…Mas as crianças, senhores!
Como todos facilmente terão entendido, o título acima é variação tosca de um conhecido verso de Augusto Gil na arquiconhecida Balada da Neve. O poema foi incluído num livro de leitura para o ensino primário adoptado durante o fascismo, e talvez valha a pena acrescentar que, pelo menos numa das últimas reedições desse manual, o poeta, então já falecido, foi vítima de censura, tendo a Balada sido amputada da sua última estrofe que havia sido escrita como segue: «Que quem já é pecador / sofra tormentos… enfim!/ Mas as crianças, Senhor,/ porque lhes dais tanta dor?!…/ Porque padecem assim?!» Pelos vistos, olhos vigilantes detectaram aqui uma insuportável inconformidade com os desígnios do Céu, uma impertinência que era preciso eliminar. Desta vez, porém, não se trata da queda de neve na brancura dos caminhos mas sim da tempestade que alguns fizeram desabar sobre o nosso País e o nosso povo. E a lembrança do poema foi motivada pela frequência com que na televisão portuguesa tem vindo a ser referida, num breve «spot» de publicidade institucional transbordante de solidariedade caritativa, a pobreza infantil que tem vindo a crescer entre nós, pelos vistos indiferente às constantes informações que apontam para uma melhoria da situação portuguesa e aos excelentes sentimentos do senhor primeiro-ministro, do senhor vice-primeiro-ministro e dos restantes elementos do bando que tão eficazmente vem governando o País.
Algumas coisas que sabemos
O curioso é que pensando bem, ou pelo menos tentando fazê-lo, parece possível suspeitar de que esta denúncia isolada da «pobreza infantil» como fenómeno desgarrado de todo o quadro em que evidentemente se insere pode ter como consequência uma espécie de ocultação da terrível pobreza «não infantil», digamos assim, que assola o País de lés a lés. Sabemos bem, contudo, muitas vezes pelo preço de terríveis experiências pessoais, que as crianças em situação de pobreza são, por regra geral e esmagadoramente maioritária, as crianças cujos pais ou outros familiares estão eles próprios tão afundados na pobreza que já não conseguem evitar que o contágio atinja os garotos. Serão, por exemplo, os filhos de pai e mãe desempregados, situação que já atinge muitos milhares de casais. Serão os filhos de trabalhadores cujos salários, de tão exíguos que são, não bastam para os situarem acima do limite técnico que é a fronteira burocrática da pobreza. Serão as crianças cujas famílias vêem os magros orçamentos devastados por doenças cujos custos por vezes enormes já não são suficientemente reduzidos pelo efeito SNS, ou pelos salários em atraso, ou pelas rendas por vezes monstruosamente aumentadas pela iníqua «nova lei do arrendamento urbano» que parece esquecida por muitos mas não decerto pelas suas vítimas. Não cabe aqui, nem por sombras, o inventário de todas as desgraças que um poder político sem remorsos tem vindo a fazer cair sobre a maioria dos portugueses, nem a tentativa de fazer a gigantesca tarefa de alinhar esse tristíssimo rol pode caber aqui. Mas conhecemos factos que podem ser citados a título exemplificativo. Sabemos que as muitas crianças que chegam à escola em jejum deixaram outros jejuns na casa de onde partiram, isto é, que a sua pobreza que a TV lembra é decorrente de outras pobrezas que a TV omite. Sabemos das crianças que engrossam a nuvem negra do abandono escolar em consequência da pobreza que não é apenas delas mas também e sobretudo dos pais. Sabemos, ou podemos saber se a isso nos dispusermos, das crianças que perderam o acesso ao lar confortável que um dia tiveram, das que deixaram de ter uns dias de férias junto do mar, até das que perderam o acesso a alguns medicamentos, porque os orçamentos familiares passaram a ser orçamentos de famílias pobres e os garotos receberam a negra herança do estatuto de pobreza. Sabemos, enfim, que a fórmula «pobreza infantil» pode funcionar de facto como uma espécie de ludíbrio vocabular que nos encaminhe para uma espécie de esquecimento da outra pobreza: a que é para todos e não pára de crescer.