva-nos a «olhar para a árvore esquecendo a floresta», mas por querermos construir uma resposta alternativa ao rumo de desastre nacional, somos obrigados a realizar uma análise mais profunda sobre o papel da Escola Pública, das funções sociais do Estado e da actualidade dos valores de Abril.

Guião para a Reforma do Estado
já está a ser posto em prática


Os dias que vivemos de descredibilização da Escola Pública são inseparáveis do projecto ideológico deste Governo, conforme consta no dito Guião para a Reforma do Estado, em que a educação é excluída das funções sociais do Estado. O Governo PSD/CDS batizou este documento de «Guião para a Reforma do Estado», mas poderia perfeitamente chamar-se «aprofundada ofensiva da política de direita». Sob o nome pomposo de «Guião», na verdade o que este documento sustenta é a transformação de um direito consagrado na Constituição – direito à educação – num lucrativo negócio para os grupos económicos, remetendo a Escola Pública para o lugar de «pacote mínimo de serviços educativos» a prestar àqueles que provêm de famílias com menores recursos económicos e sociais.

Recordemos que em Novembro de 2013 o Governo PSD/CDS aprovou o novo Estatuto do Ensino Particular e Cooperativo, abandonando a sua natureza supletiva. Isto é, até 2013 o financiamento público através de contratos de associação que garantiam que os estudantes não pagavam qualquer valor e o Estado assumia o custo total, apenas poderia acontecer onde não existisse resposta pública. Agora, com estas alterações o Governo ignora e desvaloriza a rede pública existente e a sua capacidade de resposta, e assegura financiamento público à escola privada mesmo quando a rede pública existe e representa uma resposta efectiva.

E mesmo se, até à data, não criou o dito «cheque-ensino», o Governo PSD/CDS encontrou estas formas alternativas de assegurar financiamento público aos grupos privados da educação. Vários são os exemplos que confirmam esta política de degradação da escola pública e favorecimento da escola privada nos concelhos de Coimbra, Caldas da Rainha, Ourém, Vila Nova de Gaia, entre outros. Em muitas escolas públicas não é autorizada a constituição de turmas, designadamente de vias profissionalizantes, mas tais são autorizadas em colégios privados. Tal significa que os estudantes não pagam qualquer mensalidade ou valor mas o financiamento público é desviado da escola pública para a escola privada. Aliás, não será por acaso que PSD e CDS têm recorrentemente proclamado a ideia de que «não interessa se é público ou privado desde que o serviço seja prestado».

Perante isto, somos obrigados a concluir que também por esta via o Governo desenvolve uma política contra a Constituição, que no seu artigo 75.º consagra que cabe ao Estado «assegurar uma rede de estabelecimentos pública de ensino que cubra as necessidades de toda a população».

Podemos também concluir que os cortes no investimento público à educação – que entre 2011 e 2015 ultrapassam os 2000 milhões de euros – materializam a desresponsabilização do Estado, resultam na degradação da qualidade pedagógica e das condições materiais e humanas de funcionamento das escolas, mas sustentam um objectivo ideológico mais profundo de perversão do papel democrático da Escola Pública.

É também à luz desse objectivo que, à margem da Lei de Bases do Sistema Educativo, o Governo criou vias paralelas de conclusão da escolaridade obrigatória, direccionando os estudantes em função das suas condições socioeconómicas para o ensino dual ou cursos de formação geral, negando objectivamente a igualdade de oportunidades e a possibilidade de acesso ao Ensino Superior em condições de igualdade. Mesmo no seio da Escola Pública esta diferenciação foi sendo generalizada tendo em conta os territórios e as populações específicas onde estão integradas e a que respondem. De facto, o alcance deste caminho, que começou a ser trilhado pelo anterior governo PS, representa objectivamente a desfiguração do papel da Escola Pública, pois assegura a uma minoria o acesso ao conhecimento e à maioria dos estudantes apenas «formação profissional de banda estreita», reproduzindo e agravando as desigualdades económicas e sociais, estimulando uma maior elitização do ensino público e colocando em causa a igualdade de oportunidades para todos.

Colocação de professores
o modelo da precariedade

A qualidade da Escola Pública depende objectivamente do respeito e valorização dos direitos dos seus profissionais. Por isso mesmo, medidas como o fim da gestão democrática das escolas; a desvalorização sócio laboral da profissão docente e o ataque ao Estatuto da Carreira Docente; a generalização da precariedade; a imposição da dita Prova de Aptidão de Conhecimentos e Capacidades para acesso a concurso, carreira e profissão, criadas pelo anterior governo PS e aprofundadas agora pelo actual Governo são parte integrante da política de degradação e desmantelamento da Escola Pública e do seu papel emancipador.

De 2004 a Agosto de 2014 cerca de 40 000 professores saíram do sistema público de educação por via da aposentação, e no mesmo período terão sido vinculados cerca de 2600 professores. Tal confirma que hoje milhares de horários que resultam de necessidades permanentes das escolas, fruto das aposentações de professores, estão a ser supridos através de contratos temporários, gerando instabilidade agora e certamente no próximo ano lectivo. Outras medidas como o aumento do número de alunos por turma, a reorganização e desvalorização curricular, o encerramento de escolas1 e a imposição de mega-agrupamentos, resultaram desde 2011 no despedimento de mais de 20 000 professores contratados. É necessariamente a tudo isto que os problemas na colocação de professores no início do ano lectivo devem ser associados, pois nos últimos anos a excepção passou a ser regra, e aquilo que poderiam ser problemas pontuais numa ou outra escola passaram a ser a marca própria do arranque das aulas na maioria das escolas públicas.

A negação da vinculação dos professores que suprem necessidades permanentes e a desresponsabilização do Ministério da Educação na colocação dos professores aconteceu em paralelo com a desvalorização do concurso nacional e aposta na generalização da Bolsa de Contratação de Escola (BCE) e outras formas de «Oferta de Escola» por via da promoção dos ditos «Contratos de Autonomia» e das Escolas Territórios Educativos de Intervenção Prioritária (TEIP). Estas escolas representam já um terço dos agrupamentos de escolas públicas, e como tal o processo de colocação de professores é dirigido pelos Directores. A esta opção de atirar a responsabilidade para as escolas deve ser associado o objectivo de desresponsabilização do Estado, também presente na aposta em transferir competências para as autarquias, originando situações de desigualdade nas respostas educativas existentes no território nacional.

Podemos mesmo afirmar que a opção por estas formas de contratação visou na verdade agravar a precariedade e impedir a contratação efectiva de milhares de professores, e com isto a redução do financiamento público à educação.

A colocação de professores trata de concursos públicos para acesso a emprego público, que, logo, deve obedecer a normas de transparência e objectividade que não podem ser violadas. Tal não tem acontecido, e aliás, o ministro da Educação recusa reiteradamente a publicitação das colocações já realizadas, das bolsas de escola existentes e das colocações que vão acontecendo. Esta situação prova que apenas o concurso nacional a partir de lista ordenada em função da graduação profissional dos candidatos (o menos imperfeito dos critérios), é o sistema mais justo e funcional na colocação de professores. Quer as ditas «ofertas de escola» ou as «BCE» recorrem a critérios subjectivos que desrespeitam a lei, revelam falta de transparência nos processos de selecção de professores, e possibilitam a existência de colocações múltiplas de um candidato. Este modelo não serve as necessidades das escolas, nem dos alunos, nem dos professores, e passados quase dois meses do início do ano lectivo a colocação de professores é um problema sem fim à vista, com impacto na vida de mais de meio milhão de crianças e jovens.

Reprodução das desigualdades

Um dos problemas de fundo do sistema educativo público é a limitação profunda da acção social escolar (ASE). O actual regime de ASE não assegura condições mínimas de igualdade, pois condiciona a atribuição destes apoios à atribuição do abono de família, designadamente ao 1.º, 2.º e 3.º escalão. Desde 2010, por responsabilidade do anterior governo PS e do actual Governo PSD/CDS, mais de 567 000 crianças e jovens perderam o abono de família e com isto perderam também o direito ao apoio da ASE para pagamento da alimentação, manuais e materiais escolares, transporte.

Nos tempos de retrocesso que vivemos, milhares de famílias não têm condições de fazer face aos custos exorbitantes com os manuais escolares e não têm também qualquer apoio da ASE. E mesmo os alunos com escalão A não têm acesso à totalidade dos manuais escolares porque o Governo PSD/CDS não assegura o seu pagamento integral. Várias têm sido as denúncias de que muitos jovens frequentam as aulas sem acesso aos manuais escolares durante todo o ano lectivo. Como se não bastasse, no presente ano lectivo o Governo PSD/CDS eliminou o pagamento a «actividades de complemento curricular» no âmbito da ASE, que previa o apoio a visitas de estudo programadas no âmbito das actividades curriculares. Tal obriga os alunos com escalão A e B da ASE a pagar os custos, ou caso contrário é-lhes negado o acesso às mesmas experiências que os restantes colegas. Esta é mais uma medida discriminatória, que segrega os alunos em função das suas condições económicas e aprofunda as desigualdades sociais no seio das escolas.

E a escola não é uma ilha isolada da sociedade, e por isso o impacto do empobrecimento e da agudização da pobreza e da exclusão social está presente no seu dia-a-dia e nas condições de aprendizagem dos alunos. Em 2013, o Governo assumiu que cerca de 13 000 crianças estavam sinalizadas com carências alimentares graves, fazendo na escola a única refeição quente do dia.

De facto, a realidade prova que cada medida deste Governo torna a Escola Pública num espaço cada vez mais desigual e menos inclusivo.

Educação Especial
discriminações e violação de direitos

A situação das crianças e jovens com necessidades especiais é marcada por negação de direitos e discriminações várias. Desde 2008 que o apoio aos alunos com necessidades especiais é assegurado apenas às crianças e jovens com necessidades permanentes, excluindo os alunos com necessidades transitórias. O Decreto-Lei n.º 3/2008 foi mais uma criação do PS que contou desde sempre com o apoio do PSD e CDS, hoje responsáveis pela sua aplicação e agravamento. Desde então, milhares de crianças e jovens ficaram excluídos de apoios fundamentais à sua inclusão pedagógica e social e muitos outros estão confrontados com respostas significativamente insuficientes.

O PCP desde sempre afirmou críticas profundas a este diploma, pela imposição de «unidades especializadas e escolas de referência» em detrimento de uma resposta centrada no aluno. À escola cabe adaptar-se à diversidade dos seus alunos, o que impõe uma reforma radical da escola em termos de currículo, avaliação, pedagogia, meios humanos, turmas reduzidas, formação de professores, constituição de equipas multidisciplinares, adequação dos edifícios e equipamentos, acção social escolar efectiva, gestão democrática da vida escolar e mentalidades abertas à inovação e à mudança. Ora, tal exigiria naturalmente o reforço do investimento público à educação, mas na verdade, entre 2011 e 2014 o financiamento público à «Educação Especial» sofreu uma redução de 35,8 milhões de euros, menos 15,3% das verbas disponíveis. Evidentemente que estes cortes têm tido impacto directo no número e na qualidade dos apoios assegurados.

Os últimos dados disponíveis2, referentes ao ano lectivo 2012/2013, referem que nas escolas regulares estavam sinalizados cerca de 60 756 alunos com necessidades especiais. Contudo, se nesse ano lectivo estavam colocados 5652 docentes de educação especial, no ano seguinte eram 5345, e no actual apenas 4838, apesar do alargamento da escolaridade obrigatória e do aumento do número de alunos.

Já no presente ano lectivo, muitos alunos com necessidades especiais estão ainda impedidos de ir à escola porque não foram contratados os professores de educação especial e outros técnicos essenciais. Esta realidade é inaceitável, pelo que ao não garantir as condições mínimas de inclusão o Governo PSD/CDS é responsável pela discriminação destas crianças e jovens e pela degradação do seu processo pedagógico, violando a Constituição.

Esclarecimento, mobilização e luta

A Escola Pública, Gratuita e de Qualidade para todos é uma das mais importantes conquistas da Revolução de Abril e um pilar do regime democrático. Na Constituição e na Lei de Bases do Sistema Educativo está consagrada como um instrumento de emancipação individual e colectiva.

Por isso mesmo, os tempos que vivemos de degradação da Escola Pública, de negação da igualdade de oportunidades e do agravamento das desigualdades, representam simultaneamente a degradação do próprio regime democrático.

Urge romper com este caminho de retrocesso civilizacional e exigir que o Estado cumpra a sua obrigação de assegurar todas as condições materiais e humanas necessárias ao bom funcionamento da Escola Pública para concretização do seu papel de instrumento de emancipação individual e coletiva.

Importa por isso valorizar todas, e são muitas, as lutas que de Norte a Sul do País têm sido desenvolvidas, mobilizando os estudantes, professores, funcionários e técnicos, pais e populações pela realização de obras nas escolas, contra o encerramento de escolas e criação de mega-a-grupamentos, contra o fim do passe escolar, pelo combate à precariedade e valorização da profissão docente, pelo fim da PACC, pela colocação de todos os professores, funcionários e técnicos necessários.

A defesa da Escola Pública é um dever de todos os democratas e patriotas deste país.

__________

1 Desde 2002, sucessivos governos PS, PSD e CDS encerraram cerca de 6500 escolas em todo o País.
2 Relatório Técnico – Políticas Públicas de Educação Especial, Conselho Nacional de Educação, pp. 22, 2014.

 



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