Crime, impudor, sintoma

Correia da Fonseca

O caso já foi abor­dado neste nosso jornal, e na­tu­ral­mente em ex­ce­lentes termos, numa breve nota de Ana­bela Fino. Acon­tece, porém, que tendo sido no­tícia nos ca­nais da te­le­visão por­tu­guesa, o foi de um modo su­cinto, breve, di­luído na tor­rente de ir­re­le­vân­cias que cons­ti­tuem boa parte dos te­le­no­ti­ciá­rios se não a sua mai­oria: trata-se da prá­tica de tor­tura pelo menos no âm­bito da CIA, aliás ela pró­pria mais que sus­peita da au­toria de ou­tros crimes, al­guns com culpa so­li­da­mente trans­mi­tida, ou­tros nem tanto mas fac­tu­al­mente de­nun­ci­ados pelas cir­cuns­tân­cias e so­bre­tudo pelos ób­vios e ab­jectos in­te­resses norte-ame­ri­canos nos mais di­versos lu­gares do mundo.
Assim, a fugaz pre­sença da in­for­mação no te­le­no­ti­ci­a­rismo por­tu­guês jus­ti­fica, ou talvez até im­ponha, que estas duas co­lunas se lhe de­di­quem. Por duas ou três ra­zões, se não mais. Uma delas é que a mo­déstia da no­tícia numa ac­ti­vi­dade in­for­ma­tiva que se aplica a queimar longos mi­nutos com ocor­rên­cias de im­por­tância menor ou ne­nhuma é um sinal da sig­ni­fi­ca­tiva ti­midez com que por cá são di­fun­didas no­tí­cias sus­cep­tí­veis de con­tri­buir para um re­trato re­a­lista do ver­da­deiro perfil dos Es­tados Unidos da Amé­rica, país líder e de facto pa­trão do mundo ale­ga­da­mente livre. Outra razão é o dever de, pe­rante essa ti­midez, con­vocar a te­le­visão com os seus po­deres como tes­te­munha ne­ces­sária para o es­ta­be­le­ci­mento de ver­dades cujo tra­ta­mento não pa­rece estar na sua ac­tual vo­cação. Outra ainda será a de su­bli­nhar que a con­fissão ha­vida em re­la­tório ofi­cial não pode ser con­si­de­rada como tendo es­go­tado todos os as­pectos da ver­dade si­nistra: na ver­dade, a hi­pó­tese de um re­la­tório ofi­cial ter abor­dado todos os crimes de uma or­ga­ni­zação igual­mente ofi­cial que ar­gu­menta com va­lores de­co­ra­tivos como o pa­tri­o­tismo pes­si­ma­mente en­ten­dido ou a efi­cácia no âm­bito de uma guerra não de­cla­rada só pode ser aceite por quem es­teja pos­suído por uma ten­den­cial cum­pli­ci­dade com o crime.

«The crime must go on»

Como bem se po­deria es­perar, a de­núncia pú­blica dos crimes de tor­tura co­me­tidos sobre quem de facto seria com­ba­tente ainda que com meios po­bres («ter­ro­rista é o com­ba­tente que tem a bomba mas não tem o avião», John le Carré in «Ab­so­lute Fri­ends», ci­tado de me­mória mas com su­fi­ci­ente rigor), não foi se­guida por san­ções ade­quadas de­ci­didas contra os au­tores dos crimes e os res­pon­sá­veis por eles. E é claro que essa im­pu­ni­dade cor­res­ponde a um ar­ro­gante im­pudor pe­rante a opi­nião pú­blica mun­dial e é sin­toma de que o crime tem con­di­ções para con­ti­nuar, desde já du­rante o que resta do man­dato de Ba­rack Obama, no mí­nimo de facto im­po­tente, e mais ainda du­rante o man­dato do pre­si­dente que se lhe se­guirá e que, a ava­liar pelos si­nais já de­tec­tá­veis, será um su­jeito si­tuado ainda mais à di­reita e mais agres­sivo no plano da po­lí­tica in­ter­na­ci­onal. Já do­cu­mentos di­vul­gados pela co­mu­ni­cação in­for­má­tica, mas é claro que com­ple­ta­mente ig­no­rados pela te­le­visão por­tu­guesa e de­certo por muitas ou­tras, re­velam que sig­ni­fi­ca­tivos sec­tores USA se pre­param para levar mais longe, até con­sequên­cias even­tu­al­mente ca­tas­tró­ficas, a pro­vo­cação mon­tada contra a Rússia a partir do golpe ucra­niano. Será o tempo per­feito para que, entre ou­tros crimes, a prá­tica da tor­tura flo­resça em todo o seu horror. Na ver­dade, os que em tempos ale­gavam que ou­tros adop­tavam o prin­cípio de que os fins jus­ti­fi­ca­riam os meios, re­cu­sando-se em­bora a iden­ti­ficar e ava­liar quais se­riam esses fins, não he­sitam agora em for­mal­mente uti­lizar esse mesmo ar­gu­mento. Sendo que, como cla­ra­mente sabe quem o queira saber, os fins pros­se­guidos pelos Es­tados Unidos são o do­mínio mun­dial e a im­ple­men­tação nos quatro cantos da Terra, em seu pro­veito e no de seus even­tuais cúm­plices, de um apa­relho de ex­plo­ração in­ten­siva com muitos mi­lhões de ví­timas, de prá­ticas que vão até pôr em risco a so­bre­vi­vência hu­mana no pla­neta. Pro­vando-se pelo agora re­ve­lado que essa ta­refa im­plica que de facto não seja re­cu­sado ne­nhum meio: que nele, para en­fren­ta­mento das di­fi­cul­dades e re­sis­tên­cias sus­ci­tadas, tenha lugar até a prá­tica da tor­tura. De­mo­crá­tica, na­tu­ral­mente.




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