Nos bicos dos pés

Correia da Fonseca

Todos os ca­nais da te­le­visão por­tu­guesa par­ti­ci­param, ainda que por­ven­tura com in­ten­si­dades de­si­guais, nas fes­tivas co­me­mo­ra­ções me­diá­ticas da cha­mada Queda do Muro de Berlim em 1989. Foi, na­tu­ral­mente, o mo­mento per­feito para a re­e­dição de todas as fal­si­fi­ca­ções de­bi­tadas ao longo dos anos, antes e de­pois de 89, acerca do Muro, com ocul­tação das ra­zões que le­varam à sua cons­trução, das mo­vi­men­ta­ções po­lí­ticas que pre­ce­deram o seu der­rube e do sig­ni­fi­cado de tudo quanto se lhe se­guiu e foi muito. Com muita razão, a Queda do Muro foi en­ten­dida como acon­te­ci­mento em­ble­má­tico da der­rota da União So­vié­tica e do pro­jecto que a ca­rac­te­ri­zava pe­rante o ca­pi­ta­lismo im­pe­ri­a­lista, e isto de tal modo que pe­daços do muro der­ru­bado foram dis­tri­buídos como tro­féus um pouco por todo o mundo, es­tando um deles, por in­feliz sinal, guar­dado em Fá­tima, talvez ao lado de re­lí­quias de santos, pelo menos com um es­ta­tuto de su­ge­rida equi­pa­ração, o que pode co­lidir com o es­ta­tuto de apo­li­tismo que tão bem fica à Igreja de Roma e suas fi­liais. Es­cu­sado será su­bli­nhar que a de­voção dos media oci­den­tais pelo plu­ra­lismo e pela aber­tura a en­ten­di­mentos con­tra­di­tó­rios não foi tão longe que tenha agora re­fe­rido, se­quer fu­gaz­mente, as ra­zões que im­pu­seram à Re­pú­blica De­mo­crá­tica Alemã, Es­tado re­co­nhe­cido por toda a co­mu­ni­dade in­ter­na­ci­onal e com as­sento na ONU, a cons­trução de uma bar­reira fí­sica que per­mi­tisse o con­trolo eficaz da sua fron­teira oci­dental, por onde di­a­ri­a­mente se in­fil­travam os di­versos meios e agentes que tra­ba­lhavam para a sua eli­mi­nação. Mas houve muitas ima­gens, al­gumas ac­tuais, ou­tras com vinte e cinco anos de idade, todas exu­be­rantes e sig­ni­fi­ca­tivas. Era a His­tória es­crita pelos ven­ce­dores, neste caso no plano au­di­o­vi­sual.

As duas vi­tó­rias

É pre­ciso re­gistar também, con­tudo, que al­guns dias antes ocor­reram epi­só­dios, dois pelo menos, a que não será ex­ces­sivo con­ferir sig­ni­fi­cado his­tó­rico ainda que apenas no âm­bito da His­tória deste nosso País à beira-mar plan­tado, como se dirá re­pe­tindo um chavão an­tigo. A ava­liar pelo re­levo que a te­le­visão lhes deu e também pelo tom so­lene lhes foi dis­pen­sado por altas fi­guras do Es­tado, tratou-se de feitos no­tá­veis que sem que dés­semos por isso acon­te­ceram pra­ti­ca­mente nas nossas barbas, di­gamos assim. Um deles foi o da acção vi­to­riosa da nossa Força Aérea que re­peliu pronta e efi­caz­mente uma in­cursão in­va­siva de bom­bar­deiros russos que pe­ne­traram não no es­paço aéreo por­tu­guês, é certo, mas que se atre­veram a so­bre­voar o Atlân­tico Norte que, já se vê, é área que a NATO (re­pare-se: OTAN, Or­ga­ni­zação do Tra­tado do Atlân­tico Norte) de­cidiu en­carar como seu do­mínio, ainda que tra­tando-se de es­paço in­ter­na­ci­onal. Na ver­dade não che­gámos a ser in­for­mados de por­me­nores, mas é de crer que os aviões russos, que para mais ti­nham o des­coco de exibir nos lemes de di­recção a es­trela ver­melha do in­ter­na­ci­o­na­lismo pro­le­tário, coisa de todo em de­suso, te­nham fi­cado es­pa­vo­ridos ao avis­tarem a nossa força aérea pelo que ime­di­a­ta­mente re­ti­raram. É, pelo menos, uma cena assim que se adi­vinha do óbvio or­gulho que trans­pa­receu das pa­la­vras do se­nhor mi­nistro da De­fesa ao dar ao País in­for­mação do re­contro ha­vido. Quanto ao se­gundo epi­sódio his­tó­rico re­cen­te­mente ocor­rido, tratou-se da in­cursão de um navio russo não em águas ter­ri­to­riais por­tu­guesas, em ver­dade, mas em zona que lhes é pró­xima e por isso está con­fiada à vi­gi­lância lusa. Não era exac­ta­mente um cou­ra­çado ou um porta-aviões, nem se­quer era um navio de guerra mas sim um navio de es­tudo hi­dro­grá­fico, mas bem se sabe como os russos não são de fiar e por­tanto, zás!, logo ele foi en­qua­drado por ele­mentos da es­quadra por­tu­guesa até que tenha fi­cado su­fi­ci­en­te­mente longe. Era, em poucos dias, a se­gunda vi­tória por­tu­guesa sobre ele­mentos, mi­li­tares ou não, co­man­dados por Putin, o que foi fun­ci­o­nário da URSS e não se sabe bem se chegou a pedir a de­missão. Era, pois, so­bejo mo­tivo para que na te­le­visão por­tu­guesa sur­gissem ca­va­lheiros em me­ta­fó­ricos bicos dos pés. E eles, na­tu­ral­mente, não dei­xaram de acorrer à pa­trió­tica cha­mada.




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